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quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Vida de mestre é difícil.


Sala de Aula. Imagem: Arquivo Pessoal CHH

O Dia do Professor é feriado no Brasil desde os anos 1960. De lá para cá, o país mudou muito, mas os profissionais continuam mal remunerados, com uma carga horária de trabalho desgastante e desvalorizados socialmente.

Quem quer ser professor no Brasil? Poucos.  Nos dias de hoje, somente 2% dos alunos do ensino médio mostram-se interessados na carreira docente, embora 1/3 deles tenha pensado, em algum momento, em segui-la. As razões para tanto desinteresse vão desde a baixa remuneração, à rotina desgastante ou mesmo à desvalorização social. Ser professor é um mau negócio. O resultado é que, hoje, faltam mais de 700.000 professores nos ensinos fundamental e médio.

Aqui, diferente de países como EUA, China e Índia, o Dia do Professor é feriado oficial. Comemorado no dia 15 de outubro, foi instituído nacionalmente em 1963 no governo de João Goulart. Seu início remete à década de 1930, quando grupos de professores católicos organizaram iniciativas para comemorar o “Dia da Mestra” e o “Nosso Primeiro Mestre” lançado pela Associação de professores Católicos do Distrito Federal (Rio de Janeiro, naquela época). A data - consagrada à Santa Tereza D’Ávila,  religiosa e escritora reconhecida, proclamada Doutora da Igreja pelo Papa Paulo VI -,  é associada ao Decreto Imperial de D. Pedro I, em 1827. Nele, o imperador ordenava a criação de escolas de “Primeiras letras” em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império.

A criação de um dia comemorativo não significou, contudo, a valorização do professor. Sem dúvida, se olharmos de 1963 para cá, o Brasil avançou em muitos aspectos na educação: diminuiu consideravelmente o analfabetismo, colocou a quase totalidade da população infantil na escola e aumentou consideravelmente o ensino universitário. Tais avanços, no entanto, foram insuficientes e a educação brasileira é, ainda hoje, uma das piores do mundo. A principal razão disso é o desinteresse pelo magistério. Os melhores alunos tendem a se direcionar para carreiras mais bem remuneradas. Resultado: muitas vezes falta uma formação sólida àqueles que devem ensinar.

Outro problema real é a desvalorização social: nas escolas privadas é comum os professores ouvirem dos alunos que seus pais ganham mais ou que eles, professores, são seus empregados. Nas escolas públicas, a desvalorização vem quase sempre do desconhecimento, por parte dos próprios pais, da importância da educação. Junte-se a isso uma rotina desgastante, que inclui uma enorme carga horária de trabalho, dentro e fora de sala de aula.

Tudo isso ocorre no momento em que o Brasil sofre com a falta de mão de obra qualificada em todos os setores. Surge aí um estranho paradoxo: quanto maior a carência de mão de obra, maiores os salários nos diversos setores e, portanto, menos atrativa se torna a carreira do magistério. É preciso educar a população, mas quem vai fazê-lo?

O governo federal vem tentando responder a essa questão com o estímulo à docência. Por um lado, apoiando a multiplicação das licenciaturas. Por outro, concedendo bolsas e criando programas de incentivo à formação de professores. Falta ainda, no entanto, o reconhecimento expresso numa carreira estruturada e numa remuneração adequada.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A arqueologia nos tempos da web: Para compreender os dias de hoje, os historiadores do futuro vão se debruçar sobre fotos, e-mails e posts na Internet. De futilidades do cotidiano a assuntos politizados. Tudo será usado para escrever a nossa história.


O sorriso estampado ao lado do Mickey está guardado até hoje em uma caixa de sapatos. Paulo Moço fez sua primeira viagem ao exterior em 1997, quando conheceu os parques da Disney na Flórida. Levou uma câmera analógica e 3 filmes de 36 poses, comprados com a mesada. Das cerca de 100 fotos que tirou, algumas queimaram e outras foram estragadas quando alguém passava na frente da câmera na hora do disparo. Esse tipo de situação não irritava mais quando ele foi à Europa em 2004. Na ocasião, havia ganhado uma câmera digital de 5 megapixels. Não importava mais se alguém passasse na frente na hora em que clicava a Torre Eiffel. Bastava apagar e repetir. E assim ele preencheu com centenas de imagens seu cartão de memória de 256 MB. Em 2011, voltou à estrada com uma nova câmera, que faz fotos de 14 megapixels e custou menos que a anterior. Milhares de fotografias depois, ele só não esgotou o cartão de 16 GB porque tinha outra câmera - a do smartphone, usada para fotografar pratos, doces e bebidas que consumia.

As viagens mostram como a nossa relação com a fotografia mudou nos últimos 15 anos, com a popularização das câmeras digitais. Antes, tirar fotos era mais caro e complexo (caso você não lembre, era preciso comprar o filme, colocá-lo na câmera e levar para revelar no fim da viagem, com os dedos cruzados para não ter queimado muitas fotos). Além disso, fotografar era restrito a aparelhos criados para tal. Hoje, ninguém precisa ter câmera para tirar foto. Celulares e tablets cumprem a função. E as máquinas estão cada vez mais baratas e poderosas.

A tecnologia banalizou a fotografia. Mas não só ela. Outras formas de produção de conteúdo também. A cada ano, é mais fácil e barato manifestar o que quer que seja. Faça, publique. Comente, tuíte. Viralizar virou verbo do dia a dia. E o fluxo só aumenta. Em 2010, a humanidade atingiu a marca de 1 zettabyte de informação criada e replicada. Zettabyte? É o mesmo que 1 trilhão de gigabytes de informação.

Joio e trigo

É tanta coisa que publicamos diariamente na internet que, se você parar para ver, dá para contar a história da sua vida com base apenas em e-mails trocados. Mas que legado estamos deixando para os historiadores do futuro? Como os desbravadores da internet conseguirão interpretar nossos tempos neste oceano de fotos de comida e hits de YouTube? O trabalho não será muito diferente do que já é feito por pesquisadores que estudam outras épocas, acredita Jennifer Gavin, diretora de comunicação da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. "Da mesma forma que alguém lê um jornal do século 18, pesquisadores do futuro analisarão tuítes por diversos ângulos diferentes para ver o que preocupa e interessa nos dias de hoje", diz. "O que foi trending topic? Qual a porcentagem de assuntos ligados a política? E o quanto as pessoas tuitaram sobre gatos ou festas?" Para ela, o trabalho consiste menos em separar o joio do trigo e mais em tentar entender o cotidiano das pessoas. Afinal, futilidades fazem parte da existência humana desde muito antes da internet. "O fato de que muito do conteúdo é bobo e mundano não o torna inútil na pesquisa social."

É justamente para que no futuro seja possível traçar um retrato da sociedade com base no que publicamos na internet que a Biblioteca do Congresso dos EUA arquiva os cerca de 230 milhões de tuítes feitos todos os dias. A iniciativa, lançada em 2010, faz parte do programa de preservação digital da biblioteca, que estuda maneiras de arquivar com segurança diversas formas de mídias.

Então aquele seu tuíte tirando sarro do chefe palmeirense após o título do Corinthians está guardado na Biblioteca do Congresso americano? A não ser que você tenha configurado sua conta como privada, sim. Por mais superficial que possa parecer, ele ajudará, com bilhões de outros textos de 140 caracteres, a compor um perfil do nosso tempo. "Em 1963, consideravam os Beatles estúpidos porque eles tinham versos como `yeah, yeah, yeah¿", compara Jennifer. "Hoje podemos voltar no tempo e ver os primeiros materiais da banda e a influência que ela teve no mundo. O Twitter pode propiciar uma janela para o futuro assim", diz.

Mas não é tarefa fácil. Estamos cada vez mais conectados. Novas gerações são naturalmente inclinadas a tratar a internet como uma extensão da vida, não como algo à parte. A história das pessoas passa a ser mais registrada na rede. A lista de aprovados no vestibular está no Google. Os melhores amigos estão marcados nas fotos do Facebook. O cargo novo no trabalho está exposto no perfil do Twitter. O amor da sua vida cabe no Gmail.

Isso tudo acontece porque gerar informação está cada vez mais fácil. O custo de produzir, administrar e armazenar conteúdo online é 1/6 do que era em 2005, segundo um estudo da organização Internet Data Corporation. Além disso, o investimento no universo digital cresceu 50% entre 2005 e 2011. Ou seja, está mais fácil porque está mais barato. E está mais barato porque há dinheiro fluindo para que essa tendência continue nos próximos anos.

Teorias do caos

Pesquisadores do futuro lidarão não só com a maior quantidade de informação já produzida na Terra como com o desafio de contextualizar fatos, costumes, modas, personagens. E o principal, como afirma Jennifer: tudo isso será apenas um ponto de vista do mundo atual, não um retrato acabado. Por mais que fotografar e chamar bolinhos coloridos de cupcakes seja um costume popular nas redes sociais, isso não quer dizer, necessariamente, que no futuro nossa época será a geração Instagram. Porque simplesmente há muito mais seres humanos que não fazem ideia do que seja uma foto de cupcake no Instagram do que aqueles que sabem. Logo, contextualizar continuará sendo dever dos historiadores. Além disso, há a questão da autenticidade, como lembra o historiador da UFRGS Fábio Chang, que pesquisa arqueologia histórica. "Para escrever a história do início do século 21, será preciso trabalhar com blogs e redes sociais", diz. Segundo Fábio, comprovar a autenticidade da documentação pode ser um desafio maior no futuro do que hoje. Por exemplo, um post assinado por um egípcio durante a Primavera Árabe. Ele foi mesmo feito por um rapaz do Egito? Durante a crise no país? Esse cuidado será essencial.

A doença de ser normal: A humanidade pode estar sendo acometida por uma epidemia global, a normose, uma obsessão doentia por ser normal.


Normose. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.

Já foi normal duas pessoas se digladiarem até a morte para entreter a multidão. Também já foi normal queimar mulheres na fogueira por bruxaria e fazer pessoas trabalharem sem emuneração com direito a castigos físicos só pela cor da pele. Era normal também humanos se alimentarem de sua própria espécie e casarem sem amor. Já foi normal passar 40 horas da semana fazendo algo que se detesta, mentir para ganhar dinheiro e devastar florestas inteiras em busca de um suposto desenvolvimento. Peraí, este último ainda é normal. Afinal, será que ser normal - e achar normais coisas que não deveriam ser - pode ser uma doença?
Segundo alguns psicólogos, sim. A doença de ser normal chama-se, segundo eles, normose: um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida.

O conceito foi cunhado quase que simultaneamente pelo psicólogo e antropólogo brasileiro Roberto Crema e pelo filósofo, psicólogo e teólogo francês Jean-Ives Leloup, na década de 1980. Eles vinham trabalhando o tema separadamente até que um terceiro psicólogo, o francês Pierre Weil, se deu conta da coincidência. Perplexo, Weil conectou os dois, e os três juntos organizaram um simpósio sobre o tema em Brasília, uma década atrás. Do encontro, nasceu uma parceria e o livro Normose: A patologia da normalidade.

No fim dos anos 70, Crema estava encucado com o fato de muitos autores apontarem uma "patologia da pequenez": o medo de se deixar ser em sua totalidade. Ele deparou-se com muitos pensadores, entre eles o alemão Erich Fromm (1900-1980), que falava do medo da liberdade, e o suíço Carl Jung (1875-1961), que afirmava que só os medíocres aspiram à normalidade. Crema misturou ao caldo a célebre declaração do escritor britânico G.K. Chesterton (1874-1936), que disse que "louco é quem perdeu tudo, exceto a razão", e acrescentou os anos de observação e prática em sua clínica pedagógica.

Assim nasceu o conceito de normose, que, segundo ele, "ocorre quando o contexto social que nos envolve caracteriza-se por um desequilíbrio crônico e predominante". A normose torna-se epidêmica em períodos históricos de grandes transições culturais - quando o que era normal subitamente passa a parecer absurdo, ou até desumano. Foi o que aconteceu no final do período romano, em relação à perseguição de cristãos, ou no início da Idade Moderna, com o fim da legitimidade da Santa Inquisição, ou no século 19, com a perda de sustentação moral da escravidão. E, segundo Crema, Leloup e Weil, é o que está acontecendo de novo, com a crise dos nossos sistemas de produção, trabalho e valores.

"O novo modelo é ainda embrionário, e os visionários dessa possibilidade de sociedade não-normótica ainda são minoria", diz Crema. Enquanto a maioria de nós se adapta a um ambiente social doente, quem resiste à normose acaba considerado desajustado, por não obedecer ao estado "normal" das coisas.

Como aquele cara que, mesmo ganhando o suficiente para fornecer educação, moradia e alimentação para si e seus filhos, é considerado vagabundo e louco por, em plena quarta-feira ensolarada, liberar as crianças da aula e levá-las à praia. Mas como? Em dia de semana? As crianças vão faltar aula? Pois é. De repente, ele acha que um dia na natureza vai fazer mais bem a seus filhos do que horas sentados em sala de aula. Será que ele não é saudável, e doentes estão os outros?

Desnormotização

Para a filósofa Dulce Magalhães, que escreve sobre mudanças de paradigmas, o normótico acredita que geração de renda e falta de tempo para si ou para a família são indissociáveis. "As pessoas consideram que trabalhar muitas horas, colocar em risco sua saúde e suas relações é normal", diz ela. "Mas isso tem um custo pessoal e social alto demais, que acabam levando a problemas de saúde pública e violência, por exemplo."

Dulce acha que a cura para a normose está em mudarmos de modo mental, abandonando o modelo da escassez, que hoje rege o mundo, e abraçando o da abundância. Ela explica: "Desde a infância, aprendemos que o que vem fácil vai fácil e que, se a vida não for difícil, não é digna. Precisamos mudar isso e entender que esforço não é tarefa." Quantos de nós chegamos em casa reclamando para mostrarmos (a nós mesmos e aos outros) que trabalhamos muito e tivemos um dia duro, como se isso trouxesse algum tipo de mérito?
Segundo Crema, cada um de nós tem talentos diversos, mas "o normótico padece de falta de empenho em fazer florescer seus dons e enterra seus talentos com medo da própria grandeza, fugindo da sua missão individual e intransferível". "Quando temos necessidade de, a todo custo, ser como os outros, não escutamos nossa própria vocação", acredita.

O carioca Eduardo Marinho, hoje com 50 anos, percebeu cedo que não queria ser como os outros. Filho de militar, abriu mão de sua condição financeira e de sua faculdade ao se dar conta, aos 18 anos, que não queria olhar para sua vida quando velho e pensar que não tinha feito nada relevante. "Não queria ser bem-sucedido e me sentir fracassado". Eduardo saiu pelo País pedindo abrigo e comida em troca de favores e buscando algo que o preenchesse. Depois de passar por poucas e não tão boas pelo Brasil, deu voz a sua vocação. Hoje é artista plástico.

Ele acredita que a desnormotização se inicia dentro de cada um: "Que tal olhar para dentro de si mesmo? É aí que começa a revolução", sugere. Claro que, para isso, não é mandatório dormir nas ruas. Fazer o trajeto que Eduardo escolheu para si pode ser perigoso e não há nenhuma garantia de sucesso.

Bug cerebral

A cura da normose é trabalho individual, mas alguns esforços sociais podem ajudar. Para começar, seria um adianto se tivéssemos um novo modelo educacional. A escola poderia ser o lugar onde as crianças descobrem suas verdadeiras vocações - em vez de tentar padronizar os alunos e convencê-los a serem normais.

A caça ao conhecimento perdido: Novas pesquisas mostram que tribos primitivas têm muito a nos ensinar sobre justiça, saúde e até na criação dos filhos.


Sabedoria Antiga. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.

Viver em países com organização centralizada e centenas de milhões de cidadãos é algo que torna as pessoas e as culturas bem homogêneas. E isso pode ser um problema. Nossos ancestrais viviam em grupos de 100, 200 indivíduos. Bastava andar algumas dezenas de quilômetros para ir parar em "terra estrangeira", povoada por inimigos mortais que falavam uma língua bem diferente da sua. Resultado: cada grupinho desenvolveu sua própria cultura. Única e peculiar. Alguns grupos ainda vivem como os nossos antepassados da Idade da Pedra. É o que acontece na ilha da Nova Guiné, por exemplo. Os povos tradicionais de lá foram os que ficaram mais tempo isolados da civilização, então o lugar abriga mais de mil línguas diferentes num território pouco maior que o de Minas Gerais. E a diversidade linguística é só parte da equação. Junto com ela vem uma incrível variedade de usos e costumes. "Esse grupos representam milhares de experimentos naturais sobre como construir uma sociedade", diz o biólogo Jared Diamond. Ele é conhecido por ser o autor do polêmico best-seller Armas, Germes e Aço, no qual propõe que o acaso seria a principal explicação para o triunfo da civilização europeia, não a tecnologia. Agora ele está com um livro novo, e que também chama a atenção pela originalidade: é o The World Until Yesterday ("O Mundo até Ontem", sem versão em português). Diamond argumenta ali que tribos supostamente primitivas têm muito a nos ensinar.

"Eles descobriram milhares de soluções para problemas humanos. Soluções diferentes das nossas". Nas páginas a seguir, você confere algumas delas - boa parte delas bolada pelos povos da Nova Guiné e de ilhas adjacentes, onde Diamond faz suas pesquisas de campo. De quebra, aproveitamos para mostrar alguns pontos nos quais essas sociedades acabam escorregando.

1. Criação dos Filhos

A situação das crianças entre muitos povos de caçadores-coletores ou de agricultores primitivos é paradoxal. Grosso modo, dá para dizer que os pequenos são muito mais mimados do que os nossos bebês em várias dessas sociedades - e, ao mesmo tempo, ficam muito mais ao deus-dará do que qualquer mamãe brasileira normal acharia seguro. Começando pela parte fofa da coisa: entre as sociedades de caçadores-coletores mais bem estudadas pelos antropólogos - gente como os Hadza, da Tanzânia, os Agta, das Filipinas, e os !Kung (o ponto de exclamação representa um som feito ao estalar a língua), da Namíbia e de Botsuana -, a idade média para desmamar os pequenos fica em torno dos três anos. E as mamadas podem continuar por ainda mais tempo (depois dos quatro anos de idade, no caso dos !Kung) se um irmãozinho não aparecer para cortar o barato da criança. Entre os pigmeus Bofi e Aka, da África Central, o desmame é feito de forma gradual e, muitas vezes, espera-se que o filho tome a iniciativa de largar o peito.

Dá-se de mamar ao bebê sempre que ele quiser, mesmo no meio da noite - por isso, os nenês dormem junto com a mãe, podendo achar o peito sem necessariamente acordá-la. Não são apenas os seios da mãe que ficam à disposição da criança 24 horas por dia. O normal é que os bebês, até os dois ou três anos de idade, estejam quase sempre em contato físico muito próximo com um adulto. São carregados para lá e para cá no colo sem medo de que a criança "fique folgada" ou, então, passam o dia em "bolsas de canguru" ou trouxinhas amarradas ao adulto.

Diferentemente dos nossos "cangurus", no entanto, toma-se sempre o cuidado de colocar a criança numa posição voltada para a frente, de maneira que ela tenha o mesmo campo visual da mãe diante de si, o que parece ter algumas vantagens para o desenvolvimento neurológico do pequerrucho.

O bebê começa a diminuir seu contato corporal direto com os adultos também por vontade própria, por volta de um ano de vida, quando começa a descer mais para o chão para brincar com outras crianças. Outro aspecto importante do cuidado com os pequenos em boa parte das sociedades tradicionais é que a tarefa é dividida entre um número muito maior de pessoas. Além dos pais, claro, e dos avós, tios e irmãos mais velhos (que entre nós ainda dão uma mãozinha, mas muito menos do que era usual décadas atrás, por exemplo), praticamente todos os membros do grupo passam ao menos algum tempo com os bebês. Conforme as crianças crescem, podem ficar dias ou até semanas na casa de parentes ou vizinhos. E há ainda o costume da adoção ritual - a tradição de que meninos e meninas mais velhos passem anos na casa de outra pessoa, completando sua educação. Resquícios dessa prática aparecem na literatura de sociedades guerreiras um pouco menos "primitivas", como os gregos de Homero ou os nobres medievais.

Mais importante: para muitos caçadores-coletores, palmada como instrumento educacional não existe. O linguista americano Daniel Everett, que passou anos vivendo com a tribo dos Pirahã, no Amazonas, conta que certo dia tentou punir sua filha Shannon na base da chinelada. Ele não contava com os Pirahã, no entanto. A menina fez um escândalo, e os índios, que nunca batem em seus filhos, simplesmente proibiram a surra. Entre os pigmeus Aka, da África subsaariana, é parecido: se um dos membros de um casal bate nos filhos, o cônjuge pode usar isso como boa razão para um divórcio.

O respeito pela individualidade da criança, contudo, também tem seu lado ruim. É comum que grupos tradicionais deixem que garotos e garotas pequenos façam coisas um bocado perigosas - e paguem o pato por isso. Diamond conta que muitos de seus amigos das montanhas da Nova Guiné, por exemplo, possuem cicatrizes feias causadas por queimaduras, simplesmente porque seus pais não interferiram quando eles quiseram brincar com fogo quando crianças. Sobre os Pirahã, aparentemente tão delicados com os pequenos, Everett conta uma história de arrepiar. Certo dia, um menininho de dois anos estava brincando com uma faca, fazendo todo tipo de movimento perigoso com o treco. "E a mãe, que estava conversando com outra pessoa, pegou a faca do chão e devolveu à criança quando o menino deixou cair! Ninguém disse a ele para tomar cuidado para não se cortar."
Também é importante lembrar que as dificuldades da vida nômade podem levar mães e pais a tomarem decisões difíceis, que envolvem inclusive o sacrifício de recém-nascidos. Quando nascem gêmeos numa família de caçadores-coletores, por exemplo, é comum que um deles seja sacrificado, porque a mãe dificilmente será capaz de alimentar ambos.

2. Fazendo justiça

Ciclos de vingança muitas vezes tomam conta da vida dos povos tribais. É claro que isso tem a ver com a inexistência de um Estado, capaz de monopolizar o uso da violência e de punir crimes por meio de tribunais e prisões. Se o único jeito de fazer justiça é matar o sujeito que matou seu pai, você vai considerar seriamente essa possibilidade. Só tem um complicador: em sociedades desse tipo, os laços familiares costumam ser mais fortes do que entre nós. Seu primo de segundo grau tem tanta obrigação de vingar você quanto seu filho. E, do outro lado da equação, uma vez vingado o assassinato original, nada impede que o primo de segundo grau do assassino se sinta obrigado a vingá-lo. Deu para ver onde isso vai parar.
Se o cenário parece desesperador, também há evidências de que as sociedades tradicionais conseguem enfrentar de forma eficaz situações que, para nós, virariam um pesadelo judicial. É essa a lição que Diamond tira de um incidente na Nova Guiné, a morte por atropelamento do menino Billy. O garoto foi atingido enquanto voltava da escola. Ele desceu do micro-ônibus para atravessar a rua e se encontrar com seu tio Genjimp, que estava esperando para levá-lo para casa, mas saiu correndo por trás do micro-ônibus. Com isso, Malo, motorista de outro carro, não viu o menino e acabou por atingi-lo.

Billy e Malo pertenciam a grupos étnicos diferentes, o que poderia ser a receita para um ciclo de vinganças. Mas, graças à mediação do chefe da tribo, a família do menino reconheceu que tudo tinha sido um acidente e aceitou o chamado sori money, ou "compensação" em tok pisin, língua franca da Nova Guiné, derivada do inglês. E também ajudou a família a organizar o funeral de Billy. No final, as partes se despediram com um aperto de mãos.
No Ocidente, lembra Diamond, a mesma situação estaria sendo enfrentada por meio de uma disputa judicial impessoal, com os pais do menino simplesmente processando o motorista. Para o pesquisador, a vantagem do método da Nova Guiné é que ele tem um componente emocional importante, dando aos pais e aos representantes do motorista uma chance de tentar reparar, ao menos em alguma medida, o sofrimento trazido pelo caso. É o que os procedimentos recentes da chamada justiça restaurativa - quando vítimas e criminosos ficam frente a frente para conversar, com a ajuda de um mediador, por exemplo - estão tentando fazer.

3. Previdência social

Jared Diamond conta que, certa vez, passou vergonha ao bater um papo com um nativo de Viti Levu, uma das ilhas do arquipélago de Fiji, no Pacífico. O sujeito tinha visitado os EUA anos antes e acusou: "Vocês jogam seus idosos, e até seus próprios pais, no lixo!".Em Fiji, os filhos chegam a pré-mastigar a comida dos pais idosos e desdentados, o que provavelmente explica a indignação do nativo com o fato de alguns velhinhos americanos serem esquecidos em lares para idosos, sem receber visitas da família. De fato, o respeito cerimonioso com os mais velhos é comum entre sociedades tradicionais.

Mas, como acontece no caso das crianças, nem tudo são flores. Em situações de privação, muitas tribos de caçadores-coletores acabam "sugerindo" que os velhinhos façam o favor de bater as botas - ou praticam uma forma de eutanásia forçada (digamos) quando isso falha. Esse tipo de prática se torna mais comum em dois contextos, diz Diamond: quando a tribo precisa mudar de acampamento com frequência, o que dificulta a presença de pessoas com mobilidade reduzida; ou quando o grupo habita ambientes nos quais a falta de recursos acontece de maneira cíclica (como os desertos e o Ártico).

Grupos como os Inuit (esquimós) e os Hopi, dos desertos dos EUA, preferiam simplesmente ignorar os idosos indesejáveis, deixando de cuidar deles e de lhes dar comida, até que eles acabem morrendo. Uma tática mais ativa - e cruel - é abandonar a pessoa mais velha quando chega a hora de mudar de acampamento e fica claro que ela não será capaz de acompanhar o grupo sozinha, coisa que os Aché, do Paraguai, costumavam fazer. O método mais chocante, porém, talvez seja o adotado para viúvas do povo Kaulong, da Nova Bretanha, ilha próxima da Nova Guiné: até os anos 50, era função dos filhos homens, ou dos irmãos da mulher, estrangulá-la assim que o marido morria.

A antropóloga Jane Goodale (não confunda com Jane Goodall, a famosa especialista em chimpanzés) registrou a situação enfrentada pelo filho de uma dessas viúvas: "Quando hesitei, minha mãe ficou de pé e, em voz alta, disse que eu só estava demorando porque queria fazer sexo com ela". Humilhado, o sujeito acabou cumprindo seu dever.
Se nada disso parece muito inspirador, é bom lembrar que, em condições normais, as sociedades tradicionais sabem dar valor a seus membros mais velhos, em especial levando em conta os contextos nos quais eles são capazes de deixar a garotada no chinelo. Embora não sejam mais capazes de caçar um elefante na base das lançadas, eles são os principais responsáveis por interpretar marcas deixadas por um animal ou por planejar a caçada. São excelentes xamãs, pajés e curandeiros, além de dominarem o artesanato de forma mais precisa e cuidadosa do que os jovens, mais afoitos. E, em culturas que são orais e dependem de um conhecimento detalhado do ambiente, seus cérebros funcionam como bibliotecas vivas, guardando segredos como o que comer quando uma seca severa ou um furacão acabam com quase todas as fontes de alimento.

4. Paleo-dieta

Diamond lembra que, quando começou a trabalhar na Nova Guiné, na década de 1960, obesos ou mesmo gente um pouco acima do peso pareciam simplesmente não existir na ilha. Musculosos, esbeltos e cheios de fôlego, os nativos eram capazes de carregar pesos enormes no lombo durante o dia inteiro sem se cansar. Problemas cardíacos, pressão alta, diabetes e câncer mal eram registrados por lá - os idosos da Nova Guiné de então raramente eram afetados por esses males.

Bem-vindo ao inferno Guantánamo


Prisioneiros em Guantánamo. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.

Numa base militar no caribe, fica a prisão mais dura do mundo. suspeitos de terrorismo são levados para lá e podem ficar presos para sempre, sem direito a julgamento. Dos 166 detentos, 130 estão fazendo greve de fome. E um deles conta, pela primeira vez, como as coisas são por lá. Conheça a vida no pior lugar da Terra.

Reportagem de Larry Siems, da Slate. Edição e tradução: Bruno Garattoni
Mohamedou Ould Slahi se apresentou voluntariamente à polícia de seu país natal, a Mauritânia, em 20 de novembro de 2001. Foi preso, e uma semana depois, a pedido do governo dos EUA, transferido para a Jordânia. Slahi era acusado de ligações com um atentado frustrado no aeroporto de Los Angeles, em 1999. Por sete meses, foi interrogado pelas autoridades jordanianas, que não acharam nada que o incriminasse. Insatisfeita, a CIA buscou Slahi e o levou até uma base militar americana no Afeganistão.
Em 4 de agosto de 2002, ele foi encapuzado, algemado, drogado e colocado num voo com 30 outros detentos, para uma viagem de 36 horas até a base de Guantánamo, em Cuba, onde está até hoje. Slahi escreveu um livro de 466 páginas contando sua história. Partes dele acabam de ser divulgadas, e você irá ler a seguir. Os trechos cobertos por uma tarja preta foram censurados, antes da liberação do texto, pelo governo dos EUA. As passagens em laranja foram adicionadas pela SUPER para facilitar a compreensão do caso.

O interrogatório

Os gritos dos outros presos me acordaram.
Enquanto os guardas serviam comida, nós nos apresentávamos. Não podíamos ver uns aos outros, mas era possível ouvir as vozes. "Eu sou da Mauritânia." "Eu sou da Palestina." "Síria." "Arábia Saudita."
"Como foi o voo?"
"Eu quase congelei até morrer", gritou um cara. "Eu dormi a viagem toda", respondeu [Techo censurado].
Nós nos chamávamos pelos números de identificação que tínhamos recebido. O meu era 760. Na cela à esquerda estava [Techo censurado], de [Techo censurado]. Na cela à direita, havia um cara de [Techo censurado]. Ele falava mal árabe e dizia que tinha sido capturado em Karachi (Paquistão), onde frequentava a universidade. Nas celas em frente à minha, colocaram dois sudaneses.
O café da manhã foi modesto, um ovo cozido, um pedaço de pão duro e uma outra coisa que não sei o nome. Foi minha primeira refeição quente desde a Jordânia. O chá foi reconfortante.
Eu considerei a chegada a Cuba uma bênção, e disse aos meus irmãos. "Como vocês não estão envolvidos em crimes, não têm o que temer. Eu vou cooperar, porque ninguém vai me torturar." Eu erroneamente acreditava que o pior tinha passado. Eu confiava demais no sistema judicial americano.


Prisioneiros são humilhados e torturados pela "acusação de Terrorismo". Imagem: Arquivo Pessoal CHH.

"[Techo censurado]", disse um dos soldados enquanto segurava longas correntes nas mãos. A palavra [Techo censurado] é um código, significa que você será levado para um interrogatório. Eu prudentemente obedeci às ordens, e eles me levaram até o interrogador. O nome dele era [Techo censurado], e ele vestia um uniforme do Exército dos EUA. Falava árabe decentemente, com um sotaque de [Techo censurado]. Ele me disse que é de [Techo censurado] e costumava trabalhar como intérprete para os [Techo censurado].
[Techo censurado] era um cara amigável. Ele queria que eu contasse mais uma vez toda a minha história. Quando cheguei à parte sobre (o que tinha passado) na Jordânia, ele disse que sentia muito!
"Esses países não respeitam os direitos humanos. Eles até torturam gente." Me senti confortável por essa crítica a métodos cruéis de interrogatório; significa que os americanos não fariam algo do tipo.

Depois que [Techo censurado] terminou suas perguntas, me mandou de volta (à cela).
Eles obviamente viam o quão doente eu estava. Eu parecia um fantasma (registros oficiais indicam que Slahi, de 1,70 m, pesava apenas 49 quilos ao chegar à base). No meu segundo ou terceiro dia em Guantánamo, eu desmaiei. Os médicos me tiraram da cela. Vomitei tanto que fiquei completamente desidratado. Recebi primeiros socorros e uma sonda intravenosa. Foi terrível, eles devem ter colocado algum remédio ao qual sou alérgico. Minha boca secou, e minha língua ficou tão pesada que eu não conseguia falar para pedir ajuda. Com gestos, pedi aos guardas que tirassem a sonda, e eles tiraram.
Mais tarde, os guardas me levaram de volta à cela. Eu estava tão doente que não conseguia subir na cama. Dormi no chão o resto do mês. O médico me prescreveu Ensure (suplemento nutricional) e um remédio para hipertensão. Quando eu tinha crises de nervo ciático, os guardas me davam Motrin (anti-inflamatório). Embora eu estivesse fisicamente muito fraco, os interrogatórios não pararam.
Nos primeiros meses em Guantánamo, Slahi foi interrogado por agentes do FBI e da Marinha, que utilizavam métodos tradicionais. Mas, em maio de 2003, começou seu "interrogatório especial" - termo que os militares americanos utilizam para se referir ao uso de técnicas mais fortes, que incluem certos tipos de tortura. Slahi foi transferido para a solitária.
A escolta apareceu na minha cela. "Mexa-se."
"Para onde vou?"


Prisioneiros sendo torturados em Guantánamo. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.

"Não é problema seu", disse com raiva o guarda [Techo censurado]. Mas ele não era muito esperto, pois tinha anotado meu destino em sua luva. [Techo censurado] era (um lugar) reservado para os piores presos da base. Se você fosse transferido para [Techo censurado], muitas pessoas deveriam ter autorizado, talvez (até) o presidente dos EUA. As únicas pessoas que eu conhecia que tinham passado algum tempo em [Techo censurado] eram [Techo censurado] al Kuwaiti e outro detento de [Techo censurado].
Ao chegar ao bloco, a coisa começou. Tiraram todos os meus objetos, exceto por um colchonete e um cobertor muito fino, pequeno e velho. Fui privado dos meus livros. Fui privado do meu Corão. Fui privado do meu sabonete. Fui privado da minha pasta de dentes. Fui privado do rolo de papel higiênico que eu tinha.

E se houvesse guerra civil no Brasil? Rebeldes teriam de atacar pontos de infra-estrutura estratégicos até chegar a Brasília. Nada fácil!


 Imagem: Arquivo Pessoal CHH.

Nem uma nova Constituição, nem a independência de um Estado, tampouco um movimento religioso. O que motivaria um conflito armado no Brasil seria algo não muito criativo em se tratando de guerra: petróleo. Em 2012, a proposta de redistribuição dos royalties da produção da commodity levou 200 mil pessoas a se manifestarem no Rio de Janeiro. O Estado, sozinho, produz 74% do petróleo nacional. Se houver a redistribuição, o Rio diz que perderá R$ 77 bilhões em arrecadação até 2020. 

A discussão é longa, polêmica e ainda tramita no Congresso. Se a coisa ficasse séria e os Estados produtores de petróleo se juntassem contra o resto, teríamos, na verdade, uma guerra entre rebeldes civis e militares. Isso porque dificilmente as Forças Armadas, que respondem à presidente e não aos Estados, se voltariam contra o governo federal menos de 30 anos depois da redemocratização do País. Um novo golpe militar não seria bem visto pela comunidade internacional, haveria represálias. Então, sem o apoio militar, os rebeldes teriam de se virar com táticas de guerrilha e tentar atacar locais estratégicos. Nada impossível, ainda mais se eles angariassem mais aliados descontentes. 

Em 2008, o Movimento dos Atingidos por Barragens invadiu a hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. Chegaram à sala de operações e por pouco não deixaram muita gente sem luz. Para evitar ataques assim, surgiu o Projeto Proteger, que deve ter um investimento de R$ 9,6 bilhões do governo. Mas as dificuldades dos rebeldes iriam além. Seria preciso chegar a Brasília. E o Planalto Central não tem uma Sierra Maestra, com as florestas e montanhas estratégicas que ajudaram os cubanos a tomar Havana em 1959, por exemplo. Então, mais uma vez na história, o governo central derrotaria os revoltosos.


Imagem: Arquivo Pessoal CHH.