Novas pesquisas mostram que
tribos primitivas têm muito a nos ensinar sobre justiça, saúde e até na criação
dos filhos.
Viver em países com
organização centralizada e centenas de milhões de cidadãos é algo que torna as
pessoas e as culturas bem homogêneas. E isso pode ser um problema. Nossos
ancestrais viviam em grupos de 100, 200 indivíduos. Bastava andar algumas
dezenas de quilômetros para ir parar em "terra estrangeira", povoada
por inimigos mortais que falavam uma língua bem diferente da sua. Resultado:
cada grupinho desenvolveu sua própria cultura. Única e peculiar. Alguns grupos
ainda vivem como os nossos antepassados da Idade da Pedra. É o que acontece na
ilha da Nova Guiné, por exemplo. Os povos tradicionais de lá foram os que
ficaram mais tempo isolados da civilização, então o lugar abriga mais de mil
línguas diferentes num território pouco maior que o de Minas Gerais. E a
diversidade linguística é só parte da equação. Junto com ela vem uma incrível
variedade de usos e costumes. "Esse grupos representam milhares de
experimentos naturais sobre como construir uma sociedade", diz o biólogo
Jared Diamond. Ele é conhecido por ser o autor do polêmico best-seller Armas,
Germes e Aço, no qual propõe que o acaso seria a principal explicação para o
triunfo da civilização europeia, não a tecnologia. Agora ele está com um livro
novo, e que também chama a atenção pela originalidade: é o The World Until
Yesterday ("O Mundo até Ontem", sem versão em português). Diamond
argumenta ali que tribos supostamente primitivas têm muito a nos ensinar.
"Eles descobriram
milhares de soluções para problemas humanos. Soluções diferentes das nossas".
Nas páginas a seguir, você confere algumas delas - boa parte delas bolada pelos
povos da Nova Guiné e de ilhas adjacentes, onde Diamond faz suas pesquisas de
campo. De quebra, aproveitamos para mostrar alguns pontos nos quais essas
sociedades acabam escorregando.
1. Criação dos Filhos
A situação das crianças
entre muitos povos de caçadores-coletores ou de agricultores primitivos é
paradoxal. Grosso modo, dá para dizer que os pequenos são muito mais mimados do
que os nossos bebês em várias dessas sociedades - e, ao mesmo tempo, ficam
muito mais ao deus-dará do que qualquer mamãe brasileira normal acharia seguro.
Começando pela parte fofa da coisa: entre as sociedades de caçadores-coletores
mais bem estudadas pelos antropólogos - gente como os Hadza, da Tanzânia, os
Agta, das Filipinas, e os !Kung (o ponto de exclamação representa um som feito
ao estalar a língua), da Namíbia e de Botsuana -, a idade média para desmamar
os pequenos fica em torno dos três anos. E as mamadas podem continuar por ainda
mais tempo (depois dos quatro anos de idade, no caso dos !Kung) se um
irmãozinho não aparecer para cortar o barato da criança. Entre os pigmeus Bofi
e Aka, da África Central, o desmame é feito de forma gradual e, muitas vezes,
espera-se que o filho tome a iniciativa de largar o peito.
Dá-se de mamar ao bebê
sempre que ele quiser, mesmo no meio da noite - por isso, os nenês dormem junto
com a mãe, podendo achar o peito sem necessariamente acordá-la. Não são apenas
os seios da mãe que ficam à disposição da criança 24 horas por dia. O normal é
que os bebês, até os dois ou três anos de idade, estejam quase sempre em
contato físico muito próximo com um adulto. São carregados para lá e para cá no
colo sem medo de que a criança "fique folgada" ou, então, passam o
dia em "bolsas de canguru" ou trouxinhas amarradas ao adulto.
Diferentemente dos nossos
"cangurus", no entanto, toma-se sempre o cuidado de colocar a criança
numa posição voltada para a frente, de maneira que ela tenha o mesmo campo
visual da mãe diante de si, o que parece ter algumas vantagens para o
desenvolvimento neurológico do pequerrucho.
O bebê começa a diminuir seu
contato corporal direto com os adultos também por vontade própria, por volta de
um ano de vida, quando começa a descer mais para o chão para brincar com outras
crianças. Outro aspecto importante do cuidado com os pequenos em boa parte das
sociedades tradicionais é que a tarefa é dividida entre um número muito maior
de pessoas. Além dos pais, claro, e dos avós, tios e irmãos mais velhos (que entre
nós ainda dão uma mãozinha, mas muito menos do que era usual décadas atrás, por
exemplo), praticamente todos os membros do grupo passam ao menos algum tempo
com os bebês. Conforme as crianças crescem, podem ficar dias ou até semanas na
casa de parentes ou vizinhos. E há ainda o costume da adoção ritual - a
tradição de que meninos e meninas mais velhos passem anos na casa de outra
pessoa, completando sua educação. Resquícios dessa prática aparecem na
literatura de sociedades guerreiras um pouco menos "primitivas", como
os gregos de Homero ou os nobres medievais.
Mais importante: para muitos
caçadores-coletores, palmada como instrumento educacional não existe. O
linguista americano Daniel Everett, que passou anos vivendo com a tribo dos
Pirahã, no Amazonas, conta que certo dia tentou punir sua filha Shannon na base
da chinelada. Ele não contava com os Pirahã, no entanto. A menina fez um
escândalo, e os índios, que nunca batem em seus filhos, simplesmente proibiram
a surra. Entre os pigmeus Aka, da África subsaariana, é parecido: se um dos
membros de um casal bate nos filhos, o cônjuge pode usar isso como boa razão
para um divórcio.
O respeito pela
individualidade da criança, contudo, também tem seu lado ruim. É comum que
grupos tradicionais deixem que garotos e garotas pequenos façam coisas um
bocado perigosas - e paguem o pato por isso. Diamond conta que muitos de seus
amigos das montanhas da Nova Guiné, por exemplo, possuem cicatrizes feias
causadas por queimaduras, simplesmente porque seus pais não interferiram quando
eles quiseram brincar com fogo quando crianças. Sobre os Pirahã, aparentemente
tão delicados com os pequenos, Everett conta uma história de arrepiar. Certo
dia, um menininho de dois anos estava brincando com uma faca, fazendo todo tipo
de movimento perigoso com o treco. "E a mãe, que estava conversando com
outra pessoa, pegou a faca do chão e devolveu à criança quando o menino deixou
cair! Ninguém disse a ele para tomar cuidado para não se cortar."
Também é importante lembrar
que as dificuldades da vida nômade podem levar mães e pais a tomarem decisões
difíceis, que envolvem inclusive o sacrifício de recém-nascidos. Quando nascem
gêmeos numa família de caçadores-coletores, por exemplo, é comum que um deles
seja sacrificado, porque a mãe dificilmente será capaz de alimentar ambos.
2. Fazendo justiça
Ciclos de vingança muitas
vezes tomam conta da vida dos povos tribais. É claro que isso tem a ver com a
inexistência de um Estado, capaz de monopolizar o uso da violência e de punir
crimes por meio de tribunais e prisões. Se o único jeito de fazer justiça é
matar o sujeito que matou seu pai, você vai considerar seriamente essa
possibilidade. Só tem um complicador: em sociedades desse tipo, os laços
familiares costumam ser mais fortes do que entre nós. Seu primo de segundo grau
tem tanta obrigação de vingar você quanto seu filho. E, do outro lado da
equação, uma vez vingado o assassinato original, nada impede que o primo de
segundo grau do assassino se sinta obrigado a vingá-lo. Deu para ver onde isso
vai parar.
Se o cenário parece
desesperador, também há evidências de que as sociedades tradicionais conseguem
enfrentar de forma eficaz situações que, para nós, virariam um pesadelo
judicial. É essa a lição que Diamond tira de um incidente na Nova Guiné, a
morte por atropelamento do menino Billy. O garoto foi atingido enquanto voltava
da escola. Ele desceu do micro-ônibus para atravessar a rua e se encontrar com
seu tio Genjimp, que estava esperando para levá-lo para casa, mas saiu correndo
por trás do micro-ônibus. Com isso, Malo, motorista de outro carro, não viu o
menino e acabou por atingi-lo.
Billy e Malo pertenciam a
grupos étnicos diferentes, o que poderia ser a receita para um ciclo de
vinganças. Mas, graças à mediação do chefe da tribo, a família do menino
reconheceu que tudo tinha sido um acidente e aceitou o chamado sori money, ou
"compensação" em tok pisin, língua franca da Nova Guiné, derivada do
inglês. E também ajudou a família a organizar o funeral de Billy. No final, as
partes se despediram com um aperto de mãos.
No Ocidente, lembra Diamond,
a mesma situação estaria sendo enfrentada por meio de uma disputa judicial
impessoal, com os pais do menino simplesmente processando o motorista. Para o
pesquisador, a vantagem do método da Nova Guiné é que ele tem um componente
emocional importante, dando aos pais e aos representantes do motorista uma
chance de tentar reparar, ao menos em alguma medida, o sofrimento trazido pelo
caso. É o que os procedimentos recentes da chamada justiça restaurativa - quando
vítimas e criminosos ficam frente a frente para conversar, com a ajuda de um
mediador, por exemplo - estão tentando fazer.
3. Previdência social
Jared Diamond conta que,
certa vez, passou vergonha ao bater um papo com um nativo de Viti Levu, uma das
ilhas do arquipélago de Fiji, no Pacífico. O sujeito tinha visitado os EUA anos
antes e acusou: "Vocês jogam seus idosos, e até seus próprios pais, no lixo!".Em
Fiji, os filhos chegam a pré-mastigar a comida dos pais idosos e desdentados, o
que provavelmente explica a indignação do nativo com o fato de alguns velhinhos
americanos serem esquecidos em lares para idosos, sem receber visitas da família.
De fato, o respeito cerimonioso com os mais velhos é comum entre sociedades
tradicionais.
Mas, como acontece no caso
das crianças, nem tudo são flores. Em situações de privação, muitas tribos de
caçadores-coletores acabam "sugerindo" que os velhinhos façam o favor
de bater as botas - ou praticam uma forma de eutanásia forçada (digamos) quando
isso falha. Esse tipo de prática se torna mais comum em dois contextos, diz
Diamond: quando a tribo precisa mudar de acampamento com frequência, o que
dificulta a presença de pessoas com mobilidade reduzida; ou quando o grupo
habita ambientes nos quais a falta de recursos acontece de maneira cíclica
(como os desertos e o Ártico).
Grupos como os Inuit
(esquimós) e os Hopi, dos desertos dos EUA, preferiam simplesmente ignorar os
idosos indesejáveis, deixando de cuidar deles e de lhes dar comida, até que
eles acabem morrendo. Uma tática mais ativa - e cruel - é abandonar a pessoa
mais velha quando chega a hora de mudar de acampamento e fica claro que ela não
será capaz de acompanhar o grupo sozinha, coisa que os Aché, do Paraguai,
costumavam fazer. O método mais chocante, porém, talvez seja o adotado para
viúvas do povo Kaulong, da Nova Bretanha, ilha próxima da Nova Guiné: até os
anos 50, era função dos filhos homens, ou dos irmãos da mulher, estrangulá-la
assim que o marido morria.
A antropóloga Jane Goodale
(não confunda com Jane Goodall, a famosa especialista em chimpanzés) registrou
a situação enfrentada pelo filho de uma dessas viúvas: "Quando hesitei,
minha mãe ficou de pé e, em voz alta, disse que eu só estava demorando porque
queria fazer sexo com ela". Humilhado, o sujeito acabou cumprindo seu
dever.
Se nada disso parece muito
inspirador, é bom lembrar que, em condições normais, as sociedades tradicionais
sabem dar valor a seus membros mais velhos, em especial levando em conta os
contextos nos quais eles são capazes de deixar a garotada no chinelo. Embora
não sejam mais capazes de caçar um elefante na base das lançadas, eles são os
principais responsáveis por interpretar marcas deixadas por um animal ou por
planejar a caçada. São excelentes xamãs, pajés e curandeiros, além de dominarem
o artesanato de forma mais precisa e cuidadosa do que os jovens, mais afoitos.
E, em culturas que são orais e dependem de um conhecimento detalhado do
ambiente, seus cérebros funcionam como bibliotecas vivas, guardando segredos
como o que comer quando uma seca severa ou um furacão acabam com quase todas as
fontes de alimento.
4. Paleo-dieta
Diamond lembra que, quando
começou a trabalhar na Nova Guiné, na década de 1960, obesos ou mesmo gente um
pouco acima do peso pareciam simplesmente não existir na ilha. Musculosos,
esbeltos e cheios de fôlego, os nativos eram capazes de carregar pesos enormes
no lombo durante o dia inteiro sem se cansar. Problemas cardíacos, pressão
alta, diabetes e câncer mal eram registrados por lá - os idosos da Nova Guiné
de então raramente eram afetados por esses males.
Hoje, porém, uma das maiores
incidências de diabetes do mundo (37% da população) ocorre justamente entre os
Wanigela, da Nova Guiné. A conclusão parece ser óbvia: a dieta moderna, cheia
de açúcar refinado, farinha e sal conseguiu estragar a saúde deles. Os dados
obtidos com os povos tradicionais mostram como o nosso organismo poderia ser
diferente se ainda seguíssemos uma dieta parecida com a deles.
Veja o caso dos ianomâmis,
por exemplo. A dieta dos índios, cuja base é a banana, contém apenas 50
miligramas de sal por dia. Isso significa que um único Big Mac equivale a um
mês inteiro do consumo de sal deles. A vantagem disso é, claro, a diminuição do
risco de pressão alta e de todos os problemas cardiovasculares, como enfartos e
derrames, que podem vir do consumo excessivo de sal. Se o número mágico
"12 por 8" vale como indicativo de pressão arterial saudável para
nós, é porque não estamos acostumados ao padrão ianomâmi: 9 por 6.
Logo atrás deles, numa
amostragem de 52 populações mundo afora, vêm os índios do Xingu e os nativos do
vale Asaro, na Nova Guiné, com 10 por 6. Esses grupos, além disso, não mostram
uma tendência de aumento da pressão conforme a idade avança, diferentemente do
que se vê entre nós.
Ninguém precisa adotar uma
dieta de mandioca e capivara mal passada para reconhecer que, durante muito
tempo, as condições ambientais e a cultura dos indígenas permitiram que eles
evitassem doenças que hoje nos afetam. Do mesmo modo, não é preciso deixar seu
bebê brincar com facas de churrasco para tentar dar a ele a autonomia que
parece funcionar com as crianças dos caçadores-coletores. A vantagem da cultura
moderna talvez seja a possibilidade de comparar os vários sistemas de
sobrevivência - e adotar o melhor que cada um deles tem a oferecer.
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