Prisioneiros em Guantánamo. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.
Numa base militar no caribe,
fica a prisão mais dura do mundo. suspeitos de terrorismo são levados para lá e
podem ficar presos para sempre, sem direito a julgamento. Dos 166 detentos, 130
estão fazendo greve de fome. E um deles conta, pela primeira vez, como as
coisas são por lá. Conheça a vida no pior lugar da Terra.
Reportagem de Larry Siems,
da Slate. Edição e tradução: Bruno Garattoni
Mohamedou Ould Slahi se
apresentou voluntariamente à polícia de seu país natal, a Mauritânia, em 20 de
novembro de 2001. Foi preso, e uma semana depois, a pedido do governo dos EUA,
transferido para a Jordânia. Slahi era acusado de ligações com um atentado
frustrado no aeroporto de Los Angeles, em 1999. Por sete meses, foi interrogado
pelas autoridades jordanianas, que não acharam nada que o incriminasse.
Insatisfeita, a CIA buscou Slahi e o levou até uma base militar americana no
Afeganistão.
Em 4 de agosto de 2002, ele
foi encapuzado, algemado, drogado e colocado num voo com 30 outros detentos,
para uma viagem de 36 horas até a base de Guantánamo, em Cuba, onde está até
hoje. Slahi escreveu um livro de 466 páginas contando sua história. Partes dele
acabam de ser divulgadas, e você irá ler a seguir. Os trechos cobertos por uma
tarja preta foram censurados, antes da liberação do texto, pelo governo dos
EUA. As passagens em laranja foram adicionadas pela SUPER para facilitar a
compreensão do caso.
O interrogatório
Os gritos dos outros presos
me acordaram.
Enquanto os guardas serviam
comida, nós nos apresentávamos. Não podíamos ver uns aos outros, mas era
possível ouvir as vozes. "Eu sou da Mauritânia." "Eu sou da
Palestina." "Síria." "Arábia Saudita."
"Como foi o voo?"
"Eu quase congelei até
morrer", gritou um cara. "Eu dormi a viagem toda", respondeu
[Techo censurado].
Nós nos chamávamos pelos
números de identificação que tínhamos recebido. O meu era 760. Na cela à
esquerda estava [Techo censurado], de [Techo censurado]. Na cela à direita,
havia um cara de [Techo censurado]. Ele falava mal árabe e dizia que tinha sido
capturado em Karachi (Paquistão), onde frequentava a universidade. Nas celas em
frente à minha, colocaram dois sudaneses.
O café da manhã foi modesto,
um ovo cozido, um pedaço de pão duro e uma outra coisa que não sei o nome. Foi
minha primeira refeição quente desde a Jordânia. O chá foi reconfortante.
Eu considerei a chegada a
Cuba uma bênção, e disse aos meus irmãos. "Como vocês não estão envolvidos
em crimes, não têm o que temer. Eu vou cooperar, porque ninguém vai me
torturar." Eu erroneamente acreditava que o pior tinha passado. Eu
confiava demais no sistema judicial americano.
Prisioneiros são humilhados e torturados pela "acusação de Terrorismo". Imagem: Arquivo Pessoal CHH.
"[Techo
censurado]", disse um dos soldados enquanto segurava longas correntes nas
mãos. A palavra [Techo censurado] é um código, significa que você será levado
para um interrogatório. Eu prudentemente obedeci às ordens, e eles me levaram
até o interrogador. O nome dele era [Techo censurado], e ele vestia um uniforme
do Exército dos EUA. Falava árabe decentemente, com um sotaque de [Techo
censurado]. Ele me disse que é de [Techo censurado] e costumava trabalhar como
intérprete para os [Techo censurado].
[Techo censurado] era um
cara amigável. Ele queria que eu contasse mais uma vez toda a minha história.
Quando cheguei à parte sobre (o que tinha passado) na Jordânia, ele disse que
sentia muito!
"Esses países não
respeitam os direitos humanos. Eles até torturam gente." Me senti
confortável por essa crítica a métodos cruéis de interrogatório; significa que
os americanos não fariam algo do tipo.
Depois que [Techo censurado]
terminou suas perguntas, me mandou de volta (à cela).
Eles obviamente viam o quão
doente eu estava. Eu parecia um fantasma (registros oficiais indicam que Slahi,
de 1,70 m, pesava apenas 49 quilos ao chegar à base). No meu segundo ou
terceiro dia em Guantánamo, eu desmaiei. Os médicos me tiraram da cela. Vomitei
tanto que fiquei completamente desidratado. Recebi primeiros socorros e uma
sonda intravenosa. Foi terrível, eles devem ter colocado algum remédio ao qual
sou alérgico. Minha boca secou, e minha língua ficou tão pesada que eu não
conseguia falar para pedir ajuda. Com gestos, pedi aos guardas que tirassem a
sonda, e eles tiraram.
Mais tarde, os guardas me
levaram de volta à cela. Eu estava tão doente que não conseguia subir na cama.
Dormi no chão o resto do mês. O médico me prescreveu Ensure (suplemento
nutricional) e um remédio para hipertensão. Quando eu tinha crises de nervo
ciático, os guardas me davam Motrin (anti-inflamatório). Embora eu estivesse
fisicamente muito fraco, os interrogatórios não pararam.
Nos primeiros meses em
Guantánamo, Slahi foi interrogado por agentes do FBI e da Marinha, que
utilizavam métodos tradicionais. Mas, em maio de 2003, começou seu
"interrogatório especial" - termo que os militares americanos
utilizam para se referir ao uso de técnicas mais fortes, que incluem certos
tipos de tortura. Slahi foi transferido para a solitária.
A escolta apareceu na minha
cela. "Mexa-se."
"Para onde vou?"
Prisioneiros sendo torturados em Guantánamo. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.
"Não é problema
seu", disse com raiva o guarda [Techo censurado]. Mas ele não era muito
esperto, pois tinha anotado meu destino em sua luva. [Techo censurado] era (um
lugar) reservado para os piores presos da base. Se você fosse transferido para
[Techo censurado], muitas pessoas deveriam ter autorizado, talvez (até) o
presidente dos EUA. As únicas pessoas que eu conhecia que tinham passado algum
tempo em [Techo censurado] eram [Techo censurado] al Kuwaiti e outro detento de
[Techo censurado].
Ao chegar ao bloco, a coisa
começou. Tiraram todos os meus objetos, exceto por um colchonete e um cobertor
muito fino, pequeno e velho. Fui privado dos meus livros. Fui privado do meu
Corão. Fui privado do meu sabonete. Fui privado da minha pasta de dentes. Fui
privado do rolo de papel higiênico que eu tinha.