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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

65 anos do Nakba: A limpeza étnica da Palestina e as responsabilidades ocidental e brasileira.


Imagens do êxodo palestino em 1948.

No dia 29 de novembro de 1947, as Nações Unidas recomendaram a partilha da Palestina em dois Estados, um judeu e um árabe. Esse plano jamais foi integralmente implementado, no entanto, criou o cenário da guerra de 1948, durante a qual Israel foi unilateralmente estabelecido como um Estado judeu no dia 15 de maio, mediante a limpeza étnica de mais de três quartos do povo palestino, confiscando suas terras e impedindo o seu retorno. Essa guerra é lembrada pelos palestinos como a Nakba (catástrofe) e deu início a mais longa ocupação no mundo contemporâneo, a qual já dura 65 anos. Desde então, as políticas e práticas israelenses violam a lei internacional, incluindo a Quarta Convenção de Genebra e a Convenção Internacional de Supressão e Punição do Crime de Apartheid.

I- A Palestina Árabe

A derrota que os árabes impuseram ao domínio bizantino na Palestina, confirmado entre os anos 633 e 638 da era cristã, foi bem recebida pela população local, tanto por cristãos como por judeus e samaritanos, que ainda eram grupos numericamente importantes na região. Estes últimos grupos tinham todos os motivos para preferir a organização árabe, vítimas que já eram da intensa perseguição cristã, que só pioraria com os séculos (aliás, no início do período árabe na Palestina—que se estenderia pelos próximos 1.300 anos–, uma pequena população judaica voltaria a se estabelecer em paz em Jerusalém, depois de 500 anos de ausência, que datavam da sangrenta expulsão que os romanos lhe haviam imposto no segundo século da era cristã). O período árabe também foi bem recebido pelos cristãos da região, que “eram arameus [e] não ficaram incomodados pela organização árabe, pois a etnia era semelhante, de origem semítica”, não tendo eles “motivos para gostar da administração bizantina, de origem romana, não semítica”1. Na Palestina árabe, apesar de um imposto específico para judeus e cristãos, eles gozavam de proteção como “Povos do Livro”, e a atmosfera não tinha muito em comum com o regime de terrorífica perseguição que se instalaria nas regiões controladas pelo Cristianismo. A Sura 2 de Maomé explicitamente rejeita a conversão e o proselitismo violento: “Não obrigueis ninguém em assuntos de religião”. A violência sectária só voltaria a se disseminar na Terra Santa com as empresas cristãs de conquista conhecidas como Cruzadas, a primeira das quais foi proclamada pelo Papa Urbano II em 1095 e resultou no estabelecimento do “Reino de Jerusalém”, em 1099, uma fortaleza de reduzidas relações com seu entorno árabe, ironicamente semelhante, neste aspecto, ao enjaulamento que as construções israelenses ilegais hoje impõem a Jerusalém.

As cruzadas à Palestina enfrentariam os muçulmanos locais aos invasores cristãos, com a pequena população judaica da região frequentemente lutando ao lado daqueles contra estes, como em 1099, em Jerusalém, e em 1100, em Haifa. No século XII, na época da Segunda Cruzada, os muçulmanos se reunificam politicamente sob o comando do General Saladino, curdo nascido em Cairo. Saladino recupera Damasco (1174), Acre, Jafa, Beirute, e a própria Jerusalém, em 1187. Na Terceira Cruzada, Ricardo Coração de Leão derrotaria Saladino, forçando-o a negociar e celebrar o tratado de paz que “abriu caminho a um período de calmaria militar e tolerância religiosa na Palestina”2, permitindo aos cristãos visitar os lugares sagrados. A Quarta Cruzada (1199) planejava tomar o Egito por mar, mas fez um desvio para a região da atual Turquia, instalando o Império Latino de Constantinopla. A Palestina só voltaria a ser afetada pela Cruzada de Federico II que, conhecedor da língua árabe, foi capaz de “obter do sultão a entrega pacífica, embora condicionada, de várias terras e das cidades de Belém, Nazaré e Jerusalém, onde o imperador entrou e foi coroado em 1229”3. Já em 1244, Jerusalém voltaria ao poder dos árabes, e o último reduto cristão na Palestina, São João de Acre, cairia em 1291. O controle de toda a área entre o Jordão e o Mar Mediterrâneo—os atuais territórios de Israel e da Palestina Ocupada—permaneceria em mãos árabes até a invasão turco-otomana, em 1517. Mesmo durante o período marcado pela sua incorporação ao Império Turco-Otomano (de 1517 até 1917, com uma interrupção egípcia durante a década de 1830), a Palestina manteria sua enorme maioria árabe, organizada segundo laços sociais bem arraigados na região, que o império turco não alteraria significativamente.

As sucessivas demonstrações de desmemória na política ocidental para o Oriente Médio contrastam com o forte arraigo que certos eventos históricos possuem na reminiscência das massas árabes. Em 1993, acusado de estar celebrando com os israelenses, em Oslo, um tratado que não concedia nada aos palestinos e o instalava na posição de cão de guarda de Israel, o líder Yasser Arafat insistia, um pouco pateticamente (dadas as condições em que negociava), que ele não celebraria qualquer paz, mas “a paz de Saladino”. O leitor dos EUA não tinha a menor noção do que se referenciava ali, mas o povo árabe não deixava de notar a ironia involuntária da impotente insistência de Arafat na menção a Saladino. Antes de entrar no período histórico que imediatamente influencia o curso dos acontecimentos que nos ocupam, portanto, é boa ideia lembrar alguns fatos que se desprendem desse esquemático sumário de alguns séculos de história palestina. Inicia-se no século VII uma intensa arabização da região, que já era visível em séculos anteriores a Maomé, mas que solidifica suas raízes com a chegada dos árabes a Jerusalém, em 638, e a construção da mesquita Al-Aqsa. Durante os próximos 1.300 anos os árabes serão a grande maioria em toda a região da Palestina. No período das Cruzadas, estima-se que havia em torno de 1.000 famílias judias na região.4 Em 1914, já depois das primeiras ondas migratórias estimuladas pelo sionismo, a Palestina (ainda, naquele momento, sob domínio otomano) tinha uma população de 657.000 árabes muçulmanos, 81.000 árabes cristãos e 59.000 judeus.5 De acordo com o censo da Palestina de 1922, feito pelos britânicos, a população era 78% muçulmana, 9,6% cristã (árabe, claro) e 11% judaica. No entanto, no jornalismo “ponderado” sobre a região, mesmo depois de 60 anos de limpeza étnica e 43 anos de ocupação ilegal, você verá desinformados funcionários da grande mídia dissertando, “mui ponderadamente”, sobre os “direitos” dos dois povos sobre a Palestina.

O domínio otomano sobre a Palestina dura de 1517 a 1917, com uma interrupção de 10 anos de administração egípcia na década de 1830. A submissão ao império turco não altera de forma significativa o regime de posse baseado na renda agrícola das terras, já visível no período do sultanato, anterior aos otomanos. Esse sistema relativamente descentralizado de vilas e aldeias, com arrecadação por senhores de terras e trabalho de cultivo por lavradores, arraiga-se na região e ajuda a explicar o terror dos palestinos com—e sua impotência para se defender contra—a violenta campanha de confisco de terras e separação de raças que se inicia com o armamento dos sionistas, nas décadas que antecedem a fundação do estado de Israel. Nas primeiras décadas do século XX, o sionismo armado traria à região um modelo eminentemente europeu de organização territorial e compreensão do espaço, caracterizado pela acumulação, posse e construção de barrreiras fronteiriças. Munidos desse olhar que historicamente relativiza os fatos, nos preparamos para explicar alguns “mistérios” que cercam a história recente: como foi possível que metade de uma população árabe palestina que já se media em bem mais de um milhão tenha sido expulsa tão rapidamente por algumas dezenas de milhares de colonos sionistas? Como foi possível que o nascente estado judeu tenha adquirido uma supremacia tão incontestável no conflito com seus vizinhos árabes e com os palestinos? Para repetir a pergunta que abre um artigo já clássico de Walid Khalidi: Por que os palestinos foram embora?6Observando a realidade relativamente fluida de comunicação entre as aldeias árabes, a intensa organização acumuladora de terras e de armas entre os colonos sionistas e o papel das grandes potências–particularmente da Grã-Bretanha—no processo, começamos a vislumbrar a explicação, que só se completará, claro, com um estudo do que aconteceu em 1948. A compreensão dessa diferença nos regimes de posse da terra, no entanto, é parte da explicação da vitória sionista. Essa explicação, aliás, não tem a menor necessidade de recorrer a estereótipos antissemitas do judeu mais esperto ou conspirador, nem a estereótipos antissemitas do árabe mais atrasado ou indolente, nem a falsificações da mitologia oficial israelense, que repetiram durante décadas que os palestinos saíram voluntariamente ou obedecendo a misteriosas ordens radiofônicas dos próprios árabes, mentiras já cabalmente corrigidas pela própria historiografia israelense. 



531 aldeias palestinas foram destruídas no Nakba. 


II – Da Declaração de Balfour (1917) à Palestina do Mandato Britânico (1922-48)

Quando se estuda o processo histórico pelo qual se chegou à atual, desastrada situação na Terra Santa, salta aos olhos a responsabilidade das potências ocidentais que, ao longo do século XX (para nos atermos à história mais recente), jogaram um jogo duplo, perigoso e marcado pela reversão do que se havia dito antes. Pensando em seu próprio interesse e em completa desconsideração pelo destino de milhões de civis inocentes, a Grã-Bretanha literalmente toca fogo na região, ao fazer promessas contraditórias aos povos árabes e ao movimento sionista. O reino de Sua Majestade não possui sequer a desculpa de que se tratava de uma causa nobre. Era 1916 e 1917, e tratava-se da consolidação de sua coalizão na Primeira Guerra Mundial. Ao contrário da Segunda Guerra, defensável como reação legítima à agressão nazi-fascista, a Primeira é um típico conflito napoleônico-clausewitziano moderno, um choque entre impérios. A Turquia, aliada dos alemães, mantinha a Palestina árabe sob o seu império otomano (como se viu acima, um jugo relativamente frouxo, onde a vida palestina seguia com considerável autonomia, situação que nem de longe tinha nada em comum com o horror das posteriores expulsão e ocupação israelenses). Interessada em atrair os árabes, a Grã-Bretanha promete para depois da guerra, em correspondência oficial entre Sir Henry Mac Mahon e o xeque Hussein, de Meca, a criação de um estado independente nas províncias do império turco em que se falava o árabe. A luta dos árabes contra a dominação otomana acabaria sendo decisiva para a vitória de seus aliados britânicos naquele front. Toda a evidência histórica demonstra que as lideranças árabes esperavam que os britânicos cumprissem sua palavra e confirmassem o estado árabe independente depois da guerra. Não foi o que aconteceu.

Ter prometido algo aos árabes não impediu que a Grã-Bretanha celebrasse com a sua aliada França um tratado contraditório com a promessa anterior. Os acordos de Sykes-Picot, de 1916, entre Grã-Bretanha e França, reservavam aos franceses a Síria e o Líbano. Em 1917, as forças otomanas se rendem ao general britânico Allenby em Jerusalém e em 1918 se confirma o fim do regime otomano na Palestina. O Tratado de Versalhes, de 1919, selaria o arranjo de Sykes-Picot entre França e Grã-Bretanha, deixando aos britânicos a área da Jordânia (então chamada de Transjordânia), do Iraque e da Palestina. A Liga das Nações, fundada depois da guerra, avalizaria esse arranjo, segundo o qual as duas potências ocidentais se responsabilizariam por um “mandato” temporário sobre essas regiões, até a sua independência formal. Em 22 de julho de 1922, a Liga das Nações aprova o mandato britânico na Palestina, que deixaria como legado o progressivo armamento dos colonizadores sionistas e a catástrofe palestina de 1948.

Ao mesmo tempo em que prometia independência aos árabes, o império britânico fazia sua famosa promessa ao movimento sionista internacional, a Declaração de Balfour (1917), patentemente contraditória com a promessa feita aos árabes e com o próprio arranjo subjacente a Sykes-Picot e a Versalhes. Enviada pelo secretário exterior britânico Arthur James Balfour ao Barão Rotschild, para transmissão à Federação Sionista da Grã-Bretanha e da Irlanda, a declaração mudaria a história do Oriente Médio: “O governo de Sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e usará seus melhores esforços para facilitar a realização desse objetivo, ficando claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judias existentes na Palestina, ou os direitos e status político desfrutados por judeus em qualquer outro país”. Apesar de que a declaração mencionava a preservação de todos os direitos da população nativa, é evidente que “Balfour não tinha nenhum interesse em consultar os árabes da Palestina acerca de seu futuro”7. Em suas memórias, Lloyd-George, primeiro-ministro em 1917, se refere à declaração como uma recompensa a Chaim Weizmann, um dos líderes sionistas mais importantes daquele momento (depois primeiro presidente de Israel) e químico que havia desenvolvido um método de sintetizar a acetona na produção de pólvora. A declaração também está inserida na tentativa de mobilizar as comunidades judaicas da Rússia e dos EUA no apoio aos esforços de guerra britânicos, e termina sendo um enorme estímulo ao movimento sionista. Depois da vitória aliada, o próprio Chaim Weizmann participaria da Conferência de Paz de Paris, em 1919, clamando por uma “Palestina tão judia como a Inglaterra é inglesa”8, num momento em que os judeus representavam não mais que 10% da população da Palestina. No ano seguinte, fundava-se na Palestina a Hagana, organização paramilitar judaica depois responsável pelo extermínio ou limpeza étnica de centenas de aldeias palestinas.

Só depois de três décadas (1880-1910) de migração, compra de terras e armamento sionistas é que aparecem os primeiros registros de preocupação entre as lideranças palestinas. Em 06 de maio de 1911, o palestino e membro do parlamento otomano, Said al-Husayni, apontava que “os judeus planejam criar um estado na área que incluirá a Palestina, a Síria e o Iraque”9. Segundo o historiador israelense Ilan Pappe, já entre 1905 e 1910 há alguma evidência de discussão, entre líderes palestinos, do fenômeno do sionismo como movimento político que acumulava poder e terra. Mas só a partir da queda do regime otomano na Palestina (1917) e o começo do período britânico (ocupação em 1918, mandato da Liga das Nações em 1922), o movimento sionista se lançaria paulatinamente a um plano de limpeza étnica dos árabes. Ali passa a ser visível a preocupação sistemática e, por vezes, o pânico das lideranças palestinas com as ondas migratórias, a acumulação de terras e a violência física que se iniciava. Mas ao longo das duas últimas décadas do século XIX e das duas primeiras do século XX, a imigração sionista não esteve entre as grandes preocupações dos palestinos.


Campo de refugiados Nahr al-Barid, Líbano, inverno de 1948

Na década de 1920, os palestinos representavam ainda uma maioria de 80% a 90% na região. A tentativa inglesa de construir estruturas paritárias que reconciliassem as promessas contraditórias feitas por eles ao povo árabe e ao movimento sionista encontrou compreensível resistência entre os palestinos, que “se recusaram, no começo, a aceitar a sugestão britânica de paridade, especialmente uma paridade que os colocava na prática em desvantagem—o que incentivou os líderes sionistas a endossarem-na”10. Começa a se desenhar ali um paradigma que seria reconhecível até os dias de hoje: 1) instala-se uma mediação ocidental que recomenda uma solução patentemente favorável ao sionismo; 2) os árabes protestam, apontando, como no caso em questão, que a paridade entre um povo que representa 90% da população e outro que totaliza 10% contraria o mais elementar princípio da democracia; 3) a liderança sionista, com intenso trabalho de relações públicas, manifesta concordância tática com a solução apresentada, sabendo que a recusa árabe os coloca na posição de, ao mesmo tempo, aceitar um plano e não se comprometer com ele; 4) enfraquecidos politica e militarmente, os representantes árabes voltam atrás e aceitam a solução originalmente apresentada pela potência ocidental; 5) ante a concordância árabe com o plano, é a vez da liderança sionista dizer que a solução lhe é inaceitável, o que lhe permite arrastar o impasse e, a partir de sua posição de força, aboncanhar mais e mais, ao mesmo tempo em que adia outra vez uma solução definitiva; a vitória não impede que a liderança sionista prolongue o impasse, reinstalado por um aumento das suas exigências; 6) esse prolongamento faz com que todo o ciclo se reinicie, com mais concessões árabes e mais impasse, até o ponto a que chegamos hoje, em que a população palestina já não tem o que oferecer, exceto alguma forma mágica de desaparição. Esse filme se repete com macabra previsibilidade, ante o olhar conivente das potências cúmplices (Grã-Bretanha e, depois, os EUA), desde 1928, vinte anos antes da fundação do estado de Israel. É a data em que as lideranças palestinas, “apreensivas com a crescente imigração judia ao país e com a expansão de seus assentamentos colonizadores, concordam com a fórmula [paritária] como uma base para as negociações”11. É a data em que os sionistas já não a aceitam e os britânicos permanecem de braços cruzados. Esses mesmos sete passos se repetirão em 1947-48, no episódio que os apologistas da ocupação israelense descrevem como o momento em que as Nações Unidas ofereceram um plano de partição “que os judeus aceitaram e os árabes recusaram”. Já veremos adiante todo o contexto que essa frase omite.

Entre 1924 e 1928 chegam mais 67.000 judeus (metade dos quais oriundos da Polônia), elevando a população judaica para 16% do total da Palestina do Mandato. Naquele momento, os judeus são donos de 4% da terra na Palestina. O censo de 1931 registra uma população de 1,03 milhão de almas, 16,9% judeus. A não implementação, por parte da Grã-Bretanha, da fórmula paritária que ela própria havia proposto, leva à rebelião árabe de 1929, o primeiro grande sinal de descontentamento com a política imposta no Mandato. Imagine um povo que representa quase 85% da população se rebelando, em sua própria terra, para ter a paridade que lhe havia sido proposta com os outros 15% que acabavam de chegar. Agora imagine que a autoridade administrativa responsável pela proposta se beneficiara da colaboração desse povo, como aliado seu, numa guerra mundial, e que a moeda de troca oferecida por essa colaboração não era paridade nenhuma, mas um estado seu, autônomo, em suas terras. Com isso você terá os elementos centrais para entender a primeira rebelião de desobediência civil árabe na Palestina moderna. Os confrontos em torno ao Muro das Lamentações em 1929 levam à morte de 133 judeus e 116 árabes, a maioria por mãos inglesas.12 Em 1931, funda-se o Irgun, outra organização paramilitar judia que se caracterizaria pelos ataques sangrentos aos árabes.

Ao se completar uma década e meia da queda do regime otomano e uma década da implantação do Mandato Britânico na Palestina, vão se configurando os elementos que produziriam a tragédia: 1) o fim da ameaça otomana ao sionismo, que depois de 15 anos já não tem que temer qualquer eventual expulsão sua da Palestina vinda do regime de Istambul; 2) o pesado armamento de grupos paramilitares sionistas como a Hagana e o Irgun, que vão acentuando a escolha por conquista e violência; 3) a perplexidade das lideranças palestinas, arraigadas em séculos de organização social descentralizada e não equipadas por sua experiência para se contrapor de forma efetiva à ofensiva territorial e armamentista do sionismo; 4) a incapacidade de setores das elites árabes de perceber a natureza do fenômeno sionista, vendo-o muito mais como uma “tentativa irresponsável por parte da Europa de transferir ao país o seu povo mais pobre e sem estado”13; e evidentemente 5) a subida ao poder do Partido Nacional Socialista alemão, que em menos de uma década alçaria 19 séculos de antissemitismo a níveis jamais vistos, com a intensa campanha de perseguições, agressões bélicas e matanças que culmina, já numa Europa em guerra, com o genocídio de 6 milhões de judeus. 


Poster da organização paramilitar judaica Irgun, 1937.

Qual é, então, a Palestina que assiste à invasão hitlerista da Polônia que dá início à Segunda Guerra Mundial em 1939? Robert Fisk acerta ao descrevê-la como presa a uma “atmosfera de suspeita, paranóia e intenso sofrimento”, tanto para árabes como para judeus, “os primeiros com medo de a Grã-Bretanha acabar autorizando a fundação do estado israelense em suas terras, e os segundos observando a aniquilação de sua raça na Europa”14. Não há dúvidas de que, na medida em que vão ficando visíveis as dimensões do Holocausto judeu na Europa, reforça-se a percepção sionista de que a implantação de seu estado na Palestina é uma questão de sobrevivência. Mas antes mesmo do início da Segunda Guerra Mundial, em 1938, a voz de historiadores como George Antonius já se levantava contra a eventual “resolução” do problema às custas dos árabes palestinos:

O tratamento dado aos judeus da Alemanha e outros países europeus é uma vergonha para seus autores e para a civilização moderna; mas a posteridade não exonerará nenhum país que não consiga enfrentar sua parte dos sacrifícios necessários para aliviar o sofrimento e a angústia dos judeus. Impor a maior parte da carga à Palestina árabe é uma miserável forma de esquivar-se das responsabilidades que deveriam recair sobre todo o mundo civilizado. Também é moralmente vergonhoso. Nenhum código moral pode justificar a perseguição de um povo em uma tentativa de pôr fim à perseguição de outro. O remédio para a expulsão dos judeus da Alemanha não deve ser buscado na expulsão dos árabes de sua pátria; e também não se conseguirá o alívio da angústia dos judeus às custas da angústia de um povo inocente e pacífico.15

Seria difícil formular o protesto em termos mais claros e moralmente firmes que os de Antonius. Suas palavras datam de 1938 e são, portanto, anteriores à guerra e aos horrores dos fornos crematórios nazistas; precedem, em uma década inteira, a fundação do estado de Israel e a expulsão de 750.000 palestinos de suas terras. Mais de sete décadas depois de enunciadas, elas ainda ecoam em sua atualidade e retidão ética. 

III – A responsabilidade da diplomacia brasileira no Nakba: Oswaldo Aranha

Antes de transferir a questão da Palestina às mãos das Nações Unidas, em fevereiro de 1947, os ingleses apresentaram a proposta de um estado binacional, rejeitada pelos sionistas. Na mitologia oficial israelense, é frequente a referência à rejeição árabe do plano de partição apresentado pela ONU em 1947, mas é muito menos comum qualquer menção à rejeição sionista do plano inglês de um estado binacional. Já antes da transferência da questão à ONU, a liderança sionista tinha bastante claro que a Grã-Bretanha saía da Segunda Guerra Mundial como uma potência de segunda ordem, muito mais interessada, portanto, em abandonar o imbróglio da Palestina que em ajudar a resolvê-lo. Também já estava claro para os sionistas que só restavam os britânicos entre eles e a execução do plano de limpeza étnica, e que a saída britânica da região era iminente. O imperialismo ocidental mais uma vez largava um desastre de sua criação nas mãos de uma população nativa não equipada para resolvê-lo. Qualquer semelhança com o Iraque atual não é mera coincidência.

O Brasil também tem sua responsabilidade histórica no arranjo que produz a catástrofe palestina. Foi Oswaldo Aranha, diplomata brasileiro, quem presidiu as discussões que levariam à fundação do estado de Israel. Até mesmo a hagiográfica biografia de Aranha escrita pelo norte-americano Stanley Hilton dá alguma ideia do que foram as manobras do diplomata brasileiro. Convocado pelo general Dutra em 1947, Aranha seria o representante brasileiro no Conselho de Segurança da recém fundada Organização das Nações Unidas. Depois, seria eleito presidente da sessão especial da Assembleia Geral encarregada de discutir o problema da Palestina. Aranha prometeria aos representantes árabes “plena liberdade de discussão” do tema, logo depois que a Assembleia rejeitara uma proposta árabe para que se incluísse na agenda a questão da independência da Palestina. Não foi o que aconteceu. Ante a observação do Grã Mufti de Jerusalém, de que “os judeus queriam se apoderar da Palestina para sua maior expansão na região”, Aranha retrucou que “a opinião do Mufti não me interessa”16. A recomendação do comitê enviado à Palestina foi favorável ao ponto de vista sionista, ou seja, a partilha, por uma maioria de sete votos (num total de onze). Mas na Asssembleia Geral, vinte países se abstiveram e a recomendação não teve os dois terços necessários. Hilton relata que os últimos dias de novembro foram de crescente tensão, e que apesar das declarações públicas de Aranha, de que não exerceria nenhuma influência, sua atuação nos bastidores era fortemente alinhada com os sionistas, fato reconhecido por Abba Eban, membro da equipe negociadora da Agência Judaica na ONU17.

Quando a liderança sionista percebe que ainda não detinha a maioria, inicia uma manobra pelo adiamento da votação. Aranha “inteirado da situação, usou de sua autoridade para ajudar: quando terminaram alguns discursos protelatórios encomendados, anunciou ‘com irreverência’ que, sendo período de férias nos Estados Unidos, seria justo que a Assembleia o respeitasse e suspendeu a sessão”18. Quando se reabriram os trabalhos, no dia 29 de novembro, eram os árabes que sentiam que haviam perdido terreno. Tentaram adiar o voto. Aranha ignorou uma moção do Irã, que pedia um reexame da questão palestina e um adiamento dos trabalhos para janeiro de 1948. Aranha, que tinha “a mão mais rápida no martelo que já vi”, segundo a expressão de Abba Eban, procedeu a conduzir a votação, que aprovou a partição da Palestina por 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. Note-se aí, claro, a limitada representatividade da ONU naquele momento anterior à descolonização na África e Ásia. Os árabes, num padrão que se repetiria ao longo do anos, deixaram o espaço livre para os sionistas ao se retirarem do recinto. Chaim Weizmann, que seria o primeiro presidente de Israel, testemunhou a Aranha que “a sessão da Assembleia não poderia ter terminado com esta decisão histórica [...] se não fosse vosso esforço persistente e vossa devoção como presidente”19. 


Musa Kazim al-Husseini, ex-prefeito de Jerusalém, espancado por tropas inglesas.

Em 29 de novembro de 1947, quando a ONU adotou a resolução de partição da Palestina, os árabes representavam dois terços da população da região. Eles eram aproximadamente 90% no início do Mandato Britânico, em 1922. A partição proposta pelo Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP, pela sigla em inglês) concedia ao terço judeu nada menos que 56% do território, deixando aos dois terços árabes somente 44% da terra. Por pressões do Vaticano e das nações católicas, a resolução da partição reservava à cidade de Jerusalém (de população de 200.000 pessoas, divididas mais ou menos igualmente entre árabes e judeus) a condição de área internacionalmente governada. A divisão demográfica dos dois putativos países era bizarra: no estado árabe, deveriam viver 818.000 palestinos, hospedando 10.000 judeus. No estado judeu, viveriam 438.000 palestinos entre 499.000 judeus. Esse estado detinha a esmagadora maioria das terra férteis e, das 1.200 aldeias palestinas, aproximadamente 400 estavam incluídas em seu interior, sob soberania sionista20. 

Elaborada pelo UNSCOP, cujos membros não sabiam muito sobre a Palestina, a partição se transformaria na Resolução 181 da ONU. Não é de se estranhar que a liderança palestina do momento a rejeitasse. Com o boicote palestino ao UNSCOP, com certeza um erro político grave, a liderança sionista, de ampla superioridade bélica, se viu livre para dominar também o jogo diplomático.

A amarga ironia da história, quando a vemos do ponto de vista árabe, é que, como já argumentou a própria historiografia israelense (Simcha Flapan, por exemplo), se os palestinos tivessem aceitado a partição, a liderança sionista com certeza a teria rejeitado21. Basta examinar as comunicações entre Ben-Gurion e a hierarquia sionista para ver como a rejeição árabe ao plano de partição permitiu ao sionismo aceitá-lo publicamente e ao mesmo tempo trabalhar contra ele. Logo depois da adoção da Resolução 181, Ben-Gurion afirmava ao círculo da liderança sionista que a rejeição árabe ao plano significava que “não há fronteiras territoriais para o futuro estado judeu” e que as fronteiras “serão determinadas pela força e não pela resolução de partição” (p.37). Respondendo a um líder sionista e ministro do exterior (Moshe Sharett) acerca das possibilidades de defender o seu território, Ben-Gurion afirmava: “seremos capazes não só de nos defendermos, mas de infligir golpes letais aos sírios em seu próprio país—e tomar a Palestina como um todo” (p.46). Essas comunicações, disponíveis para consulta nos próprios arquivos israelenses, demonstram claramente que a liderança sionista viu o plano de partição como uma conquista tática, que colocava em definitivo sobre a mesa a legitimidade de um estado judeu na Palestina e estabelecia um trampolim para conquistas posteriores. Essas conquistas, é certo, foram facilitadas pelo perplexo boicote palestino ao Comitê da ONU. Reitere-se, então, que as citações de Ben-Gurion acima são parte de uma ampla documentação que prova que a liderança sionista jogou um jogo duplo e não se comprometeu com a partição como fórmula definitiva. Isso jamais é mencionado pelos apologistas da ocupação de Israel que repetem a consigna de que “os judeus aceitaram a partição de 1947 e os árabes a rejeitaram” como justificativa dos crimes cometidos por Israel em 2010, e bem além dos limites dessa partição.

Antes de descrever a expulsão dos palestinos de suas terras, mais um elemento do xadrez político legado pelo Mandato Britânico deve ser explicado: o acordo sionista-jordaniano que deixa os palestinos sem o apoio do principal exército árabe na Guerra de 1948 e à mercê do superior poder bélico sionista. Aliada dos ingleses na Primeira Guerra Mundial, a família real Hashemita havia recebido os reinos da Jordânia e do Iraque como recompensa por seus serviços. O que passou a ser conhecido como Transjordânia “era um pouco mais que um principado desértico e árido ao leste do Rio Jordão, cheio de tribos beduínas e aldeias circassianas” (p.43). As férteis terras da Palestina situadas a oeste do Rio Jordão, no que hoje é conhecido como Cisjordânia (ou seja, o grosso do território do que é, legalmente, a Palestina atual), passaram a ser objeto da cobiça da família real Hashemita. Havia poucos judeus ali, e entre 1946 e 1947 a realeza jordaniana e a liderança sionista chegaram um acordo: os jordanianos não interfeririam na guerra árabe-israelense que se avizinhava—promessa que os jordanianos cumpriram—e a região da Cisjordânia seria anexada pelo reino dos Hashemitas, sem interferência sionista—promessa que os israelenses quebraram em 1967, ao ocupar o território e mantê-lo sob seu controle, picotagem policial e colonização armada até hoje. Também ali se instalaria um paradigma repetido incontáveis vezes desde 1948. Acuados pelo poder superior dos sionistas, as elites árabes vizinhas rifavam os palestinos, deixando-os entregues à própria sorte num jogo no qual não tinham nenhuma chance. É mais um elemento da tragédia do Oriente Médio.

Revisando os diários de Ben-Gurion e os arquivos israelenses posteriores à partição, o historiador Ilan Pappe encontra certa surpresa e júbilo entre a liderança sionista com o caráter limitado da reação palestina ao recorte de suas terras. Seguindo-se à Resolução 181, os palestinos se limitam a convocar uma greve geral de três dias, durante a qual a repressão inglesa foi duríssima. As revoltas árabes que aconteceram entre 1936 e 1939 deram também à organização paramilitar judia Hagana sua primeira experiência na execução das táticas militares aprendidas com a Grã-Bretanha. A destruição da liderança política palestina seria decisiva para o rumo posterior dos acontecimentos. O quadro que precede a guerra de 1948 é de intenso armamento sionista, coincidindo com um momento de particular fragilidade da liderança palestina, destroçada pela repressão britânica à revolta de 1936-39. No jogo diplomático, começa a pesar a consciência culpada da Europa, em choque com as dimensões gigantescas do Holocausto judeu, recém perpetrado. Quebrar as promessas feitas aos árabes era preço relativamente pequeno para expiar, às custas de outrem, a culpa européia pelo judeocídio. No xadrez político da região, o acordo sionista-jordaniano neutralizava o principal exército árabe. Em pânico com os constantes ataques dos grupos paramilitares judeus (Hagana, Irgun e Stern), a população autóctona, já em 1947, começa a perceber o poderio sionista como uma força imbatível. Estava aberto o caminho para a limpeza étnica da Palestina. 

IV – A preparação da expulsão

Toda sorte de distorções e mitos já foram circulados sobre o que aconteceu na Palestina entre o final de 1947 e o começo de 1949. Na mitologia oficial israelense, no senso comum, no jornalismo mais venal ou preguiçoso, nas Wikipédias e até mesmo em livros embalados como se fossem de pesquisa historiográfica séria, essas distorções foram sedimentando uma coleção de narrativas que recorrem a falsificações não raro contraditórias entre si: 1) que o povo palestino como tal não existia; 2) que ele existia mas que saiu voluntariamente de suas terras em 1948; 3) que não saiu voluntariamente, mas que tampouco foi vítima do sionismo, pois abandonou suas aldeias atendendo a ordens radiofônicas dos próprios árabes; 4) no ramo da pseudo-historiografia sem-vergonha, paga para mentir, já apareceram até livros sobre como os palestinos não eram tão antigos assim na região, já que eles teriam chegado também em imigração recente. Essas diferentes versões da mitologia oficial vão se sucedendo ou se combinando, a gosto do freguês, formando uma geleia geral de enganação empacotada. Acompanham-na algumas frases que, até corretas em si mesmas, omitem um universo de contexto que lhes transforma o sentido, como é o caso de “os sionistas aceitaram a partição proposta pela ONU, os árabes, não”, analisado acima, e “a guerra de 1948 foi iniciada pelos palestinos”, mantra que é essencial em todo mascaramento do processo.


Expulsão em aldeia palestina durante o Nakba.

Como se sabe agora, a liderança militar sionista ficou surpresa com o caráter limitado dos protestos palestinos que se seguiram ao decreto da partição, em novembro de 1947. Afinal de contas, seu território havia sido rachado com uma comunidade minoritária de colonos, que receberam não só um naco de 56% do território, desproporcional à sua representação na população, mas um naco que continha pelo menos 400 aldeias palestinas, nas quais 800.000 palestinos deviam seguir vivendo sob soberania imposta e recém chegada. Ao longo dos dias que se seguem à partição, o comando sionista se reúne para encontrar formas de ataque possíveis, ante a ausência de pretextos. Os arquivos estudados por Ilan Pappe, das reuniões a liderança judaica na Palestina, dão amplo testemunho do planejamento da limpeza étnica. Os fazendeiros dos Kibbutzim transformavam suas cooperativas em postos militares, enquanto nas aldeias palestinas a vida seguia seu curso, no qual a “normalidade era a regra e a agitação a exceção”, segundo os informes do próprio Palti Sela, membro de uma unidade de inteligência sionista. Ao longo do mês de dezembro de 1947, anterior à guerra propriamente dita, as aldeias palestinas sofrem uma campanha de terror e intimidação das organizações paramilitares judias que representam o primeiro capítulo da limpeza étnica da Palestina.

A linguagem da ameaça foi prática comum naquele momento, como mostra o exemplo citado por Ilan Pappe, de panfletos lançados às aldeias sírias e libanesas na fronteira palestina: “Se a guerra for levada até você, ela causará expulsão massiva de aldeões, com suas mulheres e crianças … haverá matança sem piedade, sem compaixão” (p.56). Lembremos que nesse momento o sionismo já possui um mapa completo das aldeias palestinas, incluindo-se informação sobre água, possíveis defesas e indivíduos vinculados à resistência árabe durante os protestos de 1936-39. Esse mapeamento seria chave na destruição das centenas de aldeias palestinas e na expulsão de centenas de milhares de habitantes autóctonos da região No mês de dezembro se disseminam as ações que a Hagana chamava de “reconhecimento violento” (hassiyur ha-alim): invadir uma aldeia à noite, instaurar toque de queda, atirar em qualquer um que ouse sair de casa, permanecer durante algumas horas e ir embora. A aldeia de Deir Ayyub foi uma das vítimas de dezembro de 1947. Com aproximadamente 500 habitantes, ela acabava de comemorar a abertura de uma escola. Foi invadida por tropas judaicas que passaram a atirar indiscriminadamente nas casas. Deir Ayyub ainda seria atacada três vezes antes de ser destruída em sua totalidade em abril de 1948 (p.56). No nordeste da Galileia, na aldeia de Khisas, algumas centenas de muçulmanos coexistiam pacificamente há tempos com uma centena de cristãos. Até que no dia 18 de dezembro de 1947, tropas judaicas a invadiram e passaram a explodir casas durante a noite, provocando a morte de quinze aldeões, pelo menos cinco crianças. Ações como estas proliferaram ao longo de dezembro de 1947, e não costumam ser mencionadas pelos que justificam as atrocidades de Israel com o argumento de que “os palestinos iniciaram a guerra” em janeiro de 1948.


As ações de expulsão da população anteriores à declaração formal de guerra em janeiro de 1948 não se limitaram às aldeias pequenas. Na cidade de Haifa, principal porto da Palestina, 75.000 palestinos “foram submetidos a uma campanha de terror instigada conjuntamente pelo Irgun e pela Hagana. Como haviam chegado em décadas recentes, os colonos judaicos construíram suas casas no alto das montanhas. Viviam topograficamente acima dos bairros árabes e podiam disparar e lançar morteiros contra elas. Começaram a fazê-lo com frequência a partir do começo de dezembro. Usaram também outros métodos de intimidação: as tropas judaicas rolavam barris cheios de explosivos, e enormes bolas de aço, na direção das áreas residenciais árabes, lançavam óleo misturado com combustível nas estradas, que aí incendiavam. Os residentes palestinos, aterrorizados, corriam para fora de suas casas para tentar apagar o fogo, e aí passavam a ser alvo de rajadas de metralhadora” (p.58). A descrição documentada do que aconteceu em Haifa em dezembro de 1947 é importante porque a cidade é, com frequência, mencionada como exemplo de que as lideranças judaicas insistiram para que os palestinos ficassem e eles saíram “voluntariamente”. 

V – Epílogo e promessa

Não está contada aqui, evidentemente, nada da história do Nakba propriamente dito. Para se entender a monstruosidade a que foi submetida o povo palestino, há que se conhecer os quatro planos de limpeza étnica da Palestina elaborados pela liderança sionista desde antes da II Guerra Mundial. O Plano A, também conhecido como “Plano Elimelech”, toma seu nome do líder do comandante da Hagana que, em 1937,  já elaborara, a pedido de Ben-Gurion, um projeto de limpeza étnica a ser executado no momento em que os ingleses abandonassem a Palestina. O Plano B foi escrito em 1946 e ambos depois se fundiram no Plano C, que previa: a) assassinatos seletivos da liderança política palestina; b) destruição da infraestrutura de transporte palestina; c) sabotagem específica às fontes de sustento da população nativa, como os moinhos; d) ataques escalonados às aldeias; e) bombardeios de ônibus, cafés, locais de reunião. O fundamental desse plano é mantido no projeto que é efetivamente executado, o Plano D (Dalet), anterior à guerra de 1948, e que previa a sistemática expulsão do povo palestino de suas terras.

O Plano Dalet já é consenso entre a liderança sionista em Dezembro de 1947, antes da oficialização da guerra. Ao cabo do processo de limpeza étnica, espantosamente curto e brutal, mais da metade da população palestina nativa (pelo menos 750.000 pessoas) foi expulsa, 531 aldeias foram destruídas e onze bairros urbanos foram esvaziados de sua população, um crime contra a humanidade de enormes proporções, ainda hoje negado e envolvido em falsificação. Hoje, os refugiados e seus descendentes vivem esparramados por, em números aproximados, Jordânia (2 milhões), Líbano (430.000), Síria (480.000), além de 800.000  que são parte da população palestina que mora sob ocupação militar israelense na Cisjordânia (2,3 milhões) e outro 1,1 milhão que vive sob bloqueio (e frequente bombardeio) militar israelense em Gaza. Outros 1,2 milhão de palestinos vivem como cidadãos de segunda classe em Israel. O melhor guia do Nakba é o livro de Ilan Pappé, The Ethnic Cleansing of Palestine, infelizmente ainda inédito em português. Pretendo publicar num futuro próximo, aqui pela Editora Publisher, um breve livro que contará um pouco dessa história.  Se você lê inglês e se interessa pelo acompanhamento diário do horror, sugiro o site Electronic Intifada. 

Referências bibliográficas:

1 Aragão, Maria José. Israel x Palestina: Origens, História e Atualidade do Conflito (Rio de Janeiro: Revan, 2006), p. 23-4.

2 Aragão, p. 32.

3 Aragão, p. 33.

4 Heynick, Frank. Jews and medicine, An Epic Saga, KTAV Publishing House, Inc., 2002 p.103.

5 McCarthy, Justin. The Population of Palestine. (Nova York: Columbia UP, 1990), p. 37-8.

6 Khalidi, Walid. “Why did the Palestinians leave?” Journal of Palestine Studies 34.2 (2005): 42-54. Ver também Benny Morris, The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited (Cambridge: Cambridge UP, 2004).

7 Fisk, Robert. A grande guerra pelo Oriente Médio. Trad. Sandra Dolinsky (São Paulo: Planeta, 2007), p. 432.

8 Pappé, Illan. The Ethnic Cleansing of Palestine (Oxford: OneWorld, 2006), p. 283.

9 Pappe, p. 11.

10 Pappe, p. 14.

11 Pappe, p.14.

12 Pappe, p. 283.

13 Pappe, p.12.

14 Fisk, p.511.

15 Antonius, George. Arab Awakening: The Story of the Arab National Movement (Londres: International Book Center, 1938), p. 387.

16 Hilton, Stanley: Oswaldo Aranha: Uma biografia (Rio de Janeiro: Objetiva, 1994), p. 439.

17 Eban, Abba. Personal Witness: Israel Through My Eyes (Nova York: Putnam’s Sons, 1992).

18 Hilton, p. 456.

19 Hilton, p. 459.

20 Pappe, p. 34-5.

21 Flapan, Simcha. The Birth of Israel: Myths and Realities (Nova York: Pantheon, 1987).

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