domingo, 12 de setembro de 2010

CHARRUAS. UMA CULTURA AO SEU ENCONTRO.

CHARRUAS, ÍNDIOS DOS PAMPAS.

Autor: Luciano Pfeifer

Momento histórico

Os índios charruas habitaram em uma região que se estendia pelo: Rio Grande do Sul (Brasil), Entre Rios e parte de Corrientes (Argentina) e quase todo o Uruguai. Pesquisas arqueológicas revelam que essa população indígena assim como outras, de caçadores-coletores, deixaram vestígios da sua ocupação há mais de quatro mil anos. Os primeiros relatos documentados sobre essas tribos iniciam apenas com a chegada dos colonizadores europeus.



MONUMENTO AOS ÚLTIMOS CHARRUAS EM PRADO DE MONTEVIDEO (1938).

Segundo Kern (1997) os charruas pertenciam à raça pampeana; tinham estatura média variável entre 1,76m para os homens e 1,68m a 1,66m para as mulheres. Eram de constituição física normal que tinham membros bem conformados com pés e mãos relativamente pequenos. Dolicomorfos, de olhos amendoados pretos e olhar penetrante; o nariz variava entre aquilino e levemente achatado. Eram de cor morena acentuada; cabelos lisos, pretos, não muito abundantes assim como a barba, que era bastante rala. Os homens usavam o cabelo solto ou preso ao redor da testa por uma tira de couro; as mulheres usavam-no em trança ou raramente soltos.
Com o avanço da ocupação branca a população charrua realizou vários deslocamentos. Estima-se que os charruas, nessa época, seriam aproximadamente 1.100 indivíduos. Diferente de outros povos indígenas, eles não se deixaram conquistar pelas formas mais usuais de dominação dos colonizadores, como: os aldeamentos, a servidão por endividamento e a escravidão, apesar de já estarem fazendo parte do processo de colonização luso-espanhola nos três primeiros séculos até mais ou menos século XIX quando são um grupo indígena praticamente extinto.
Kern (1997) aponta que desde o século XVI os charruas foram atingidos pelos colonizadores com a introdução do gado eqüino e no século seguinte pelo bovino, que se tornaram os elementos de mudança da cultura. Por sua vez, a atuação missionária, segunda forma de penetração, instala-se no século XVII; são os mercedários, franciscanos e dominicanos, que não têm grandes resultados em termos de duração, talvez porque as áreas ocupadas pelos índios fossem impróprias para desenvolver um sistema colonizador de base agrícola..



OS CHARRUAS ERAM HABEÍS NA MONTARIA.

Com o tempo, os charruas passaram a ser cada vez mais solicitados pelos conquistadores para diferentes formas de trabalho, com destaque para o manejo de gado. Pouco a pouco os produtos dessa colonização vão se somando à cultura charrua e, ainda que continuassem caçadores, os índios passaram a ver nesse contato novas possibilidades a serem agregadas ao seu modo de vida e gradativamente vão se incorporando à economia da colônia.
Criada a dependência com o colonizador vários conflitos têm inicio, na maioria das vezes, motivados pelo roubo de gado que era usado pelos índios como caça e também comercializado nas estâncias portuguesas e espanholas. O que ocorre a seguir é a diminuição do seu território, cada vez mais ocupado pelo homem branco, e que terá como conseqüência o esfacelamento cultural e demográfico da população charrua.
No final do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, diz Kern (1997), os espanhóis e portugueses ocuparam em definitivo o território indígena; proliferaram as estâncias de criação de gado, as cidades se fixaram e cresceram em número. Com isso a população indígena é empurrada para o interior, em espaço bastante reduzido. Não tendo desenvolvido nenhum sistema econômico produtivo e não estando disposta a aceitar o modo de vida dos colonizadores; pouco lhe sobrou a não ser se empregar com o branco no mercado clandestino de couros, nos conflitos de fronteira e também como peões de estâncias, fato que não agradava os caciques.



MEMBROS DE UMA FAMÍLIA CHARRUA.

O final da história pode ser resumido em dois combates de extermínio em 1831 e 1832 praticados por forças governamentais Uruguaias contra índios pampeanos. Os homens presos, maiores de doze anos, ou foram sacrificados ou levados até Montevidéu e postos à disposição de compainhas nacionais de navegação mercante. As mulheres, crianças e velhos, todos os prisioneiros foram levados e distribuídos em público entre os moradores da capital e de outras cidades.
Conforme conta a informação oral é provável que em algumas cidades do Rio Grande do Sul e do Uruguai ainda existam descendentes de um pequeno número de charruas que conseguiram escapar dos combates mas, incapazes de reconstituir seu modo de vida indígena.

Língua

Em seu livro Línguas Brasileiras, Rodrigues (1986) diz que os índios do Brasil não são um povo: são muitos povos, diferentes de nós e diferentes entre si. Cada qual tem usos e costumes próprios, com habilidades tecnológicas, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social e filosofia peculiares e por falarem línguas diferentes, resultantes de experiências de vida acumuladas e desenvolvidas em milhares de anos.
Como todas as demais, as línguas dos povos indígenas do Brasil são inteiramente adequadas à plena expressão individual e social em que tradicionalmente têm vivido esses povos. Embora diferentes, elas compartilham do que todas as quase seis mil línguas do mundo têm em comum: são manifestações da mesma capacidade de comunicar-se pela linguagem.
Em Nuevos elementos acerca de la lengua charrua, Rona (1964) demonstra o resultado de uma pesquisa feita a partir de documentos da antiga redução jesuítica de San Francisco de Borja, um dos sete povos das Missões Orientais, que situava-se onde é hoje a cidade brasileira de São Borja, no Rio Grande do Sul. Segundo alguns pesquisadores essa era a única redução formada por índios charrua enquanto as outras seis eram formadas por guaranis.
É por meio de uma análise de nomes próprios de um livro de óbitos da redução indígena que os indícios dessa língua são estudados. Esses nomes a seguir, possivelmente não guaranis são, supostamente charrua.

Apaguari, Ariuona, Ayare, Ayuare
Bará, Baré, Boroiu, Bropotari
Catire, Cacé, Cayuare, Curianá
Guayucari, Guapani, Guari, Guĭnaqué, Gŭrayú
Iuire
Mandaio, Morocanga
Odaitu
Romana
Vabaña, Vaboyaí, Yaycha


Ao iniciar a análise verifica-se que o nome Boroiu não pode ser guarani, primeiro porque a inicial deveria ser Mb__y não B__y logo porque em guarani não existe /i/ consoante nem semiconsoante intervocálica. Existe ainda a terminação iu como um segundo elemento. Essa partícula coincide com a palavra charrua iu (um) que figura no Códice Vilardebó onde a palavra Laiu (boleadeiras) também está registrada. Alguns nomes próprios guaranis contêm um elemento yú que significa amarelo, porém sua pronúncia é [žu] ou [džu]. Nesta mesma lista é encontrado o nome Mandaio, que também contém um /i/ consoante ou semiconsoante que, como dito, não existe no guarani.
Odaitu contém um fonema /d/ que tão pouco existe em guarani e o nome Bropotari, com seu grupo fonético /br/, inexistente não só em guarani como em todas as línguas indígenas sul-americanas, exceto nas línguas do tronco charrua que compreende diversas populações indígenas pampenas como: a minuano, a guenoa, a yaro, a chaná, bohane, mocoretá, timbú, mbegué entre outras. Todas essas línguas apresentam um grupo de consoante + /r/.

A seguir, são observados alguns nomes cujas terminações são __ari, __are ou __ani, __ane.
__ari: Apaguari, Bropotari, Cayuari, Guayucari, Guari;
__are: Ayare, Ayuare;
__ani: Guapani.

A freqüência com que este grupo de terminações ocorre indica que as mesmas ou são um sufixo ou um elemento fixo da língua charrua. Em sendo um sufixo, se trataria provavelmente de um sufixo gentílico. Estas circunstâncias dizem duas coisas. Primeiro, que essa língua teria um só fonema sonântico dento-alveolar /n/, do qual os sons [n], [r] e presumidamente [l] não são mais que alofones sem muito valor fonológico. Em segundo, este sufixo gentílico coincide exatamente com o encontrado nas denominações das tribos que formavam o complexo charrua. A mesma alternância de: __ane com __are, também encontrada nos documentos da Redução de San Francisco de Borja.
Um outro nome, Adapari, não só mostra a terminação __ari, além de conter o fonema /d/, que por si só bastaria para mostrar que não se trata de um nome guarani e por último dos nomes Bará e Baré, que mostram uma curiosa alternância entre um __á e um __é finais, acentuadas.
Serrano (1936) diz que o chaná, uma das línguas do tronco charrua era um idioma essencialmente nasal e gutural. Não possuía /f/, /ll/, /ñ/ nem /z/. Ela aponta que /j/ e /k/ são guturais. Sendo este último poderia não sê-lo quando está no princípio e no meio da palavra.
O /h/ antes de vogal se pronuncia aspirado como no inglês. Por exemplo nas palavras hek (boca) e nohan (cervo).
A numeração, parece não ter chegado além de oito. Os charrua contavam os dedos de ambas as mãos com os polegares recolhidos. Porém, com a influência colonizadora, se viram com a necessidade de contar até dez.

1- Iú um;
2- Sam dois;
3- Deti três;
4- Betúm quatro;
5- Betum-iú quatro e um (em outra mão);
6- Betúm-sam quatro e dois (em outra mão);
7- Betúm-deti quatro e três (em outra mão);
8- Betúm-artasam quatro duas vezes.


Investigações lingüísticas indicavam que o idioma dos charruas era uma língua isolada nos seus primórdios, mas não se pode dizer que com o passar do tempo os charruas não tenham feito empréstimos lingüísticos. Com o advento da colonização, o contato com o homem branco e com outras populações indígenas próximas, como os guaranis, foi cada vez maior. Ao longo dos três primeiros séculos de colonização, a mudança social e cultural no meio de vida das populações indígenas pampeanas se fez acompanhar também, de uma mudança lingüística.



NO PRIMEIRO CONTATO COM CAVALOS OS CHARRUAS DEMONSTRARAM SEU POTÊNCIAL

Sapir (1949) escreve que as línguas, raramente se bastam a si mesmas. As necessidades de intercâmbio põem os indivíduos que falam uma dada língua em contato direto ou indireto com os de línguas vizinhas ou culturalmente dominantes. O intercâmbio pode ser de relações amistosas ou hostis. Pode processar-se no plano corriqueiro dos negócios e do comércio ou consistir em empréstimos ou troca de bens espirituais - arte ciência ou religião. Seja qual for o grau de natureza do contato entre povos vizinhos, é uma regra suficiente para conduzir a uma espécie qualquer de influência lingüística.

Cultura e sociedade.

A cultura charrua revelou uma sociedade que, mesmo sofrendo com as transformações do mundo a seu redor, nunca perdeu a sua fama de invencíveis guerreiros que procuram conservar o seu estilo de vida contrário à submissão total, sendo este um dos fatores responsáveis pelo extermínio dessa população indígena enquanto grupo, ainda no início do século XIX.
Segundo Kern (1997) a organização social dos charrua tinha como base a família, possivelmente de linha paterna, sendo a poligamia bastante acentuada. Nesses grupos indígenas essa organização familiar era bastante frouxa, quer em termos de estabilidade, quer em relação à educação dos filhos dirigidas pelas inclinações individuais. O casamento absorvia a todos os homens em idade madura e as mulheres casavam tão logo tivessem alcançado a idade núbil. O autor diz ainda que essa mesma organização familiar servia como base para a organização política das aldeias. Os chefes de família formavam um Conselho de Aldeia que posteriormente evoluiu para o cacicado. Os caciques por sua vez tiveram muita representatividade e influência pelo número de índios à sua disposição e pelas negociações que realizavam com os colonos, pelos acordos e tratados de paz feitos com autoridades governamentais e de outras tribos.
As famílias moravam em pequenas cabanas conhecidas como choças que eram construídas pelas mulheres, sobre quem caiam todos os encargos domésticos. Essas choças com espaço suficiente para a família tinham a cozinha do lado de fora e o fogo na mesma ou nas proximidades era uma presença constante. Eram utilizadas basicamente para descanso e para a proteção contra os rigores do pampa.
As choças concentravam-se em forma de aldeia e estavam sujeitas as ordens dos seus caciques, ficando separadas por uma distância regular para que não faltasse o pasto necessário ao gado e à cavalhada. Cada uma dessas aldeias tinha um cemitério nas suas proximidades, que se transferia de acordo com a mobilização dos grupos.
Os charrua tinham um temperamento bastante retraído e sua vaidade se expressava basicamente nas pinturas faciais que diferenciavam uma tribo da outra e nos homens, pelas cicatrizes feitas intencionalmente nos próprios corpos para dar a conhecer o número de inimigos mortos.
Gennep (1984) diz que as mutilações são um meio de diferenciação definitiva, assim como outras: vestuário, máscaras, pinturas corporais que marcam ema diferenciação temporárias. São essas que vêm desempenhar considerável papel nos ritos de passagem porque se repetem a cada mudança na vida do indivíduo.
O autor comenta que num e noutro sexo a puberdade física é um momento muito difícil de datar, e esta dificuldade explica o fato de tão poucos etnógrafos e exploradores terem feito pesquisas a este respeito. Isto torna mais imperdoável ainda aceitar-se a expressão para designar o conjunto dos ritos , cerimônias, práticas de toda espécie que marcam nos diversos povos a passagem da infância à adolescência. Convém, portanto, distinguir a puberdade social da puberdade física, assim como se distingue o parentesco físico (consangüinidade) e o parentesco social, a maturidade física e a maturidade social (maioridade), etc.
Na organização social charrua as diferenças entre os sexos é bastante clara. Começavam com o nascimento e iam até a morte. Passado um tempo do nascimento o menino charrua recebia a insígnia viril o barbote ou tembetá, introduzido por sua mãe no lábio inferior. O tembetá somente era retirado para ser substituído por outro maior, de acordo com o próprio crescimento. A passagem para a idade adulta era marcada por uma grande cerimonia, os rostos eram pintados com traços e disposições diferentes para os dois sexos e grupos.
Kenr (1997) aponta que vários outros aspectos diferenciavam o sexo no dia-a-dia dos charrua. Até mesmo na maneira de montar o cavalo, em pêlo, entre os homens, enquanto as mulheres montavam sobre arreios bem simples. Na guerra quando o homem só possuía um cavalo, era ele quem montava, e sua mulher seguia-o a pé, carregando filhos e pertences.
O autor diz que a cultura espiritual dos charrua parece estar mais ligada ao curandeirismo. Os feiticeiros, geralmente em estado de transe pela absorção de ervas, de modo especial da erva-mate, atuavam nos mais variados momentos; diziam que sua força dominaria mesmo os elementos da natureza. Há poucas notícias a respeito de suas idéias religiosas. Em cerimônias, invocavam um ser superior que às vezes se lhes mostrava visível. Acreditavam igualmente, em um ser maléfico, de onde lhes vinham todas as desgraças. Parece que acreditavam na ressurreição da alma e, por dedução, na imortalidade da mesma.
A morte parece ter sido encarada como um fato natural. É certo porém, que não deixavam seu mortos insepultos, mesmo em situações de guerra. Todos, indistintamente, eram enterrados em covas rasa, coberta com pedras ou ramas. Sobre esses pequeno acúmulo eram colocadas as boleadeiras; a lança ficava plantada no lado oposto ao qual deixavam o cavalo.
O luto se destacou como a expressão mais representativa neste aspecto da vida dos charrua; sua importância era proporcional ao status do morto e implicavam obrigações diferenciadoras de sexo e parentesco. Se o morto era o pai, o marido, ou irmão que houvesse desempenhado chefia familiar, os filhos, viúva e irmãs casadas cortavam uma falange da mão, começando pelo dedo mínimo. Além disso faziam com a lança do morto vários cortes espalhados pelo corpo, ficando, depois, durante duas luas tristes, ocultos em casa, se alimentando apenas com determinados alimentos. Os maridos não faziam luto por suas mulheres, nem os pais por seus filhos.
Gennep (1984) fala que a primeira vista parece que nas cerimonias funerárias são os ritos de separação que devem ter o lugar mais importantes, sendo os ritos de margens e de agregação, ao contrário, pouco desenvolvidos.. Entretanto o estudo dos fatos mostra que as coisas são diferentes e que, ao contrário, os ritos de separação são pouco numerosos e muito simples, e que os ritos de margens têm uma duração e complexidade que chega às vezes a lhe dar uma espécie de autonomia. Finalmente, de todos os ritos funerários aqueles que agregam o morto ao mundo dos mortos são os mais elaborados e a eles é que se atribui a maior importância.
Todos esses aspectos da cultura charrua, somados ao seu caráter explicam os empecilhos para adaptarem-se à nova realidade dos colonizadores e por conseqüência as dificuldades de se manterem como um grupo.

VOCÊ QUER SABER MAIS?

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RODRIGUES, Ayron Dall’Igna. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Ed. Loyola, 1986.

SAPIR, Edward. A Linguagem: introdução ao estudo da fala. Tradução de J. Mattoso Camara Jr. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1980.

KERN, Arno A. Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto 2º Edição, 1997.

RONA, José Pedro. Nuevos elementos de la lengua charrua. Montevidéu: Universidad de la Republica, 1964.

SERRANO, Antonio. Etnografia de la Antiga Provincia del Uruguai. Montevidéu: Parana, 1936.

GENNEP, Arnold Van. Os ritos de Passagem. Petrópolis, 1984.