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quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Ordem e Progresso



Bernjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) como ministro da Instrução Pública reformolou todo o ensino brasileiro de acordo com as idéias de Augusto-Comte.

Mais do que um simples lema na bandeira, as idéias positivistas de Augusto-Comte impregnaram a nascente República brasileira.
por Rafael Augusto Sêga
           

Bernjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) como ministro da Instrução Pública reformolou todo o ensino brasileiro de acordo com as ideias de Augusto-Comte.

A verdade, meu amor, mora num poço, / É Pilatos, lá na Bíblia quem nos diz, / E também faleceu por ter pescoço, / O (infeliz) autor da guilhotina de Paris. / Vai, orgulhosa, querida, / Mas aceita esta lição: / No câmbio incerto da vida, / A libra sempre é o coração, / O amor vem por princípio, a ordem por base, / O progresso é que deve vir por fim, / Desprezaste esta lei de Augusto Comte, / E foste ser feliz longe de mim.

Este trecho do conhecido samba de Noel Rosa e Orestes Barbosa, Positivismo, de 1933, demonstra a presença da filosofia positivista no meio cultural mais popular do Brasil, a música, ao retratar uma amada que transgrediu o fundamento básico de tal filosofia. Não obstante, essa corrente de pensamento também se faz presente no dístico de nosso maior símbolo pátrio, a bandeira: Ordem e Progresso. É curioso, mas a tentativa mais efetiva de colocar em prática a doutrina positivista, uma ideologia tipicamente francesa, foi realizada em um país latino-americano: o Brasil.

Como isso aconteceu?

A pergunta exige o conhecimento de certos aspectos das origens e dos fundamentos do pensamento positivista ainda na França no século XIX, para mostrar sua chegada e ascendência sobre o pensamento brasileiro dentro do contexto histórico e cultural da época.

O avanço científico europeu do início do século XIX, decorrente da Primeira Revolução Industrial, fez com que o homem acreditasse em seu completo domínio da natureza. O positivismo surgiu nessa época como uma corrente de pensamento que apregoava o predomínio da ciência e do método empírico sobre os devaneios metafísicos da religião.

Nesse sentido, o movimento intelectual erigido por Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte, ou simplesmente Auguste Comte (1798-1857), defendia que todo saber do mundo físico advinha de fenômenos "positivos" (reais) da experiência, e eles seriam os únicos objetivos de investigação do conhecimento.

Comte sustentava a existência de um campo de ação, no qual as idéias se relacionavam de forma lógica e matemática e, por fim, toda investigação transcendental ou metafísica que não pudesse ser comprovada na experiência deveria ser desconsiderada.

As raízes do positivismo são atribuídas ao empirismo absoluto de David Hume (1711-1776), que concebia apenas a experiência como matéria do conhecimento e também a Ilustração, ou Iluminismo, que apregoava a razão como base do progresso da história humana.

Dessa forma, o positivismo é fruto da consolidação econômica da revolução pela burguesia, expressa nas Revoluções Inglesa do século XVIII e Francesa de 1789. As ciências empíricas passaram a tomar frente às especulações filosóficas meramente idealistas e Comte buscou a síntese do conhecimento positivo da primeira metade do século XIX, especialmente da física, da química e da biologia.

Seu objetivo era a formulação de uma "física" social (a "sociologia") que reformulasse o quadro social instável decorrente das novas relações de trabalho do capitalismo industrial.

Na primeira fase de seus trabalhos, Comte teve como mentor o teórico do socialismo utópico, o conde de Saint-Simon (Claude-Henri de Rouvroy, 1760-1825). Em sua obra Curso de filosofia positiva (1830-1842), Comte expõe a base de sua doutrina cujos alicerces teóricos estão assentados na norma de três estados do desenvolvimento humano e do conhecimento, o teológico, o metafísico e o positivo.

Na fase teológica o ser humano entende o mundo a partir dos fenômenos da Natureza dando a eles caráter divino. Essa fase encerra-se no monoteísmo. Na fase metafísica, a interpretação do mundo é calcada em conceitos abstratos, idéias e princípios.

Por fim, na fase positiva o ser humano limita-se a expor os fenômenos e a fixar as relações constantes de semelhança e sucessão entre eles. Nessa fase, as causas e as essências dos fenômenos são deixadas de lado para se evidenciarem as leis imutáveis que nos regem, pois o conhecimento destina-se a organizar e não a descobrir.

O fim da filosofia é a organização das ciências, hierarquizadas, segundo Comte, em seis. Na base dessa pirâmide está a matemática, seguida da astronomia, física, química, biologia e sociologia. Em outra obra sua, Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), Comte parte das feições reais do termo "positivo" para atingir uma significação moral e social maior, a fim de reorganizar a sociedade, com a supremacia do amor e da sensibilidade sobre o racionalismo.

O apogeu dessa tese é a religião da humanidade. A filosofia positiva passa, então, a preconizar também uma teoria de reforma da sociedade e uma religião. A unidade do conhecimento positivo passa a ser coletiva em busca da fraternidade universal e da convivência em comum. A junção entre teoria e experiência é baseada no conhecimento das ações repetitivas dos fenômenos e sua previsibilidade científica.

Assim, é possível o aprimoramento tecnológico. O estágio positivo corresponde à atividade fabril e à transformação da natureza em mercadorias. Se entendermos a ciência como a investigação da realidade física, o positivo é o objeto e o resultado dessa investigação. Dessa forma, a sociedade também é passível dessa análise e a fase positiva será caracterizada pela passagem do poder político para os sábios.

Fragmentação do pensamento

A segunda fase dos trabalhos de Comte é representada em sua obra Sistema de política positiva (1851, 1854), que preconiza a "religião da humanidade", cuja liturgia é baseada no catolicismo romano, estabelecida em O catecismo positivista (1852).

Destarte, a doutrina positivista adquire feição religiosa com credo na ciência. Essa divisão do pensamento comteano também separou seus seguidores em duas correntes: os ortodoxos, que seguiram Comte em seu período religioso; e os heterodoxos, que se conservaram perseverantes ao período científico e filosófico do positivismo.

O líder dos heterodoxos, Émile Littré, autor de Fragmentos de filosofia positiva e sociologia contemporânea (1876), concebeu o período religioso de Comte como um atraso. Já o ortodoxo Pierre Laffitte chegou a sacerdote máximo da chamada religião da humanidade.

As teorias científicas de Comte sofreram severas críticas de ordem metodológica, principalmente por desconsiderarem os procedimentos hipotéticos e dedutivos. Entretanto, o positivismo causou forte eco tanto nas doutrinas utilitaristas e pragmáticas de vertente americana.

Embora o positivismo seja julgado metodologicamente ultrapassado por transformar a ciência em objeto de reflexão da filosofia, a epistemologia comteana é possuidora de consideráveis princípios filosóficos que tentam determinar o homem em relação a sua atividade e espaço histórico. Atualmente, traços positivistas são identificados em diferentes atividades no mundo ocidental, e especialmente no Brasil.

Na verdade, o Brasil, país latino-americano, se transformou numa segunda pátria do positivismo. O pensamento positivista chegou ao Brasil em torno de 1850, e foi trazido por brasileiros que estudaram na França; alguns tinham até mesmo sido alunos de Comte.

A presença da doutrina positivista, em sua fase científica, no Brasil, tornou-se visível a partir de 1850, quando apareceu na Escola Militar, depois no Colégio Pedro II, na Escola da Marinha, na Escola de Medicina e na Escola Politécnica, no Rio de Janeiro. Já o positivismo de vertente religiosa pôde ser atestado no Apostolado Positivista, a partir de 1881, fruto da iniciativa de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira.

A atuação do positivismo no Brasil foi uma reação filosófica contra a doutrina confessional católica, até então única reflexão intelectual existente no país. Nessa luta no campo das idéias figuraram também o naturalismo e o evolucionismo.

No Brasil, a marca inicial do positivismo mais aceita é a publicação do livro de Luís Pereira Barreto As três filosofias, em 1874, e também, dois anos mais tarde, a fundação da Sociedade Positivista Brasileira (origem da Igreja da Humanidade) no Rio de Janeiro. Contudo, o núcleo irradiador do positivismo seria transferido para Recife, por iniciativa de Tobias Barreto e, depois, Sílvio Romero e Clóvis Bevilácqua.

O positivismo que se assenhoreava no Brasil moldava-se ao país e adquiria o perfil de doutrina com influência geral, e aceita por um grupo reduzido de estudiosos, composto por duas facções: os ortodoxos e os dissidentes. Miguel Lemos e Teixeira Mendes lideravam o primeiro, e um número de políticos com visão monárquica positivista, junto com Luís Pereira Barreto, Tobias Barreto e Sílvio Romero lideravam o último, e buscavam em Comte a fundamentação teórica para a República.

O republicanismo brasileiro, nascido da Convenção de Itu, de 1870, gerou duas alas: a liberal-democrática, de inspiração americana, e a autoritária, de inspiração positivista. Todavia, em um primeiro momento, o programa do Partido Republicano estava muito mais preocupado com o combate objetivo ao Império do que com querelas doutrinárias. Nessa fase destacam-se os nomes dos chamados republicanos históricos, como Silva Jardim, Aníbal Falcão e Demétrio Ribeiro.

A atuação doutrinária levada a cabo por Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891), professor da Escola Militar e defensor do princípio positivista da valorização do ensino para alcançar o estado sociocrático, ganha destaque nesse contexto. Contudo, se para Comte o ensino, no continente europeu, deveria ser destinado às camadas pobres, no Brasil essa meta foi impossível, devido ao baixíssimo nível de instrução do proletariado nacional. Assim, a transmissão dos ensinamentos positivistas acabou se restringindo aos poucos que estudavam nas escolas militares.

A atividade doutrinária bem no interior da massa pensante das forças armadas brasileiras foi fundamental para criar um espírito de corpo na caserna, pois boa parte da oficialidade se achou imbuída do destino histórico de implantar um regime republicano que fosse fundamentado na razão e na ciência positivista.

Os republicanos jacobinos, radicais, combatiam os monarquistas e os republicanos liberais, e apregoavam a implantação de uma república temporária e ditatorial, com o fim de se alcançar a sociocracia preconizada por Comte. Ocorreu, assim, uma cisão no movimento republicano, e até mesmo entre os positivistas, pois no episódio de 15 de novembro de 1889 sentimos a presença dos positivistas dissidentes (militares seguidores de Benjamin Constant), em detrimento dos ortodoxos (civis seguidores da Igreja Positivista).

O positivismo tornou-se uma filosofia fundamental no debate político no Brasil do século XIX, uma vez que o regime republicano foi instalado sob sua égide teórica. O 15 de novembro pode ser considerado o ápice do positivismo no Brasil, em razão da grande quantidade de adeptos de Auguste Comte que assumiram cargos de relevo no novo regime (Benjamin Constant chegou a ministro da Guerra).

Foram numerosas as influências do positivismo na organização formal da República brasileira, entre elas o dístico Ordem e Progresso da bandeira; a separação da Igreja e do Estado; o decreto dos feriados; o estabelecimento do casamento civil e o exercício da liberdades religiosa e profissional; o fim do anonimato na imprensa; a revogação das medidas anticlericais e a reforma educacional proposta por Benjamin Constant.

O farol do positivismo no Brasil seria transferido para o Rio Grande do Sul, onde a instalação do regime republicano foi sui generis, pois desde o início o novo governo foi dominado pelos positivistas, liderados por Júlio Prates de Castilhos (1860-1903).

Quando da Proclamação da República, em 1889, Castilhos recusou o cargo de presidente do Estado, e preferiu assumir como secretário do governo estadual. Ele estava convicto no intento de inaugurar uma nova fase positiva na política gaúcha, transformando as velhas práticas político-administrativas clientelistas do período imperial.

Em 1890, Júlio de Castilhos elegeu-se deputado no Congresso que iria elaborar a primeira Constituição da República, e logo identificou-se com a ala ultrafederalista, passando a defender o projeto político de inspiração positivista.

Em 1891, eleito presidente do Estado pela Assembléia Legislativa, Júlio de Castilhos redigiu - e fez aprovar quase que integralmente - a nova Constituição estadual. Era uma Carta extremamente autoritária, atribuindo ao presidente do Estado poderes extraordinários, tais como: nomear o vice-presidente, reeleger-se, atribuir papel meramente deliberativo ao Legislativo estadual e o voto descoberto. Castilhos pretendia criar no Rio Grande do Sul uma ditadura republicana comteana, e seus adeptos foram chamados de republicanos.

Do ponto de vista doutrinário, o positivismo não compartilha os princípios da representação eleitoral preconizados pela democracia liberal burguesa, e seu princípio de delegação política por meio da eleição à representação de cargos. Para os positivistas, o direito ao voto é um dogma metafísico e, dessa forma, Júlio de Castilhos acreditava na legitimidade do regime republicano em razão de razões históricas e científicas, e não por motivos metafísicos ou populares.

Com base nesse princípio, os castilhistas ficaram no poder no Rio Grande do Sul por quase 40 anos, primeiro com Castilhos, depois com Antônio Borges de Medeiros (1863-1961), que se elegeu sucessivamente quatro vezes para a presidência daquele Estado, e, finalmente, em 1928, com Getúlio Vargas (1883-1954).

No plano nacional, Vargas procurou implantar o positivismo castilhista. Em seus mandatos, notadamente no Estado Novo (1937-1945), procurou substituir a noção da representação eleitoral pela da hegemonia científica, na qual a ordem e o fortalecimento de um dirigente moralmente responsável concebe um regime promotor do bem-estar social rumo ao progresso.

Tendo influenciado poderosamente o movimento que levou à Proclamação da República, o positivismo foi a principal corrente de pensamento na formação intelectual dos militares que cursaram as escolas militares, influência que se estendeu às rebeliões tenentistas da década de 20. Em sua vertente gaúcha, o positivismo esteve presente na organização estatal formulada por Vargas e em seu projeto de desenvolvimento nacionalista burguês.

Quando, em 1964, os militares tomaram o poder alegando o desvirtuamento moral do período janguista, também podemos sentir um aroma comteano no ar. Auguste Comte, no entanto, não pode ser responsabilizado pelo que aconteceu em seguida.

sábado, 13 de agosto de 2016

O uso de documentos e a construção do conhecimento Histórico.



De modo geral, uma ideia do senso comum ainda predomina no universo escolar: a de que a disciplina História é uma “matéria fácil”, “qualquer um” pode lecionar; resume-se a decorar datas, nomes importantes e fatos políticos de relevância. O pior é constatar que essa forma de pensar revela-se notadamente como prática pedagógica, real, no cotidiano de milhares de professores de História espalhados pelo país. Fazer do ensino de História um mecanismo dinâmico para envolver os alunos na construção do conhecimento é um desafio para todos os professores. E um dos meios possíveis, dentre outros, para tentar superar o ensino tradicional é trabalhar com documentos em sala de aula. Nessa afirmação, encontra-se o objetivo do presente artigo: versar sobre o uso de documentos no ensino de História, revelando suas vantagens pedagógicas e apontando alguns procedimentos metodológicos indispensáveis ao professor quanto a sua aplicação em sala de aula. Para isso, apresentaremos um modelo de plano de aula para servir de exemplo didático.

Documentos no ensino de História

Um dos fundamentos principais do ofício do historiador é a análise de documentos. A historiografia no século XX ampliou as dimensões da pesquisa para o historiador ao valorizar todo e qualquer registro humano como uma fonte potencial de interpretação da sociedade. Os documentos, nessa perspectiva, são registros das ações humanas, seja de qualquer natureza: escritos, visuais, orais, monumentos etc.; são datados e localizados em tempos e espaços específicos; expressam o contexto histórico de uma dada época, pois revelam e evidenciam sentimentos, costumes, valores, ideologias etc.

No campo do ensino de História, trabalhar com documentos oportuniza aos alunos a possibilidade de compreender os sujeitos históricos e as realidades e formações sociais em seu devido tempo, em seu devido lugar. Em uma atividade didática, a qual se usa mais de um documento, como no nosso exemplo (ver plano de aula no final do artigo), o aluno terá a oportunidade de ler e confrontar os discursos, analisar as sujeitos, saberes e práticas. Semelhanças e diferenças entre eles, produzir as próprias opiniões e conclusões. O uso de documentos “(...) justifica-se pelas contribuições que pode oferecer para o desenvolvimento do pensamento histórico” [1].

A ideia que nutre e cimenta essa proposta é superar, fundamentalmente, a transmissão de conteúdos, cristalizados em diversos livros didáticos: “No ensino, espera-se que o aluno domine o fazer da pesquisa, saiba ler, interpretar e diferenciar documentos e linguagens, desenvolva suas habilidades operatórias, tornando-se um sujeito situado em seu tempo, com a dimensão da sua cidadania” [2]. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, por exemplo, na área de História, sugerem que o aluno domine os procedimentos metodológicos de leitura e análise de documentos e das mais diversas linguagens.

Mas, em síntese, quais as principais vantagens pedagógicas de se trabalhar com documentos em sala de aula? Uma ressalva importante: neste artigo, delimitamos a nossa exposição ao documento escrito, embora nossa discussão teórica acerca de alguns procedimentos metodológicos, em parte, se aplique a toda categoria de documento; um filme, uma fotografia, uma música, porém, por sua vez, em virtude da natureza de cada um, diferem um pouco do documento escrito na forma de abordagem. Veremos, abaixo, em linhas gerais, algumas dessas vantagens.

A dinamização das aulas

Foge da mesmice da aula expositiva, prática que predomina no espaço escolar. O aluno deixa de ser um mero espectador para ser um sujeito ativo no processo de ensino-aprendizagem: O professor de História pode ensinar o aluno a adquirir as ferramentas de trabalho necessárias; (...) ensinar o aluno a captar e a valorizar a diversidade dos pontos de vista. (...) A sala de aula não é apenas um espaço onde se transmite informações, mas onde uma relação de interlocutores constroem sentidos [3]. Essa prática redimensiona os papéis socais de professores e alunos: “(...) ensinar é estabelecer relações interativas que possibilitem ao educando elaborar representações pessoais sobre os conhecimentos, objetos de ensino e aprendizagem” [4].

O incentivo à preservação de documentos

O aluno será levado a perceber que, para onde direcionar o olhar, ele pode encontrar documentos: em casa, ao ver o álbum de fotografias da família, na escola, no monumento da praça, no arquivo municipal etc.; pode despertar no aluno o senso de ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. Cidadania, reforçando a importância de preservar o patrimônio histórico: “(...) os vestígios do passado se encontram em diferentes lugares, fazem parte da memória social e precisam ser preservados com patrimônio da sociedade” [5].

A contribuição para a construção do conhecimento histórico

Lucien Febvre, em Combates pela História, deixou um alerta para o historiador: no ato de interpretar a realidade, “(...) é preciso saber pensar” [6]. No tocante à leitura crítica de documentos, esse “saber pensar”, grosso modo, é possuir habilidades para “desconstruir” os discursos explícitos e implícitos contidos nos registros históricos. Essa habilidade pode ser desenvolvida paulatinamente na sala de aula a partir de alguns procedimentos como comparar, observar, descrever, interpretar e elaborar perguntas, atividades que devem ser explicitadas e orientadas pelo professor. Não obstante, uma questão torna-se pertinente, agora. Circe Maria Fernandes Bittencourt chama a atenção dos professores quanto aos cuidados que ele deve ter quando usar um documento com fins pedagógicos. Na preparação da aula, o professor precisa estabelecer claramente seus objetivos e participar ativamente da coordenação da atividade, fazendo o elo entre o documento e o aluno; precisa também selecionar documentos que sejam compatíveis com a faixa etária e o nível dos alunos; o objetivo não é transformar o aluno, ainda na educação básica, em historiadores, mas, sim, propiciar os meios, para que ele tenha algumas noções básicas na arte de interpretar documentos [7].

Essa construção ocorre, sob a orientação do professor e a participação dos alunos, a partir de um processo de reflexão: a leitura criteriosa e o debate gerado em torno dos documentos, as respostas produzidas a partir do questionário proposto, atividade que objetiva direcionar o debate, as opiniões e conclusões construídas pelos alunos podem provocar a revisão de conceitos e de idéias preestabelecidas nos livros didáticos. Esse trabalho sistemático com o uso de documentos enquadra-se naquilo que Luiz Carlos Villalta chama de metodologia da investigação, um procedimento didático metodológico que visa atingir um conhecimento histórico constituído a partir de “(...) procedimentos de desconstrução, reconstrução e construção de discursos: submetem-se os documentos e testemunhos históricos à leitura e observação, à crítica interna e externa, à elaboração de sínteses parciais e a contraposição de uns com os outros” [8]; o papel do professor seria reconstruir o conhecimento histórico, facilitar o seu acesso sujeitos, saberes e práticas.  No entanto, vale ressaltar que essa construção do conhecimento histórico não é criar algo novo, superar o saber já existente acerca de um determinado assunto, mas possibilitar ao aluno a oportunidade de refletir sobre o tema em debate, mostrar que a interpretação histórica é uma construção social elaborada por homens em determinados contextos. Dito isso, vejamos agora o nosso plano de aula, seguido de um comentário explicativo da atividade.

Documentos em sala de aula: um exemplo didático [9]

Plano de aula

Conteúdo: Escravidão e servidão. Série/Nível: 8ª Série do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Objetivos: Analisar documentos em sala de aula; incentivar a prática de leituras de documentos entre os alunos; identificar as permanências e mudanças, semelhanças e diferenças, em tempos e espaços diferentes, das relações escravistas ao longo da história. Conceitos: Documento; Processo Histórico e Escravidão. Dinâmica/Metodologia: Formação de grupos; leitura dos documentos e discussão a partir das questões propostas: Debate (confrontando os documentos). Avaliação: Análise das respostas e dos comentários das questões da atividade e participação no debate.

DOCUMENTO 1 - Bíblia Sagrada. Eclesiástico, 33, 25-33. Livro escrito por volta de 200 a.C. na Palestina, por Jesus, escriba de Jerusalém, filho de Eleazar, filho de Sirac. Era usado na Igreja para instruir os fiéis quanto aos preceitos da vida cotidiana. O texto foi traduzido, originalmente, do grego (ele circulava no tempo dos apóstolos) pela Igreja. O livro não faz parte da Bíblia protestante. [Texto adaptado] [10] COMPORTAMENTO COM OS ESCRAVOS – Para o jumento o feno, a vara e a carga. Para o escravo o pão, o castigo e o trabalho. O escravo só trabalha quando corrigido, e só aspira ao repouso; afrouxa-lhe a mão, e ele buscará a liberdade. O jugo e a correia fazem dobrar o mais rígido pescoço; o trabalho contínuo torna o escravo dócil. Para o escravo malévolo a tortura e as peias; manda-o para o trabalho, para que ele não fique ocioso, pois a ociosidade ensina muitas malícias. Ocupa-o no trabalho, pois é o que lhe convém. Se ele não obedecer, submete-o com grilhões, mas não cometas excessos, seja com quem for, e não faças coisa alguma importante sem ter refletido. Se tiveres um escravo fiel, que ele te seja tão estimado sujeitos, saberes e práticas. 4 como a ti mesmo. Trata-o como irmão, porque foi pelo preço de teu sangue que o obtiveste. Se o maltratares injustamente, ele fugirá; se ele for embora, não saberás a quem perguntar, nem onde deverás procurá-lo.

DOCUMENTO 2 – GAIO. Instituições, I, 52/3. Jurisconsulto romano (Juiz), indivíduo que se encarregava de pensar e fundamentar as leis romanas. Nessa obra, fez uma importante exposição do Direito Romano. [Texto adaptado][11] A respeito de escravos – “Os escravos devem estar submetidos ao poder de seus amos. Esta espécie de domínio já é consagrada no direito dos povos; pois podemos observar que, de um modo geral, em todos os povos, o amo tem sobre os escravos poder de vida e de morte, e tudo aquilo que se adquire por intermédio do escravo pertence ao amo. Mas, hoje em dia, não é permitido nem aos cidadãos romanos, nem a nenhum dos que se acham sob o império do povo romano, castigar excessivamente e sem motivo os escravos. Pois, em virtude de uma constituição do imperador Antonino, aquele que matar sem motivo seu próprio escravo é passível de sanção, da mesma forma que aquele que mata o escravo de outrem. Mesmo um rigor demasiado severo dos amos é reprimido por uma constituição do mesmo príncipe; com efeito, consultado por certos governantes de províncias a respeito da conduta a adotar para com os escravos que procuram asilo nos templos dos deuses ou junto às estátuas dos príncipes, ele decretou que, se a severidade dos amos resultasse intolerável, estes deveriam ser obrigados a vender seus escravos”.

DOCUMENTO 3 – Como se há-de haver o senhor do engenho com seus escravos. Texto de Cultura e opulência do Brasil, escrito em 1711 por João Antônio Andreoni, sob o pseudônimo de André João Antonil. O autor nasceu em 1649, na Itália. Faleceu na Bahia, em 1716. Veio ao Brasil em 1681, como membro da Companhia de Jesus. A obra só foi publicada integralmente no Brasil em 1837. [Texto adaptado][12] Capítulo IX – “Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles, no Brasil, não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. (...) No Brasil costumam dizer que para o escravo são precisos três PPP, a saber, pau, pão e pano. (...). Não castigar os excessos que eles cometem seria culpa não leve, porém, estes se hão-de averiguar antes, para não castigar inocentes, e se hão-de ouvir os delatados e convencidos, castigar-se-ão com açoites moderados ou com os meter em uma corrente de ferro, por algum tempo, ou tronco. Castigar com ímpeto (...) e chegar talvez aos pobres com fogo ou lacre ardente, ou marcá-los na cara, não seria para se sofrer entre bárbaros, muito menos entre cristãos católicos. O certo é que, se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o sustento e vestido e algum descanso no trabalho, se poderá também depois haver como senhor, e não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o justo e merecido castigo. (...) E bem é que saibam que isto lhes há-de valer, porque de outra sorte fugir por uma vez para algum mocambo no mato e, se forem apanhados, poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue a açoitá-los ou que algum seu parente tome a sua conta a vingança, ou com feitiço ou com veneno (...)”.

DOCUMENTO 4 – É uma matéria atual, “Nova servidão”, escrita pelo jornalista Leonardo Sakamoto, em 2002, e publicada na revista Problemas Brasileiros, de São Paulo. “Nos dias 13 e 14 de dezembro passado, foram resgatados 54 trabalhadores rurais que estavam sob condições degradantes de trabalho na fazenda Peruano, município de Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará. (...) Pessoas não eram pagas havia meses, recebendo apenas arroz, feijão e alojamento – pequenas barracas de madeira, palha ou lona, em que se amontoavam 10, 20 redes. A água, suja e imprópria, servia para consumo, banho e lavagem de roupa. (...) José Carlos Filho, 62 anos, foi encontrado doente na rede de um dos alojamentos e internado às pressas. Tremia havia três dias, não de malária ou de dengue, mas de desnutrição. No hospital, contou que estava sem receber fazia três meses, mesmo já tendo finalizado o trabalho quase um mês antes.

O gato teria dito que descontaria de seu pagamento as refeições feitas durante esse tempo parado. Vida de gado – A pele de Manuel se transformou em couro, curtida anos a fio pelo sol da Amazônia e pelo suor de seu rosto. (...) Trabalhava de domingo a domingo, mas nada de pagamento, só feijão, arroz e a lona para cobrir-se de noite. Um outro tipo de cerca, com farpas que iam mais fundo, o impedia de desistir: “O fiscal de serviço andava armado [gato]. Se o pessoal quisesse ir embora sem terminar a tarefa, eles ameaçavam, e aí o sujeito voltava”. Na hora de acertar as contas, os gatos informaram que Manuel e os outros tinham "comido" todo o pagamento e, se quisessem dinheiro, teriam de ficar e trabalhar mais. “Eles dizem que a lei não entra na fazenda.”

Comentário

O professor precisa entregar aos alunos um roteiro de perguntas para orientar a discussão; deve apresentar sucintamente algumas informações acerca de cada documento: seria uma espécie de sinopse, com indicações de autor, da origem e da data do texto. Antes, deve pedir aos alunos que leiam com atenção, observando detalhes importantes e fazendo anotações. Um primeiro eixo de perguntas deve descrever os documentos: quando foram escritos? Qual a diferença, em anos, de um documento para o outro? Quem escreveu? Qual o título de cada documento? O segundo eixo de perguntas consiste na análise interna dos documentos: qual a temática central de cada um? Segundo o documento 1, como o senhor deve tratar o escravo? No texto 2, comente como deve ser a relação cidadão/escravo. Há alguma semelhança com o documento 1? No texto 3, o que quer dizer a seguinte expressão: “Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho” ? No texto 3, há sinais e indicações de algumas formas de resistência dos escravos? Comente. Quanto ao texto 4, as condições de trabalho são parecidas com a dos escravos? Comente. Que sujeitos aparecem nos documentos? Em linhas gerais, quais as semelhanças e diferenças entre os documentos? O documento 1 e 2 apresentam algumas semelhanças quanto ao tratamento dispensado aos escravos: falam em castigos, que devem ser firmes quando necessário, mas sem cometer excessos injustamente. O documento 1 revela que “a ociosidade ensina muitas malícias”, portanto, fala em resistência e suas mais variadas formas. O documento 3 caminha nessa mesma linha: no texto aparece a preguiça, a fuga, a vingança contra os senhores, o suicídio e o feitiço como formas de resistência. No documento 4, as condições de trabalho e de sobrevivência dos trabalhadores na fazenda Peruano apresentam semelhanças gritantes com os escravos dos documentos 1 e 3. Nele, aparece a figura do gato, que anda armado e intimida os trabalhadores; lembra a figura do capataz e do capitão do mato no Brasil colonial. Em síntese, muitas questões podem ser abordadas, conceitos podem ser construídos e revistos a partir do confronto entre os documentos.

Uma atividade didática com documentos, a exemplo do plano de aula ora exposto, apresenta algumas vantagens: oferece uma visão de diversos contextos históricos, evidenciando a construção de discursos e os mecanismos ideológicos que justificam a escravidão até chegar ao presente, a realidade do contexto social próxima do aluno; revela aos alunos que a história da sociedade humana é pura transformação, um processo complexo de mudanças, mas também de permanências; mostra que a escravidão não é uma prática morta e enterrada no passado, mas que determinadas características e situações concretas de trabalho compulsório encontram-se presentes ainda, guardadas as devidas proporções, em algumas regiões do mundo e do Brasil; revela aos alunos que a história “não caminha” numa perspectiva linear, pois “O conhecimento histórico procura ver (...) as mudanças e as permanências pelas quais passam ou passaram as diferentes sociedades humanas.”[14].

sábado, 6 de agosto de 2016

Revisionismo histórico



Revisionismo histórico é o estudo e a reinterpretação da História, baseado na ambiguidade dos fatos históricos e na imparcialidade com que esses fatos podem ter sido descritos. Segundo o criador do positivismo Auguste Comte, "a História é uma disciplina fundamentalmente ambígua" e portanto, passível de várias interpretações.

A palavra “Revisionismo” deriva do Latim “revidere”, que significa ver novamente. A revisão de teorias guardadas há muito tempo é perfeitamente normal. Acontece nas ciências da natureza assim como nas ciências sociais, à qual a disciplina da história pertence. A ciência não é uma condição estática. É um processo, especialmente para a criação de conhecimento pela pesquisa de provas e evidências. Quando a investigação decorrente encontra novas provas ou quando os pesquisadores descobrem erros em velhas explicações, acontece frequentemente que as antigas teorias têm que ser alteradas ou até abandonadas.

Qualquer episódio da historiografia mundial pode e deve ser revisado

Por “Revisionismo” queremos dizer investigação crítica baseada em teorias e hipóteses no sentido de testar a sua validade. Os cientistas precisam de saber quando novas provas modificam ou contradizem velhas teorias; na realidade, uma das suas principais obrigações é testar concepções tradicionais e tentar refutá-las. Apenas numa sociedade aberta na qual os indivíduos são livres de desafiar teorias comuns é nós podemos certificar a validade dessas mesmas teorias, e estar confiantes de que estamos a aproximarmo-nos da verdade. Para uma discussão completa sobre isto, o leitor deve conhecer por si mesmo o ensaio do Dr. C. Nordbruch em Neuer Zürcher Zeitung, 12 de Junho de 1999. […]

Nos últimos anos o acesso mais democrático a documentos históricos fez com que a própria história pudesse ser “reescrita” ou, então, reinterpretada. Foi desta forma que “tudo passou a ser história”, “tudo passou a ser fonte histórica”, em um movimento que começou na França do final dos anos 1920 e ganha força a cada dia – movimento este conhecido como Escola dos Annales. Atualmente, graças às digitalizações e à internet, é possível ao pesquisador ter acesso a documentos, por exemplo, do acervo histórico-nacional da França, dos Estados Unidos, do Brasil, da Argentina etc.

Graças a esta movimentação de tudo ser fonte a possibilidade de estudar e interpretar os fatos aumentou enormemente. Veja, por exemplo, que não falamos mais do “descobrimento do Brasil” ou “descobrimento da América”, mas sim em “conquista do Brasil”, “colonização da América” etc.

Assim, revisionismo histórico é o estudo e a reinterpretação da própria história, baseado na ambiguidade dos fatos históricos e dos documentos analisados, além da imparcialidade com que esses fatos podem não ter sido descritos, uma vez que é sabido que proceder à imparcialidade é um processo bastante árduo para qualquer profissional formado dentro de qualquer concepção ideológica. Segundo o criador do Positivismo, Auguste Comte, “a história é uma disciplina fundamentalmente ambígua” e, portanto, passível de várias interpretações.

Embora seja de interesse acadêmico, uma espécie de “censura” ainda impede e/ou limita a pesquisa de revisão histórica porque envolve importantes interesses políticos, econômicos e sociais; como, por exemplo, a reescrita da história recente no Brasil, na Argentina e no Uruguai com relação às suas ditaduras militares e a associação dos governos dos Estados Unidos nestes procedimentos. A abertura dos arquivos secretos norte-americanos pelo movimento WikiLeaks foi de tremenda importância neste processo de revisionismo da história, quando descobrimos os bastidores políticos dos grandes atores da gerência mundial.

As universidades e o revisionismo

Embora seja de interesse acadêmico, devido ao uso ferramentas além da censura essas pesquisas muitas vezes são limitadas nas universidades onde se originam, devido à frequentemente envolver interesses políticos de pessoas que nem sempre estão dispostos a testemunhar contra si próprios. Desse modo, criou-se uma doutrina em torno do assunto que torna impraticável o bom uso dessa disciplina, e apenas alguns poucos países como a França, consideram o revisionismo histórico um estudo importante, por entenderem que os alicerces da História não podem apoiar-se sobre fundamentos, às vezes sem nexo, preenchidos com fatos mitológicos e a com a imaginação daqueles que descrevem a História.

Devido à isso, o uso do revisionismo histórico dentro das universidades ficou restrito apenas à reinterpretação de trechos históricos previamente censurados, ou "se houvesse" surgimento de novos dados ou novas análises mais precisas, que viabilizem o cruzamento de dados já conhecidos mas que não foram considerados.

Em pesquisas independendentes porém, seu campo é mais amplo e não existem restrições e barreiras políticas. Porém, quando os resultados dessas investigações independentes vem ao conhecimento publico, sofrem as mais diversas críticas dos historiadores, e algumas vezes são considerados crime de espionagem ou práticas pseudocientíficas e portanto ilegais, mesmo que a investigação seja fruto de contra-espionagem retirada de fatos constantes em arquivos censurados em época anteriores. Isso é muito comum em investigações de fatos que ocorreram durante ditaduras militares em países como o Brasil e a Argentina, que ainda nos dias atuais mantêm fechados os acessos a esses arquivos.



quinta-feira, 28 de julho de 2016

Alguns conteúdos e procedimentos que promovam o ensino-aprendizagem de História



As dificuldades encontradas no ensino de História podem residir tanto no conteúdo selecionado como nos procedimentos com que são trabalhados. Para superar esse fatalismo, torna-se necessário buscar a compreensão da realidade do aluno; despertar a curiosidade dele em relação ao conteúdo e, ainda desenvolver nele instrumentos de conhecimento da sua vida a partir do ensino de História. O professor pode apresentar uma “História viva” para os alunos e não uma coletânea de fatos passados sem nenhuma relação com o presente.

A partir do momento em que a História passa a ser ensinada como uma disciplina, o cenário predominante na maioria dos programas escolares é a transmissão de longos e enfadonhos conteúdos, que pretendem abordar desde tempos pré-históricos até os nossos dias, em que nem esse “longo tempo”, estudado de forma periodizada, é alvo de questionamento (BERGAMASCHI, 2000, p. 40).

No entanto, como critério de seleção dos conteúdos principais, o professor não deveria se preocupar simplesmente com a memorização de muitos dados, mas que os alunos saibam refletir e analisar de maneira profunda elementos que os auxiliem na compreensão da vida do homem. Porém, segundo Lück (2007, p. 21), “os professores, no esforço de levar seus alunos a aprender, o fazem de maneira a dar importância ao conteúdo em si e não à sua interligação com a situação da qual emerge, gerando a já clássica dissociação entre teoria e prática”.

O professor deve estar consciente de que não esgota na escola o processo de conhecimento, mas introduz o aluno nessa questão. O importante é que essa introdução seja significativa, carregada de sentido para o aluno. Acrescenta Penteado (1991, p. 160): “Não cabe ao professor e à escola saciar a curiosidade, mas sim alimentá-la, deixando instrumentos com o aluno que lhe possibilitem ser, cada vez mais, indagativo, reflexivo. Assim estará inserido no caminho do ser criativo e transformador”.

Da mesma forma, o professor não deve priorizar o estudo de todas as datas históricas, mas as principais que localizem os alunos no tempo. É importante que os alunos conheçam datas-chave que lhes sirvam de referência para situar o fato dentro de um período. Ressalta Nidelcoff (1993, p. 56): “Quando tratarmos do aprendizado da História, veremos que também aí é necessário que a criança tenha como esquema de referência uma ‘coleção’ de datas muito importante. O que de nenhuma maneira implica em dar uma importância preponderante à memorização”.

Cabe ao professor dar sentido às datações, para que o aluno domine algumas datas principais como pontos referenciais para o entendimento dos acontecimentos históricos. Diz Bittencourt (2004, p. 211): “apenas conhecer datas e memorizá-las, como se sabe, não constitui um aprendizado significativo, a não ser que se entenda o sentido das datações”. Nesse sentido, também vale situar o aluno na associação entre o século e o tema em estudo. Porém, não raro os alunos do ensino fundamental têm dificuldades de fazer tal associação, o que reafirma a necessidade do professor realizar constantemente o “teste de sondagem” em sala de aula.

O domínio de conceitos básicos também é fundamental para assegurar a sistematização dos conteúdos. Segundo Carretero (1997, p. 34-35), os conceitos históricos são fundamentais no processo de aprendizagem. Deve-se considerar que muitos conceitos possuem um nível de abstração elevado, ainda exigem a compreensão de outros conceitos e também são “mutantes”, ou seja, não possuem um significado único ao longo da História. Daí a importância de saber que o conhecimento histórico passa pela mediação de conceitos. Sem esses conceitos o ensino de História torna-se inviável.

Propondo uma nova alternativa para o ensino de História, Neves (1985, p. 8) ressalta que “para romper com a periodização tradicional e, na seleção de conteúdos, afastar-se de fatos consagrados pela erudição e, em contrapartida, enfatizar aspectos da vida humana tradicionalmente menos considerados” o professor pode selecionar o cerne da História, o tempo, alterando a sua percepção, ou seja, acabar com a visão evolucionista, pautada no progresso, em um tempo linear (sem cortes ou retornos), contínuo e curto. Ainda, segue a autora, o professor precisa dar vida ao homem trabalhado na História.

Para isso, deve fazer o aluno senti-lo no cotidiano, levá-lo perceber que, como ele, este homem enfrentava problemas para sobreviver e conviver. Concretizá-lo como um ser que necessitava alimentar-se, vestir-se, trabalhar, divertir-se; que ficava doente, amava, temia... Libertá-lo da aberração representada pela visão de um homem histórico, exclusivamente político, extremamente abstrato e distante para ele (NEVES, 1985, p.8). Isto porque, a História não deve ser vista como um passado-passado, importante apenas na composição da linha evolucionária da humanidade, mas como um passado-presente, que explique processos aparentemente contraditórios. Enfim, que conscientize o aluno da dialética entre a mudança e a permanência. O professor de História poderá priorizar um conteúdo que “levará os alunos a se conhecerem através do conhecimento dos outros homens em geral: os homens da sua localidade, do seu tempo, de outras localidades, de outros tempos” (NIDELCOFF, 1993, p. 7).

 Para tanto, o professor pode instigar os alunos a conhecer e analisar a realidade que os rodeia, começando com o “estudo do meio” e, aos poucos, estendendo o olhar dos alunos para novos horizontes. Da mesma forma, Miceli (1992, p. 34) propõe uma “história militante”, onde estudo e vivência pudessem, de alguma forma, permanecer juntos. Segundo a autora, “a tarefa que se impõe é a de retificação radical da história tradicional que alimenta a memória coletiva” (MICELI, 1992, p.34).

Repensar a História requer repensar o sentido do próprio conhecimento, o que significa não somente a eleição de novos fatos ou acontecimentos, mas uma nova relação com esses e quaisquer outros fatos. Esclarece Miceli (1992, p. 34), “nenhum tema possui, em si, uma carga maior ou menor de ‘historicidade’; é a relação que com ele estabelece quem o trabalha que pode ou não fazer dele um tema histórico”. Através do aprendizado da História os alunos podem compreender o presente, vendo o mundo como um longo processo. Isto justifica a presença e a importância da disciplina História na escola. Nesse sentido, destaca Nidelcoff: A compreensão do mundo que nos rodeia e suas características, a procura de uma resposta às perguntas que a época atual nos apresenta, levam-nos sempre ao passado, à origem do processo que estamos observando e vivendo [...] não existe maneira de responder sem apelar para a História.

Sua contribuição é insubstituível (NIDELCOFF, 1993, p. 68). Portanto, torna-se fundamental deixar de lado conteúdos que são fixados por hábito, mas que não trazem nenhuma contribuição para o entendimento do presente. Assim, o tempo gasto com conteúdo inadequado, pode ser utilizado para trabalhar com temas mais significantes na atualidade. Como destaca Nidelcoff: Não basta ensinar “fatos que ocorreram no passado” para dar às crianças elementos para que compreendam o presente. Muitas maneiras erradas de dar História não se tornam apenas uma sucessão angustiante e inútil de nomes e datas, mas chegam a se tornar inibitórias para um enfoque posterior, mais inteligente, desses fatos (NIDELCOFF, 1993, p. 70).

Quanto aos métodos, os alunos precisam ver a História como algo vivo no presente. E, cabe ao professor ajudar o aluno a ver essa vinculação. O exercício de vínculo com o presente deve ser permanente, comparando semelhanças ou diferenças, procurando no presente as consequências do passado e no passado à explicação do presente. Para tanto, noções espaço-temporais ajudam o aluno a compreender a realidade vivida, por isso exercícios com mapas e linhas de tempo são identificados como primordiais para aprendizagem. Isto porque a linha de tempo além de envolver uma série de informações também oferece uma grande possibilidade de abstrações. Já o mapa pode servir como maneira de representar, decompor, analisar e recompor o espaço geográfico, enfim como instrumento auxiliar na construção do conceito de espaço. Portanto, torna-se necessário à realização de exercícios práticos e a teorização dessas atividades. Sobre isso, acrescenta Nidelcoff: Não basta localizar no mapa onde estão a Mesopotâmia ou a Grécia; as crianças têm que compreender a vida de um povo no passado em relação a um determinado meio geográfico, que possibilita certos progressos em sua cultura e as limita em outros aspectos: o clima, a fertilidade ou a aridez das terras que permite uma ou outra forma de exploração econômica, a presença de bosques, de pedras, de metais, localização: isolado ou com muitas possibilidades de comunicação, etc. (NIDELCOFF, 1993, p. 77)

Porém, como bem ressalta Fonseca (2005, p. 46), “o peso da tradicional historiografia e a concepção de história de pais, alunos e muitos professores – identificada, muitas vezes, apenas como grandes feitos dos heróis – dificultam a incorporação de novos campos temáticos, de novos problemas e fontes”, como enfatizam as novas correntes historiográficas. Mesmo assim, o esforço para superar as velhas barreiras do ensino tradicional deve ser constante. Bergamaschi (2000) também destaca outra maneira de diversificar o ensino de História, utilizando-se de eixos temáticos. Para a autora, trabalhar com eixo temático significa “destacar um problema ou tema do cotidiano e que, partindo do presente vivido, refletido e sistematizado, busca a apreensão de outras realidades no tempo e no espaço, também a partir de um referencial que redimensiona a relação com o passado histórico” (BERGAMASCHI, 2000, p. 90). Como já foi dito, os alunos levam para a escola suas experiências sociais. Então, torna-se importante propor na sala de aula uma atividade de levantamento ou problematização de situações vivenciadas pelos alunos. Atividades de leitura e compreensão de textos também podem ser sugeridas para posterior ligação com as vivências dos alunos. Dessa forma, o aluno terá oportunidade de aprofundar e reexaminar sua própria realidade.  Funari (2007, p. 101) cita algumas estratégias importantes em sala de aula. Para o autor, atividades com história em quadrinhos e palavras cruzadas, por exemplo, por mais triviais que possam parecer, são mais interessantes para o aluno e alcançam resultados muito melhores do que a simples memorização, sempre temporária de conteúdos.

Atividades que envolvam fontes ou documentos diversificados também são imprescindíveis, pois estimulam a observação e reflexão do aluno que passa a descobrir os fatos através dos documentos e não, exclusivamente, através do conhecimento fornecido pelo professor. Porém, alguns cuidados são essenciais, pois como dizem Rodrigues e Padrós: A fragmentação, a pasteurização e a banalização da informação são características marcantes da pós- modernidade. A existência de uma superinformação sem reflexão coincide com a construção de um conhecimento fragmentado e desconectado da realidade com os atores sociais concretos (RODRIGUES; PADRÓS, 2000, p. 123).  Maiores informações em Di Giovanni (1994, p. 27).

A mídia, por exemplo, tem a pretensão de vender a sua verdade e de impô-la como única e histórica. Assim cabe ao professor mediar o registro do fato pela mídia e a sua compreensão enquanto conhecimento histórico. Neves (1985, p. 6) cita uma série de características que podem estar presentes no ensino de História. Para a autora, a História deve ser: História-problema, ao invés da narrativa que tradicionalmente caracteriza a disciplina; História construída a partir do presente; História-reflexão, que indubitavelmente leva ao desenvolvimento crítico e, finalmente, História síntese, que busca a capacitação das estruturas essenciais.

Para tanto, Neves (1985, p. 59-60) ressalta diferentes métodos que podem ser utilizados nas aulas de História. Considera importante trabalhar com grupos de discussão, pois “a criança tem o egocentrismo diminuído, com conseqüente aumento da cooperação”. Outra alternativa sugerida é a ficha-síntese de texto, quando o pensamento do autor é traduzido pelo aluno para uma forma sintética. Acrescenta a autora: sabemos da dificuldade de apreensão das idéias centrais que se faz presente na maior parte da população brasileira, incapaz de separar nitidamente o que é essencial do que é acessório. É obrigação da escola impedir tal condicionamento m(NEVES, 1985, p. 66-67). A criação de vocabulários históricos ilustrados, precedidos de desenhos feitos pelas crianças, é outra ideia ressaltada pela autora.

Para finalizar, acrescenta Neves (1985, p. 90): “Qualquer atividade lúdica é magnificamente aceita pelos alunos de qualquer faixa etária”. Nesse sentido, vale apostar em alguns jogos didáticos que podem ser adaptados aos conteúdos de História, servindo como atividades atraentes e interessantes ao próprio desenvolvimento dos alunos. Simples jogos de cartas de baralho e de xadrez, por exemplo, dependendo da criatividade do professor e interação dos alunos, muito podem contribuir nas atividades do 6° e 7° anos do ensino fundamental. Outra ideia interessante é a de Vasconcellos (1999). A autora propõe a substituição do livro didático por uma pasta elaborada e organizada pelos alunos. Isto seria possível, diz a autora, “a partir de pesquisa, com recortes Josiane Alves da Silveira de textos didáticos, jornais, revistas, fotografias, cartões postais, documentos históricos, entrevistas, mapas, etc.” (VASCONCELLOS, 1999, p. 118). Para o aluno não ficar limitado ao livro didático também seria interessante realizar com os alunos um trabalho crítico com diversos livros didáticos.

Com bem destaca Fonseca (2005, p. 55-56), não é possível conduzir o ensino de História sem texto escrito. Assim, para abolir o livro didático nas aulas de História, o professor precisa organizar textos alternativos. O livro didático pode ser usado, mas não como uma fonte única de conhecimento histórico, tampouco com uma postura acrítica do conhecimento veiculado. Complementando a ideia de Fonseca, diz Di Giovanni: O texto escrito é material básico no processo ensino aprendizagemda História. Cabe ao professor de História ensinar a ler História num caminho que, saltando da compreensão linear da “simples” tradução de vocábulo, passe para um aprofundamento da apreensão do significado do texto como um todo, levando o aluno a exercitar suas operações mentais e a descobrir o sentido e a intenção daquilo que ele lê (DI GIOVANI, 1994, p. 26). O cinema também pode ser um recurso de que pode lançar mão o ensino de História. O professor pode utilizar filmes, por exemplo, como uma alternativa metodológica ao ensino de História, porém deve ter o cuidado de tratá-los, “não como portadores de verdades, mas sim como interpretação de uma realidade” (VASCONCELLOS, 1999, p. 118). A utilização de diferentes documentos pode facilitar o ensino de História, porém deve ficar claro para o aluno que um filme, uma canção, uma notícia de jornal, não representam a verdade absoluta, mas uma interpretação desta mesma realidade. Enfim, cabe ao professor à tarefa de fazer do ensino-aprendizagem um convite para os alunos subverterem as fronteiras impostas entre as diferenças socioculturais.

Sair desse reprodutivismo excludente requer, além de enfrentar o falso conforto da menoridade intelectual, combater argumentos e práticas dos ideólogos neoliberal/conservadores, particularmente, a suposição de que professores e alunos são um vazio preenchido por ordens governamentais ou empresariais ao bel-prazer dessas autoridades. Nesses Ensino de história: na busca de novas termos, a defesa inclui a consideração de escola e ensino enquanto espaços de disputa intelectual e política, evidenciando que aquele direito começa a ser exercido desde já (SILVA, 2000, p. 122).

Silva (2000) defende o direito a História, o que significa tanto para professores como para alunos e população em geral o direito ao conhecimento histórico, englobando o saber acumulado e o saber em produção. Como destaca Fonseca (2005, p. 72), “não há educação e ensino sem professor, e o professor de história é uma pessoa que está na história, assim como a faz, sofre, desfruta e transforma”. Porém, na lógica do “pensamento único”4 os professores são apenas transmissores secundários na escola que serve como depósito de seres durante uma etapa da vida considerada improdutiva. Os verdadeiros instrumentos educativos no “pensamento único” são as mídias eletrônicas. Assim, a escola e o ensino de História são vistos como anacrônicos. Isto porque, tanto a escola como o ensino de História tem o poder de promover o pensamento crítico, o que não é permitido na lógica do descarte, principalmente dos seres humanos.

Para impedir que o “pensamento único” alastre-se pelo campo da História, esterilizando debates e reflexões, são apresentadas, no subtítulo seguinte, as entrevistas com professoras de História. Busca-se, com isso, manter viva a pesquisa sobre o ensino de História, respondendo a algumas indagações sobre o ensino de História e, mais do que isso, proporcionando novos questionamentos que promovam o constante repensar desse mesmo ensino.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

O Positivismo de August Comte no Brasil


Rafael Augusto Sêga      

Bernjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) como ministro da Instrução Pública reformulou todo o ensino brasileiro de acordo com as ideias de Augusto-Comte.
Não obstante, essa corrente de pensamento também se faz presente no dístico de nosso maior símbolo pátrio, a bandeira: Ordem e Progresso. É curioso, mas a tentativa mais efetiva de colocar em prática a doutrina positivista, uma ideologia tipicamente francesa, foi realizada em um país latino-americano: o Brasil.

Como isso aconteceu?

A pergunta exige o conhecimento de certos aspectos das origens e dos fundamentos do pensamento positivista ainda na França no século XIX, para mostrar sua chegada e ascendência sobre o pensamento brasileiro dentro do contexto histórico e cultural da época.

O avanço científico europeu do início do século XIX, decorrente da Primeira Revolução Industrial, fez com que o homem acreditasse em seu completo domínio da natureza. O positivismo surgiu nessa época como uma corrente de pensamento que apregoava o predomínio da ciência e do método empírico sobre os devaneios metafísicos da religião.

Nesse sentido, o movimento intelectual erigido por Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte, ou simplesmente Auguste Comte (1798-1857), defendia que todo saber do mundo físico advinha de fenômenos "positivos" (reais) da experiência, e eles seriam os únicos objetivos de investigação do conhecimento.

Comte sustentava a existência de um campo de ação, no qual as idéias se relacionavam de forma lógica e matemática e, por fim, toda investigação transcendental ou metafísica que não pudesse ser comprovada na experiência deveria ser desconsiderada.

As raízes do positivismo são atribuídas ao empirismo absoluto de David Hume (1711-1776), que concebia apenas a experiência como matéria do conhecimento e também a Ilustração, ou Iluminismo, que apregoava a razão como base do progresso da história humana.

Dessa forma, o positivismo é fruto da consolidação econômica da revolução pela burguesia, expressa nas Revoluções Inglesa do século XVIII e Francesa de 1789. As ciências empíricas passaram a tomar frente às especulações filosóficas meramente idealistas e Comte buscou a síntese do conhecimento positivo da primeira metade do século XIX, especialmente da física, da química e da biologia.

Seu objetivo era a formulação de uma "física" social (a "sociologia") que reformulasse o quadro social instável decorrente das novas relações de trabalho do capitalismo industrial.

Na primeira fase de seus trabalhos, Comte teve como mentor o teórico do socialismo utópico, o conde de Saint-Simon (Claude-Henri de Rouvroy, 1760-1825). Em sua obra Curso de filosofia positiva (1830-1842), Comte expõe a base de sua doutrina cujos alicerces teóricos estão assentados na norma de três estados do desenvolvimento humano e do conhecimento, o teológico, o metafísico e o positivo.

Na fase teológica o ser humano entende o mundo a partir dos fenômenos da Natureza dando a eles caráter divino. Essa fase encerra-se no monoteísmo. Na fase metafísica, a interpretação do mundo é calcada em conceitos abstratos, idéias e princípios.

Por fim, na fase positiva o ser humano limita-se a expor os fenômenos e a fixar as relações constantes de semelhança e sucessão entre eles. Nessa fase, as causas e as essências dos fenômenos são deixadas de lado para se evidenciarem as leis imutáveis que nos regem, pois o conhecimento destina-se a organizar e não a descobrir.

O fim da filosofia é a organização das ciências, hierarquizadas, segundo Comte, em seis. Na base dessa pirâmide está a matemática, seguida da astronomia, física, química, biologia e sociologia. Em outra obra sua, Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), Comte parte das feições reais do termo "positivo" para atingir uma significação moral e social maior, a fim de reorganizar a sociedade, com a supremacia do amor e da sensibilidade sobre o racionalismo.

O apogeu dessa tese é a religião da humanidade. A filosofia positiva passa, então, a preconizar também uma teoria de reforma da sociedade e uma religião. A unidade do conhecimento positivo passa a ser coletiva em busca da fraternidade universal e da convivência em comum. A junção entre teoria e experiência é baseada no conhecimento das ações repetitivas dos fenômenos e sua previsibilidade científica.

Assim, é possível o aprimoramento tecnológico. O estágio positivo corresponde à atividade fabril e à transformação da natureza em mercadorias. Se entendermos a ciência como a investigação da realidade física, o positivo é o objeto e o resultado dessa investigação. Dessa forma, a sociedade também é passível dessa análise e a fase positiva será caracterizada pela passagem do poder político para os sábios.

Fragmentação do pensamento

A segunda fase dos trabalhos de Comte é representada em sua obra Sistema de política positiva (1851, 1854), que preconiza a "religião da humanidade", cuja liturgia é baseada no catolicismo romano, estabelecida em O catecismo positivista (1852).

Destarte, a doutrina positivista adquire feição religiosa com credo na ciência. Essa divisão do pensamento comteano também separou seus seguidores em duas correntes: os ortodoxos, que seguiram Comte em seu período religioso; e os heterodoxos, que se conservaram perseverantes ao período científico e filosófico do positivismo.
O líder dos heterodoxos, Émile Littré, autor de Fragmentos de filosofia positiva e sociologia contemporânea (1876), concebeu o período religioso de Comte como um atraso. Já o ortodoxo Pierre Laffitte chegou a sacerdote máximo da chamada religião da humanidade.

As teorias científicas de Comte sofreram severas críticas de ordem metodológica, principalmente por desconsiderarem os procedimentos hipotéticos e dedutivos. Entretanto, o positivismo causou forte eco tanto nas doutrinas utilitaristas e pragmáticas de vertente americana.

Embora o positivismo seja julgado metodologicamente ultrapassado por transformar a ciência em objeto de reflexão da filosofia, a epistemologia comteana é possuidora de consideráveis princípios filosóficos que tentam determinar o homem em relação a sua atividade e espaço histórico. Atualmente, traços positivistas são identificados em diferentes atividades no mundo ocidental, e especialmente no Brasil.

Na verdade, o Brasil, país latino-americano, se transformou numa segunda pátria do positivismo. O pensamento positivista chegou ao Brasil em torno de 1850, e foi trazido por brasileiros que estudaram na França; alguns tinham até mesmo sido alunos de Comte.

A presença da doutrina positivista, em sua fase científica, no Brasil, tornou-se visível a partir de 1850, quando apareceu na Escola Militar, depois no Colégio Pedro II, na Escola da Marinha, na Escola de Medicina e na Escola Politécnica, no Rio de Janeiro. Já o positivismo de vertente religiosa pôde ser atestado no Apostolado Positivista, a partir de 1881, fruto da iniciativa de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira.

A atuação do positivismo no Brasil foi uma reação filosófica contra a doutrina confessional católica, até então única reflexão intelectual existente no país. Nessa luta no campo das idéias figuraram também o naturalismo e o evolucionismo.

No Brasil, a marca inicial do positivismo mais aceita é a publicação do livro de Luís Pereira Barreto As três filosofias, em 1874, e também, dois anos mais tarde, a fundação da Sociedade Positivista Brasileira (origem da Igreja da Humanidade) no Rio de Janeiro. Contudo, o núcleo irradiador do positivismo seria transferido para Recife, por iniciativa de Tobias Barreto e, depois, Sílvio Romero e Clóvis Bevilácqua.

O positivismo que se assenhoreava no Brasil moldava-se ao país e adquiria o perfil de doutrina com influência geral, e aceita por um grupo reduzido de estudiosos, composto por duas facções: os ortodoxos e os dissidentes. Miguel Lemos e Teixeira Mendes lideravam o primeiro, e um número de políticos com visão monárquica positivista, junto com Luís Pereira Barreto, Tobias Barreto e Sílvio Romero lideravam o último, e buscavam em Comte a fundamentação teórica para a República.

O republicanismo brasileiro, nascido da Convenção de Itu, de 1870, gerou duas alas: a liberal-democrática, de inspiração americana, e a autoritária, de inspiração positivista. Todavia, em um primeiro momento, o programa do Partido Republicano estava muito mais preocupado com o combate objetivo ao Império do que com querelas doutrinárias. Nessa fase destacam-se os nomes dos chamados republicanos históricos, como Silva Jardim, Aníbal Falcão e Demétrio Ribeiro.

A atuação doutrinária levada a cabo por Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891), professor da Escola Militar e defensor do princípio positivista da valorização do ensino para alcançar o estado sociocrático, ganha destaque nesse contexto. Contudo, se para Comte o ensino, no continente europeu, deveria ser destinado às camadas pobres, no Brasil essa meta foi impossível, devido ao baixíssimo nível de instrução do proletariado nacional. Assim, a transmissão dos ensinamentos positivistas acabou se restringindo aos poucos que estudavam nas escolas militares.

A atividade doutrinária bem no interior da massa pensante das forças armadas brasileiras foi fundamental para criar um espírito de corpo na caserna, pois boa parte da oficialidade se achou imbuída do destino histórico de implantar um regime republicano que fosse fundamentado na razão e na ciência positivista.

Os republicanos jacobinos, radicais, combatiam os monarquistas e os republicanos liberais, e apregoavam a implantação de uma república temporária e ditatorial, com o fim de se alcançar a sociocracia preconizada por Comte. Ocorreu, assim, uma cisão no movimento republicano, e até mesmo entre os positivistas, pois no episódio de 15 de novembro de 1889 sentimos a presença dos positivistas dissidentes (militares seguidores de Benjamin Constant), em detrimento dos ortodoxos (civis seguidores da Igreja Positivista).

O positivismo tornou-se uma filosofia fundamental no debate político no Brasil do século XIX, uma vez que o regime republicano foi instalado sob sua égide teórica. O 15 de novembro pode ser considerado o ápice do positivismo no Brasil, em razão da grande quantidade de adeptos de Auguste Comte que assumiram cargos de relevo no novo regime (Benjamin Constant chegou a ministro da Guerra).

Foram numerosas as influências do positivismo na organização formal da República brasileira, entre elas o dístico Ordem e Progresso da bandeira; a separação da Igreja e do Estado; o decreto dos feriados; o estabelecimento do casamento civil e o exercício da liberdades religiosa e profissional; o fim do anonimato na imprensa; a revogação das medidas anticlericais e a reforma educacional proposta por Benjamin Constant.

O farol do positivismo no Brasil seria transferido para o Rio Grande do Sul, onde a instalação do regime republicano foi sui generis, pois desde o início o novo governo foi dominado pelos positivistas, liderados por Júlio Prates de Castilhos (1860-1903).

Quando da Proclamação da República, em 1889, Castilhos recusou o cargo de presidente do Estado, e preferiu assumir como secretário do governo estadual. Ele estava convicto no intento de inaugurar uma nova fase positiva na política gaúcha, transformando as velhas práticas político-administrativas clientelistas do período imperial.

Em 1890, Júlio de Castilhos elegeu-se deputado no Congresso que iria elaborar a primeira Constituição da República, e logo identificou-se com a ala ultrafederalista, passando a defender o projeto político de inspiração positivista.

Em 1891, eleito presidente do Estado pela Assembléia Legislativa, Júlio de Castilhos redigiu - e fez aprovar quase que integralmente - a nova Constituição estadual. Era uma Carta extremamente autoritária, atribuindo ao presidente do Estado poderes extraordinários, tais como: nomear o vice-presidente, reeleger-se, atribuir papel meramente deliberativo ao Legislativo estadual e o voto descoberto. Castilhos pretendia criar no Rio Grande do Sul uma ditadura republicana comteana, e seus adeptos foram chamados de republicanos.

Do ponto de vista doutrinário, o positivismo não compartilha os princípios da representação eleitoral preconizados pela democracia liberal burguesa, e seu princípio de delegação política por meio da eleição à representação de cargos. Para os positivistas, o direito ao voto é um dogma metafísico e, dessa forma, Júlio de Castilhos acreditava na legitimidade do regime republicano em razão de razões históricas e científicas, e não por motivos metafísicos ou populares.


Com base nesse princípio, os castilhistas ficaram no poder no Rio Grande do Sul por quase 40 anos, primeiro com Castilhos, depois com Antônio Borges de Medeiros (1863-1961), que se elegeu sucessivamente quatro vezes para a presidência daquele Estado, e, finalmente, em 1928, com Getúlio Vargas (1883-1954).

No plano nacional, Vargas procurou implantar o positivismo castilhista. Em seus mandatos, notadamente no Estado Novo (1937-1945), procurou substituir a noção da representação eleitoral pela da hegemonia científica, na qual a ordem e o fortalecimento de um dirigente moralmente responsável concebe um regime promotor do bem-estar social rumo ao progresso.