Estatua de Heródoto no Museu do Louvre em Paris.
No processo de mobilização para a votação dessa proposta, surgiram algumas vozes discordantes em relação à regulamentação da profissão. Respeitando todas as opiniões, apresentamos, a seguir, o ponto de vista da atual diretoria da Associação Nacional de História (ANPUH) – perspectiva que pautará a atuação da entidade agora que o projeto tramitará na Câmara dos Deputados.
O que significa regulamentar? Significa definir legalmente os contornos do exercício profissional, fixar requisitos para que esse exercício se faça, definir as competências e as habilidades que o profissional deve ter para exercer uma dada profissão. Regulamentar é dar estatuto legal a uma profissão, com o Estado reconhecendo a sua existência e lhe conferindo uma identidade jurídica e pública para o seu exercício. Em síntese, significa passar a existir de fato e de direito como profissão e como profissional.
Para a ANPUH, a regulamentação da profissão de historiador é o reconhecimento social e jurídico do profissional a quem se atribui direitos e obrigações perante a sociedade. Para nós, o Estado brasileiro milita em uma contradição ao não reconhecer a profissão de historiador e, ao mesmo tempo, regular, reconhecer e avaliar cursos universitários que formam profissionais nessa área. Se o Estado reconhece que, para ser historiador, é preciso ter dada qualificação, que se deve exigir determinadas habilidades e competências nos projetos político-pedagógicos dos cursos de História por ele aprovados, deve reconhecer também a necessidade de uma lei capaz de definir os contornos de nossa profissão.
A Constituição Federal, em seu artigo quinto, inciso décimo terceiro, define que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendida a qualificação profissional que a lei estabelecer. A norma que regulamenta a profissão de historiador nada mais faz do que cumprir o mandato constitucional, definindo que qualificação deve ter aquele que exerce essa atividade: a exigência de diploma de curso superior em História ou de diploma de mestrado e doutorado nessa área.
O movimento em torno da regulamentação das profissões remonta ao imediato pós-Segunda Guerra Mundial, como resposta às crescentes demandas dos trabalhadores pelo reconhecimento de seus direitos. Ele é contemporâneo e está relacionado à criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e à emergência dos Estados de Bem-estar Social. No Brasil, as profissões consideradas de maior prestígio social foram regulamentadas entre as décadas de 1940 e 1960: contabilista (1946), economista (1951), químico (1956) médico (1957), geólogo (1962), psicólogo (1962), estatístico (1965), farmacêutico(1966), engenheiro, arquiteto e agrônomo (1966), jornalista (1969), etc. Contrariando, portanto, o que alguns afirmam, a regulamentação profissional não é um tema do discurso ou da “ideologia neoliberal”. O neoliberalismo, pelo contrário, é responsável pela crescente resistência por parte do Congresso Nacional e do Judiciário brasileiro em regulamentar as profissões. O episódio recente da desregulamentação da profissão de jornalista pelo Supremo Tribunal Federal, a pedido dos grandes grupos econômicos que dominam os meios de comunicação do país, é exemplar da prevalência desse pensamento em setores das elites brasileiras. Entre os princípios fundamentais do neoliberalismo estão justamente o da flexibilização e o da desregulamentação profissional, levando a uma precarização do trabalho e à possibilidade do pagamento de salários mais baixos a profissionais ditos flexíveis ou despreparados.
Quem conhece a realidade das empresas de educação do ensino privado, e mesmo a das instituições de ensino público, em dadas áreas, sabe não apenas que a regulamentação de nossa profissão é uma necessidade premente, como vê os danos que a não regulamentação causa aos nossos profissionais. Não é mera coincidência que a bancada ligada ao ensino privado no Congresso Nacional seja reativa a qualquer iniciativa que vise regulamentar profissões como a nossa. Como o próprio projeto aprovado no Senado reconhece, sem a regulamentação fica-se sujeito a que pessoas não qualificadas possam ser contratadas para exercer essas atividades mediante uma remuneração aviltada.
A luta pela regulamentação da profissão de historiador já se arrasta por 42 anos – no site da ANPUH há um dossiê sobre esse tortuoso processo. Nove projetos já foram apresentados à Câmara dos Deputados. E há quem diga que não ocorreu ainda o necessário debate, que adotamos uma posição pragmática e de afogadilho. Creio que as instituições, notadamente aquelas que agrupam historiadores ou futuros historiadores, devem possuir memória. Não se pode, a cada nova diretoria eleita, começar o debate sobre dadas questões como se não houvesse toda uma história de lutas. Sabemos que as posições podem ser modificadas mediante novas conjunturas, mas mesmo nesse caso se deve levar em conta a trajetória anterior da instituição.
No âmbito da ANPUH, diretorias anteriores participaram ativamente do debate e da elaboração de propostas nesse sentido. Em nenhuma instância oficial da entidade foi aprovada posição contrária à regulamentação; portanto, cabia a esta diretoria, quando surgiu a iniciativa vinda do Senado, empenhar-se para a sua aprovação. Fazer política requer perceber os momentos favoráveis, definir estratégias viáveis, sob a pena de nunca se conseguir o que se quer. Avaliamos que o contexto era adequado, mas, por estarmos em ano eleitoral, se a votação não ocorresse neste semestre, não seria feita ainda em 2010, e, sendo o final de uma legislatura, o projeto seria arquivado, tal como manda o Regimento Interno do Senado. Ter um projeto aprovado no Senado era estrategicamente fundamental, pois ele não pode mais ser arquivado ao final da legislatura. A Câmara terá que obrigatoriamente analisá-lo, se posicionando contra ou a favor. Podemos agora abrir o debate em torno de um projeto já aprovado para aperfeiçoá-lo. Uma circular nesse sentido foi enviada a todas as nossas Seções Regionais, solicitando que a regulamentação seja tema de discussão e deliberação nos Encontros Estaduais da ANPUH, que ocorrerão este ano.
Consideramos que a regulamentação da profissão de historiador é uma questão de justiça e equidade de direitos, já que outras profissões da mesma natureza que a nossa foram regulamentadas, algumas delas mantendo clara interface com as atividades que exercemos, como as profissões de geógrafo, sociólogo, museólogo e arquivista. Somos uma das áreas de formação profissional mais antigas do país e com uma importância social indiscutível, uma vez que exercemos nossa atividade no âmbito da educação, da cultura, da memória, do patrimônio histórico e artístico, que são setores de interesse social prioritários.
O projeto aprovado tem o mérito de ser singelo e de garantir a maioria de nossas históricas reivindicações: o reconhecimento de que historiador é tanto o bacharel quanto o licenciado em história; a definição, como atribuições do historiador, não só da pesquisa e do ensino de história, mas também do planejamento, da organização, da implantação e da direção de eventos ou exposições que envolvam temas históricos; a assessoria, na avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação; a emissão de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos; e que os estabelecimentos que prestam serviços nessa área devem manter em seus quadros profissionais habilitados.
É sabido que a institucionalização implica reconhecimento profissional, podendo, por exemplo, ser realizados concursos específicos para provimento do cargo de historiador em instituições públicas e privadas, o que não pode ocorrer enquanto não tivermos a profissão regulamentada. O projeto aprovado reserva o provimento de cargos, funções ou empregos de historiador aos portadores de diplomas de graduação, mestrado ou doutorado em História. Isso implica o necessário registro profissional que, no projeto aprovado no Senado, deverá ser feito junto às Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego do local em que o profissional irá atuar. O projeto não prevê, nem a ANPUH pensa em reivindicar, a criação de Conselhos Nacional e Regionais para fiscalizar o exercício da profissão, muito menos a realização de uma prova, como a exigida pela OAB para a concessão do registro profissional. A Associação não pretende tornar-se órgão de fiscalização profissional e, sim, continuar sendo a entidade de representação profissional. Os historiadores, atuando no ensino ou na pesquisa, já são submetidos a constantes processos de avaliação de suas habilidades e competências.
A luta pela regulamentação da profissão significa, portanto, uma luta pela dignidade no exercício da profissão – o que não está em desacordo com a solidariedade necessária à luta de todos os trabalhadores pela dignidade do próprio trabalho e por seus direitos, mas, pelo contrário, é um capítulo dessa luta, à medida que combate a precarização no âmbito laboral. Não estar regulamentado profissionalmente nada tem a ver com liberdade do trabalho, a não ser com a liberdade do liberalismo, que sabemos a quem serve.
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