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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Átila, o Huno: um animal político.

Talvez o maior paradoxo da imagem do líder “bárbaro” seja o de que, em verdade, ele era melhor diplomata do que general de guerra.


 Átila e suas hordas invadem a Itália e as artes, Eugène Delacroix, c.1843, óleo sobre tela, Palais Bourbon.

O rei sabe quem ele mantém ao seu redor. Culto, fala latim e grego. Ele prova ser um debatedor habilidoso e conduz seus homens com mão de ferro e luvas de pelica. Bem longe daquilo a que o termo “bárbaro” remete. Tendo escrito um século após a morte do rei dos hunos, o historiador Jordanes oferece uma imagem ambígua do monarca: “Átila amava a guerra, mas era capaz de controlar sua própria violência”. Sem negar seu gosto pela conquista e pelas pilhagens, ele lembra que Átila era também um animal político que se servia, muitas vezes, de meios sutis.

Governar consiste, em primeiro lugar, em saber se cercar. Para receber os melhores conselhos, Átila reuniu ao seu redor uma corte tão numerosa quanto original. Ela era composta por hunos nobres, como o seu braço-direito Onegésio ou um certo Berik, que possuía um vasto comando territorial, mas também por chefes dos povos germânicos, seus aliados, aos quais Átila atribuía extensas responsabilidades. Entre eles, o ostrogodo Teodomiro, pai daquele que viria a se tornar o rei Teodorico, o Grande, conquistador da Itália.

Átila deixava o comando de seus exércitos nas mãos dos bárbaros, mas incumbia os romanos das tarefas administrativas. Assim, dois de seus secretários sucessivos tinham o mesmo nome, Constâncio – o primeiro era gaulês, o segundo, italiano. Sob sua influência, a corte empregou um pequeno corpo de intérpretes. Quanto à chancelaria real, esta foi confiada a Orestes, um aristocrata da província romana da Panônia. Após a morte de Átila, Orestes retornou ao território romano, recebendo importantes funções militares até assumir o controle do Império, em 475.

MESTRE DAS ARMAS PSICOLÓGICAS Se Átila parecia ter talento para detectar personalidades notáveis, seu círculo heterogêneo não deixava de ser um produto do acaso. Seu bobo da corte, Zercon, era um mouro, anão e poliglota, que pertencera a um general romano até ser “tomado” pelos exércitos hunos. Os prisioneiros de guerra que demonstravam talentos especiais se beneficiavam de um tratamento diferenciado. O prisioneiro romano Rusticius escapou da escravidão por ser capaz de escrever cartas diplomáticas.


 Átila chegou a acampar diante das enormes muralhas de Constantinopla e  planejava outra campanha contra a capital bizantina quando a morte o surpreendeu, no início de 453.

Átila governava sua corte com um misto de doçura e violência. Aqueles que ele queria bajular ganhavam presentes, elogios, tinham lugares preferenciais à mesa e recebiam até mesmo a promessa de ricos casamentos. Eventualmente, alguns de seus auxiliares eram encarregados de partir em delegações a Constantinopla. Eles podiam estar certos de uma grande recepção e de voltarem carregados de presentes. Por outro lado, Átila era implacável com traidores. Assim, mandara crucificar seu primeiro-secretário, suspeito de desviar um lote de cálices preciosos. Incutir o terror era útil ao rei: enquanto Bizâncio tentava subornar sua corte na tentativa de assassiná-lo, o complô acaba sendo denunciado por seu conselheiro Edika tamanho o seu medo da retaliação, caso o plano desse errado.

No que concerne às legações estrangeiras, Átila mostrava-se um interlocutor hábil. Os embaixadores recebiam uma enxurrada de insultos ou de adulações; no decorrer da discussão, o rei os ameaçava da pior das mortes, antes de assegurá-los de que, a seus olhos, eles eram sagrados. Desconcertados, os diplomatas se viam em uma posição frágil para conduzir as negociações. Átila se aproveitava também de qualquer oportunidade para usar suas armas psicológicas. Seus visitantes retornavam cobertos de presentes suntuosos mas, ao longo do caminho de volta, eram obrigados a assistir ao suplício de homens culpados de traição.

Em matéria de política externa, era um oportunista. Suas relações com o Império Romano do Oriente tinham um único objetivo: conseguir o máximo de riqueza. Na maior parte das vezes, ele se contentava em recolher tributos: para isso, multiplicava as missões diplomáticas, ameaçava seus interlocutores, exigia que as disposições dos tratados anteriores fossem respeitadas... E se porventura o pagamento dos impostos fosse interrompido, ele não hesitava em recorrer à guerra. Violenta e breve, esta não terminava com uma conquista, mas com um acordo financeiro mais favorável do que o anterior.

Resta saber se a diplomacia de Átila era realmente eficaz. Ele parece ter subestimado os recursos que o império podia recolher. Na verdade, os tributos pagos não arruinavam Constantinopla, tampouco prejudicavam seu potencial militar. As repetidas exigências dos hunos e suas múltiplas depredações acabaram exasperando, porém, a opinião pública bizantina. Átila terminou contribuindo assim para que adeptos de métodos mais duros chegassem ao poder. Em 450, Marciano subiu ao trono, fazendo da eliminação dos hunos a primeira meta de seu reinado.


O saque de Aquileia (imagem) ocorreu em 452 e foi realizado pelos hunos sob a liderança de Átila.

Átila parecia mais confortável com os romanos ocidentais. Sem escrúpulos, ele acolhia em sua cor te personalidades contrárias às autoridades vigentes. Como Eudoxo, um líder dos camponeses gauleses que se rebelou contra a carga tributária e passou para o lado dos hunos em 448. O rei criou laços também com a princesa romana Honória, irmã do imperador Valentiniano III. Ela se ofereceu ao rei huno em casamento. Seu “esposo” reivindicou então direitos sobre o Império do Ocidente.

Os gauleses eram bárbaros?

Esse povo que não tomava banho, não conhecia as letras e até praticava sacrifícios humanos precisou ser conquistado por Roma para conhecer a civilização, certo? Errado!


Vercingetorix joga suas armas aos pés de César, óleo sobre tela, Lionel Noël Royer, 1899. Imagem: MUSEU CROZATIER, LE PUY-EN-VELAY.

O senso comum prega que os gauleses eram um bando de guerreiros frustrados, saqueadores e brigões até que Júlio César os transformou em um povo civilizado sob a égide de Roma. Embora estivessem divididos em comunidades que alimentavam disputas constantes, os gauleses obedeciam a instituições e costumes semelhantes. Recentes descobertas arqueológicas mostram uma civilização de características próprias.

A sociedade era formada por tribos, unidade basilar que reunia várias famílias. Elas eram lideradas por um rei, que se mantinha cercado de uma aristocracia guerreira no comando de uma plebe composta de artesãos, camponeses e escravos. Muito cedo trocas comerciais se estabeleceram através do Mediterrâneo, notadamente com os gregos.

Os gauleses praticavam a salga dos alimentos para conservá-los, em particular da carne de porco. Eles desenvolveram a agricultura usando uma espécie de ancestral da ceifadeira, uma grande caixa com rodas dentadas puxada por um boi, enquanto os romanos ainda se serviam de foicinhos. Eles inventaram o tonel, recipiente mais cômodo que a ânfora para o transporte e a conservação do vinho. O artesanato era, contudo, o domínio no qual sobressaíam. Embora suas peças de cerâmica sejam famosas, foi na ourivesaria e na produção de instrumentos de ferro que eles se tornaram mestres, como provam as fi velas e outros broches cuja produção demonstra uma real preocupação estética. Isso também é prova de bom conhecimento dos minerais e domínio das difíceis técnicas exigidas na sua extração.

Além disso, os gauleses deram grande importância à aparência e ao asseio. Adotaram as bragas, tipo de ancestrais da calça, e inventaram o sabão à base de cinzas e de sebo – embora fosse usado principalmente para lavar as longas cabeleiras típicas dos gauleses. Os druidas, que exerceram um papel primordial na sociedade gaulesa, praticavam a medicina, e a descoberta de escalpelos e lancetas em suas tumbas levam a crer que tinham noções de cirurgia. Eles se interessavam pelo cálculo, pela geometria e pela astrologia no intuito de determinar os locais de cultos e elaborar calendários.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Psicopatas S.A.



Ele vai a todo happy hour, é companheiro de cafezinho e ouve você reclamar do salário. Não confie tanto nesse colega de firma - é 4 vezes mais comum encontrar psicopatas nas empresas do que na população em geral.

Luana conseguiu o emprego com que sempre sonhou. Era em uma empresa farmacêutica conhecida por seu ambiente competitivo, mas também por bons salários e chances de crescer profissionalmente. Nova no escritório, logo ficou amiga de Carlos, um sujeito atencioso de quem recebeu até umas cantadas.

Em poucos meses, apareceu a oportunidade de Luana liderar seu grupo na empresa. Parecia bom demais não fosse uma inquietação ética. Ela desconfiava que a companhia garantia a venda de seus produtos graças a subornos a médicos. Isso incomodava tanto Luana que, durante um intervalo para um lanche, ela desabafou com o amigo Carlos. Ele também parecia indignado com a situação. Seria uma conversa normal entre colegas de trabalho - se Carlos não tivesse se aproveitado. Em um momento de distração de Luana, ele pegou o celular da colega e ligou para o chefe de ambos. Caiu na secretária eletrônica, que gravou toda a conversa seguinte entre Carlos e Luana. A moça, grampeada, chegou a questionar se o chefe poderia ter algo a ver com os subornos. Acabou demitida por justa causa. Carlos tomou o lugar de líder que seria dela.

A história é real (os nomes foram trocados). E esse Carlos, um cretino, não? Na verdade é pior: ele age exatamente como um psicopata. Há 69 milhões de psicopatas no mundo, o que dá 1% da população em geral. Então, no fim da história, Carlos faz picadinho de Luana, certo? Errado. Sim, há muitos psicopatas violentos, como Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes ou Pedrinho Matador, que afirmava ter assassinado mais de 100 pessoas. Por isso a cadeia é um dos dois lugares em que se encontram muitos psicopatas. Eles são 20% da população carcerária e 86,5% dos serial killers. Mas um psicopata não necessariamente vira assassino. Na verdade, ele vai atrás daquilo que lhe dá prazer. Pode ser dinheiro, status, poder. É por isso que outro lugar fértil em psicopatas, além da cadeia, é a firma.

Pode ser uma empresa pequena, como a loja de sapatos da esquina. Pode ser uma fundação, uma escola. O importante é que o psicopata enxergue ali a chance de controlar um grupo de pessoas para conseguir o que quer. Mas poucos lugares dão tanta oportunidade para isso do que uma grande companhia.

"Psicopatas são atraídos por empregos com ritmo acelerado e muitos estímulos, com regras facilmente manipuláveis".



 Paul Babiak, psicólogo e  especialista em comportamento no trabalho
Até 3,9% dos executivos de empresas podem ser psicopatas, segundo uma pesquisa feita em companhias americanas. Uma taxa de psicopatia 4 vezes maior do que na população em geral. Eles não matam os colegas, mas usam o cargo para barbarizar. Cancelam férias dos subordinados, obrigam todo mundo a trabalhar de madrugada, assediam a secretária, demitem sem dó nem piedade. Isso quando não cometem crimes de verdade. Um terço das companhias sofre fraudes significativas a cada ano, de acordo com uma pesquisa de 2009 realizada pela consultoria PriceWaterhouseCoopers, que analisou 3 037 companhias em 54 países. Por causa dessas mutretas, cada uma perde, em média, US$ 1,2 milhão por ano. Muitos desses golpes podem ser obra de psicopatas corporativos.

"Eles são capazes de apunhalar empregados e clientes pelas costas, contar mentiras premeditadas, arruinar colegas poderosos, fraudar a contabilidade e eliminar provas para conseguir o que querem", diz Martha Stout, psiquiatra da Escola Médica de Harvard por 25 anos e autora do livro Meu Vizinho É um Psicopata. E fazem isso na cara dura, como se não estivessem nem aí para o sofrimento alheio. É que, na verdade, eles não estão ligando nem um pouco mesmo.

Como os colegas mais violentos, os psicopatas de colarinho branco não pensam no bem-estar dos outros, nem sentem culpa quando pisam na bola. Por isso passam por cima de regras, estejam elas formalizadas em leis ou somente estabelecidas pela ética e pelo senso comum. Acontece que o cérebro deles é diferente de um cérebro normal. No caso do psicopata, a atividade é maior nas áreas ligadas à razão do que nas ligadas à emoção, o que o faz manter-se impassível diante de tragédias - seja um gatinho em apuros, seja uma chacina em um orfanato. Como não consegue se colocar no lugar dos outros, o psicopata usa e abusa dos amigos - puxa o tapete dos colegas sem se preocupar com código de conduta corporativo ou consequência na vida alheia.



Pega na mentira

Graduação em universidade concorrida. Pós-graduação no exterior. Livros publicados. "Empregadores sabem que 15% ou mais dos currículos enviados para cargos executivos contêm distorções ou mentiras deslavadas", afirma Babiak. "Psicopatas fazem isso. Podem fabricar um histórico feito sob medida para as exigências do trabalho e bancá-lo com referências falsas, portfólio plagiado e jargão apropriado." Claro, com algumas perguntas específicas um entrevistador é capaz de desmascarar candidatos mentirosos. O problema é que um psicopata tem tudo para deitar e rolar em uma entrevista de emprego.
Muitas vezes o entrevistador não está tão preocupado com o conhecimento técnico do candidato. Quer mais é saber se ele é capaz de tomar decisões, relacionar-se com pessoas, motivar equipes. "A ‘química’ entre candidato e avaliador tem muita importância", diz o psicólogo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A DISCRIMINAÇÃO DOS SABERES NA MANUTENÇÃO DO MITO-PROFESSOR: A construção de uma estética do saber como limitadora do conhecimento e ideologização da relação professor-aluno


Professor autoritário padronizando seus alunos. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.

Alessandra Felix de Almeida[1] 

RESUMO: Trataremos de uma pesquisa bibliográfica exploratória com o objetivo de analisar uma possível postura de superioridade do professor em relação aos alunos, no que diz respeito à valorização dos saberes que norteiam as suas atividades. Ao percorrer as literaturas brasileiras do século XIX nos deparamos com a figura de um professor distanciado dos alunos, por conta de uma hierarquia, tal figura ganhava proximidade apenas pela violência, tanto física quanto moral. Percebemos assim, a construção de um mito, que por hipótese ainda está entre nós, e da necessidade de sua manutenção para legitimar distinções entre aqueles cujo saber é validado por uma estética acadêmica e aqueles cujo saber “desnormatizado” não tem possibilidades de atribuição de valor no que tange ao desenvolvimento educacional.
1. INTRODUÇÃO
A proposta deste artigo originou-se de uma frase de um professor (doutor na área das Ciências Sociais) quanto à participação dos alunos na elaboração das suas aulas, segundo o professor “os alunos não sabem fazer isso”. Sendo assim, em oposição aos que não sabem, obrigatoriamente há os que sabem, e aqui, estes seriam os professores. Araujo e Schwartzman (2002) apresentam que mesmo diante da precariedade do ensino, comprovada por dados, os professores atribuem importância e eficiência às suas atividades, sendo que qualquer desempenho insatisfatório é de responsabilidade dos próprios educandos. Aquino (2005) avalia este discurso como sendo o mesmo que “dizer que o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os delitos”, Aquino (2005) atribui a este discurso “a lógica dos mitos”, sendo o maior deles “o de responsabilizar o alunado”. Temos assim um estado de coisas que pressupõe como condição única a submissão, pois o mesmo aluno que não é capaz de aprender, também não é capaz de ensinar: “não sabe fazer isso, nem aquilo”, o professor aparece aqui envolto em uma aura celestial, mitológica e cristalizada em nossa vivência educacional.
Cena do Clipe 'The Wall' do grupo Pink Floyd.
Se há uma manutenção dessa forma mitológica do saber e do professor, esta pode ser legitimada, no âmbito da normatização, por um sistema burocrático racional, no entanto há o âmbito das nossas paixões que, nos termos de Foucault (2010), pode ser entendido como um fascismo, não aquele de Hitler ou Mussolini, mas sim “o fascismo que está em todos nós, que persegue nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 2010: 105).
2. A PALMATÓRIA DO COSTUME E O MITO QUE LEGITIMA
O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de sua visita, e apresentou o pequeno ao mestre. “Tem muito boa memória, soletra já alguma coisa, não lhe há de dar muito trabalho”, disse com orgulho. “E se mo quiser dar, tenho aqui o remédio, santa férula!” disse o mestre brandindo a palmatória. O compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim. “É verdade: faz santos até às feras, disse traduzindo. Segunda-feira cá vem, e peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre despedindo-se”. Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se julgava muito bem. “Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?” O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então (ALMEIDA, 1987: 58).
[O professor Policarpo] Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem [...]. Na verdade, o mestre fitava-nos [...] metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões [...]. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada no portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, dependurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca (ASSIS, 2001: 33).

“Memória de um Sargento de Milícias” (ALMEIDA, 1987) e “Conto de Escola” (ASSIS, 2001) foram publicados, respectivamente, em 1853 e 1896. Nos trechos reproduzidos acima podemos entender como se apresentava a figura do professor. Nos dois casos é possível perceber dois aspectos de poder disciplinador, o primeiro físico através do recurso da palmatória, e o segundo moral, através do constrangimento e do exercício da força do costume.
Este artigo não tem como objeto uma análise literária, embora a literatura seja um produto social, composta por fatos associativos, onde as obras acabam por expressarem certas relações dos homens entre si, e que, “tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos” (CANDIDO, 2010: 29, 147). Assim, ao iniciar este artigo com citações literárias, procurou-se apresentar como a relação professor-aluno se manifesta na comunicação para com os grupos, visto que “toda obra brota de uma confidência, um esforço de pensamento, um assomo da intuição, tornando-se uma ‘expressão’” (CANDIDO, 2010: 147).  Para que haja literatura e a sua respectiva comunicação social, é necessário um compartilhamento de experiências e impressões da realidade vivida, “um sistema de valores que enforme a sua produção e dê sentido à sua atividade” (CANDIDO, 2010: 147). A obra literária traz em si aspectos de integração e diferenciação
A integração é o conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo ou no grupo a participação nos valores comuns da sociedade. A diferenciação, ao contrário, é o conjunto dos que tendem a acentuar as peculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. São processos complementares, de que depende a socialização do homem; a arte, igualmente, só pode sobrevier equilibrando, à sua maneira, as duas tendências referidas (CANDIDO, 2010: 33).
Alinhados à análise de Antonio Candido (2010) temos assim, a expressão da interpretação vivida quanto à relação professor-aluno, de modo que para objeto de análise deste artigo tomaremos a referida interpretação como a construção de uma ideologia[2] quanto à figura do professor que parece tomar feições de um mito. Lévi-Strauss (2008) nos apresenta que o valor atribuído a um mito “provém do fato de os eventos que se supõe ocorrer num momento do tempo também formarem uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro” (LÉVI-STRAUSS, 2008: 224), no entanto “o mito continua sendo mito enquanto for percebido como tal” (LÉVI-STRAUSS, 2008: 233).

3. A AURA DO DISCURSO
Julio Groppa Aquino (2005), em entrevista à Revista Carta Capital[3], comenta o levantamento realizado quanto ao interesse dos alunos na aprendizagem, publicado no livro “A Escola Vista por Dentro” (2002) de João Batista Araujo e Simon Schwartzman, o referido estudo apontou que 77% dos professores do ensino fundamental público culpam o desinteresse dos alunos pela alta repetência. Em seu comentário, Aquino (2005) apresenta que
é como dizer que o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os delitos. “Se fôssemos um povo menos criminoso, a Justiça seria melhor. Se fôssemos mais interessados em educação ou, em outras palavras, menos ignorantes, a educação seria melhor.” É a lógica dos mitos. E esse talvez seja o maior deles: o de responsabilizar o alunado. Não faz o mínimo sentido, mas está generalizado não só entre os profissionais da educação, como também na opinião pública, que ratifica esses clichês, esses abusos cometidos contra os jovens (AQUINO, 2005)
O argumento para a elaboração deste artigo teve como fonte a frase de um professor (doutor na área das Ciências Sociais) quanto à participação dos alunos na elaboração das suas aulas, visto que esses alunos, em tese (minha tese) são os protagonistas do ambiente educacional, segundo o professor “os alunos não sabem fazer isso”. Sendo assim, em oposição aos que não sabem, obrigatoriamente há os que sabem, e aqui, estes seriam os professores, exclusivamente eles. A palmatória do século XIX parece ter ficado nas sombras da história, no entanto, o exercício do costume quanto à relação entre alunos e professores ainda nos ronda. Araujo e Schwartzman (2002) revelam em seu estudo que mesmo em face aos dados pessimistas da educação, os professores
gostam do que fazem, e afirmam dedicar muito de seu tempo à escola e à preparação de atividades docentes. Consideram importante e eficiente o que fazem, e acham que deveriam ser muito mais bem remunerados. De modo geral, particularmente nas escolas públicas, os professores consideram como normais muitos comportamentos e expectativas que a sociedade em geral e a literatura sobre escolas eficazes considerariam como desviantes – como as questões relativas a pontualidade, frequência, cumprimento do calendário escolar e programa de ensino, responsabilidade da escola pelo sucesso do aluno, etc (ARAUJO e SCHWARTZMAN, 2002: 63).
A análise de Araujo e Schwartzman (2002) confirmam o comentário de Aquino (2005) quando entendem que se os professores “acreditam que o fracasso depende apenas do aluno e da falta de condição ou da cooperação das famílias, não há razão para se esforçar e cumprir o programa de ensino dentro do ano letivo” (ARAUJO e SCHWARTZMAN, 2002: 106). Assim, o professor aparece envolto em uma aura celestial, mitológica e cristalizada em nossa vivência educacional. Isto posto, podemos entender que um aluno que não é capaz de aprender, também não é capaz de ensinar e muito menos é capaz de dizer o que entende por educação, o que gostaria que fosse a educação, pois afinal “os alunos não sabem fazer isso”.
4. AS REGRAS PARA O SABER, A LEGITIMAÇÃO DO PODER
De acordo com o exposto, sugiro que tomemos a relação professor-aluno como uma relação hierárquica, onde a figura do professor, além de ter em si todo o conhecimento, não se vê com o dever de transmiti-lo e debate-lo, uma vez que, por hipótese, o aluno é quem tem o dever de aprender de acordo com a sua condição de tabula rasa[4] subordinada. A fim de analisar a forma hierárquica, nos conduziremos pelo pensamento de Max Weber (1982) que nos aponta a burocracia como um meio para legitimar e proteger relações hierárquicas, “toda burocracia busca aumentar a superioridade dos que são profissionalmente informados tornando secretos seu conhecimento e intenções: na medida em que pode, oculta seu conhecimento e ação da crítica” (WEBER, 1982: 269). Neste sentido, sugerimos que o exercício da superioridade possa ser pautado pela relação entre saber e poder, sendo que para Foucault (1987) temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 1987: 31).
Admitamos assim, que a relação de poder constitua um campo de saber, porém, de qual campo de saber estamos falando? Proponho que falemos de um campo de saber que pressupõe aquele que tem valor – o do professor –, e aquele sem valor – o do aluno. O valor da forma de se saber pode ser entendida como regulamentada, racional e portanto burocratizada, que toma feições de dominação e disciplina. Uma forma de se saber tradicional, acadêmica, da ordem do costume, uma gênese mitológica da qual a única coisa que sabemos é que sempre foi assim. Neste sentido, Foucault (2010) nos auxilia com sua análise quanto ao posicionamento dos intelectuais, no prefácio ao “Anti-Édipo”. O autor entende que haveria, durante o período de 1945 a 1965 (este cenário parece estender-se até os dias de hoje), condições para a aceitação de uma verdade escrita, tais condições estavam vinculadas à ética do intelectual, a uma forma correta de pensar e ao estilo correto do discurso (FOUCAULT, 2010: 103), aqui permitamos que a “forma correta de pensar” esteja também vinculada a uma forma correta de saber, de modo que qualquer forma de entendimento, conhecimento e saber que não tenha como forma uma “ética” ou uma estética intelectual não seja merecedora de valor. Foucault (2010) propõe que sejam rompidas as fronteiras dessa forma “correta” de pensar, no entanto, nos chama a atenção para o maior adversário da ruptura dessas fronteiras: o fascismo, não apenas aquele caracterizado pelas ações de Hitler e Mussolini, mas “também o fascismo que está em todos nós, que persegue nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 2010: 105).
5. AS CERCAS PROTEGIDAS DO ESCLARECIMENTO
Immanuel Kant (2005) nos pergunta “Que é esclarecimento?”. O autor nos aponta que os homens vivem em um estado de menoridade e este estado o torna incapaz de utilizar o seu entendimento sem a tutela de outro, tal menoridade é tratada como o resultado da falta de decisão e coragem de conduzir-se por si mesmo, assim, se um homem decide, de forma corajosa, utilizar o seu próprio entendimento e deixar a comodidade de ser tutelado, terá acesso ao esclarecimento (KANT, 2005: 1). À primeira vista, podemos considerar que esta análise acaba por reforçar uma falta de vontade humana, a sua covardia, portanto, em diálogo com os mitos que vivenciamos de forma passiva. Assim, podemos nos perguntar: como esclarecer-se sobre si mesmo tendo em vista a força de um mito? Como esclarecer-se sobre si mesmo diante de uma forma estabelecida de saber alimentada pelo amor ao poder de quem nos domina? Kant (2005) nos apresenta que a culpa da menoridade é do próprio homem, a não ser que esta seja por falta de entendimento e este entendimento, normalmente, é normatizado de tal forma que toma caráter de natural, daí a dificuldade de tornar-se esclarecido (KANT, 2005: 1, 2). E é neste ponto que proponho o início de nosso raciocínio acerca da dificuldade de tornar-se esclarecido, em consonância com os sistemas burocráticos analisados por Weber (1982), com a construção de um campo de saber, que pressupõe uma relação entre poder e saber, abordados por Foucault (1987), a percepção dos professores sobre si mesmos, identificada no estudo de Araujo e Schwartzman (2002) e os mitos que orientam a educação, comentados por Aquino (2005), sendo que este último, delimitado no mito do professor, sustenta todo o argumento deste artigo.
6. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Dia da Alimentação: projeto ‘7 Bilhões de Outros’ reúne depoimentos de pessoas que passam fome.


 '7 Bilhões de outros'. Foto: faugusto/Creative Commons


Em 16/10, comemora-se o Dia Mundial da Alimentação, mas para pelo menos 14% das pessoas que vivem no mundo não há nenhum motivo para comemorar a data. Dados recentes divulgados pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) mostram que, entre 2011 e 2013, uma em cada oito pessoas sofreu de fome crônica, o que equivale a 842 milhões de seres humanos – como eu ou você.

A situação é grave e, por isso, o projeto 7 Bilhões de Outros  uma “evolução” do 6 Bilhões de Outros – resolveu entrar na jogada. Criada pelo fotógrafo francês Yann Arthus-Bertrand, a iniciativa produziu um vídeo, em parceria com a ONU, que reúne depoimentos de pessoas de diferentes países falando sobre o mesmo assunto: a fome.

A ideia é fazer um retrato do problema social no mundo e mostrar que, mesmo estando longe e sem se conhecerem, essas pessoas têm mais em comum do que poderiam imaginar – e precisam de ajuda. Assista ao vídeo, que foi produzido especialmente para o Dia Mundial da Alimentação.

A face oculta do mundialismo verde



Pascal Bernardin


Tradução de Joel Nunes dos Santos e Roberto Mallet

Os visitantes deste site já conhecem o nome de Pascal Bernardin, tanto pela alusão que a ele fiz no meu artigo “Ideário do absurdo” quando pelos comentários de Charles Lagrave no link O império ecológico e o totalitarismo planetário. Agora encontrei esta conferência dele na página do Instituto Euro 92 (onde há dezenas de outras leituras importantíssimas), e não pude deixar de transcrevê-la aqui com algumas notas minhas, malgrado minha falta de tempo para traduzi-la. Se algum visitante puder fazer a tradução e enviá-la a olavo@olavodecarvalho.orgterá prestado um esplêndido serviço a todos. – O. de C.

Nota do Instituto Euro 92

Desde o fim do comunismo, o socialismo bate em retirada ao conceder mais espaço aos mecanismos que deixam uma maior margem de liberdade aos comportamentos individuais. Contudo, a ameaça não desapareceu. Embora não se trate de grandes leis históricas que fariam do Proletariado o instrumento e o veículo do Progresso, trata-se da Ecologia – mais precisamente, das elites científicas e ecológicas que se autodenominaram os messias dos novos tempos – que pretendem impor seus objetivos como elementos reguladores da liberdade dos indivíduos. No texto a seguir, Pascal Bernardin, autor de “O Império ecológico” mostra como o problema da gestão dos “bens comuns” é hoje em dia utilizado como álibi para recriar completamente as regras da justiça e da moral, sempre pretendendo manter-se no estrito limite de uma crítica liberal. Este texto é a transcrição de uma conferência pronunciada ao Instituto Euro 92 no dia 14 de abril de 1999.

Permitam-me, de início, apresentar-me. Sou politécnico e doutor em informática. Ensino informática fundamental, quer dizer, matemática da informática na Universidade de Aix-Marseille III.

Esclareço-o porque irei tratar de questões científicas muitas vezes debatidas, em particular a questão do efeito estufa.

Vim falar de minha obra intitulada O Império Ecológico, lançada em dezembro de 98, a qual trata da ecologia em suas principais dimensões, com a notória exceção dos aspectos jurídicos e educativos.

No curso desta conferência, vou mostrar como e em que medida a política e os temas ecológicos se articulam com os dois fenômenos políticos maiores do último decênio e do fim do século, a saber, a perestroika e a emergência da Nova Ordem Mundial.

As questões ecológicas são as questões fundamentais que envolvem todos os domínios: domínio econômico, político, constitucional, financeiro, e às vezes o ético e o religioso. Trata-se, portanto, para mim, de uma questão verdadeiramente central, que retoma certas idéias liberais mas que vai muito além delas.



De início, na primeira parte desta intervenção, quero falar dos objetivos mantidos pelas elites pós-comunistas que permaneceram de pé, malgrado o desaparecimento do comunismo e da queda do muro de Berlim, as quais, hoje em dia, estão integradas no conjunto das elites ditas mundialistas, alojadas no coração das instituições internacionais. Vocês notarão a diferença entre mundialismo e mundialização. Conservo o termo mundialismo para descrever a emergência das forças políticas em nível mundial; reservo o termo mundialização para a emergência de um mercado global e de instituições econômicas e financeiras globais.
A situação política do último quarto de século tem sido marcada pela queda do muro de Berlim, e simultaneamente pela instauração de uma “Nova Ordem Mundial” proposta pelo presidente George Bush. Considero que a análise desses dois fenômenos permanece ainda muito incompleta. Com efeito, nenhuma explicação real do fenômeno da perestroika foi dada. Além do mais, os objetivos precisos da mundialização e do mundialismo permaneceram muito vagos. Dito de outro modo, estamos, atualmente, num vazio conceptual absoluto; vazio que toca os dois elementos principais da vida política mundial deste fim de século. Tais são os elementos que vou pôr em evidência, adotando a ecologia como fio condutor.



No que se refere ao mundialismo, vou basear-me exclusivamente nos textos oficiais das instituições internacionais – e eles são extremamente numerosos –, como Our Global Neighbourhood (1995 – Oxford University Press), um relatório da Comissão sobre o Governo Global (Comission on Global Governance). É uma comissão estabelecida sob a égide da ONU, que inclui membros eminentes e de elevadíssimo nível, em particular Jacques Delors, atualmente Presidente da Comissão européia.

De um outro ponto de vista, vou referir-me a Ethics and Spirituals Values, relatório redigido pelo Banco Mundial, centrado nos valores éticos e espirituais para um desenvolvimento durável; quer dizer, para um desenvolvimento ecologicamente são, ou pelo menos pretendido tal.

Enfim, e não o menor deles, a um documento oriundo da conferência de Copenhague, organizado pelas Nações Unidas (Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, de 6 a 12 de março de 1995), com o título de As Dimensões Éticas e Espirituais do Desenvolvimento Social.