Ministério para Segurança do Estado.
Vinte anos depois da queda
do Muro de Berlim, os alemães ainda se espantam com as histórias e técnicas da
Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental. Veja abaixo 8 exemplos de como o
governo comunista vigiava e perseguia seus próprios cidadãos por Texto Vanessa
Vieira
1.
Um espião para cada 60 moradores
Se houve uma nação que
materializou o Estado onisciente descrito por George Orwell no livro 1984, esta
nação foi a Alemanha Oriental. No país comunista, o Ministério para Segurança
do Estado, mais conhecido como Stasi, representava o papel de Big Brother, o
Grande Irmão de Orwell, munido de câmeras e escutas para espionar todos os
cidadãos. Para vigiar a população e evitar movimentos organizados contra a
política comunista aliada à União Soviética, a polícia secreta da República
Democrática da Alemanha adotou meios que ainda hoje impressionam.
"Absolutamente nada era sagrado para a polícia secreta. Pequenos buracos
eram perfurados nas paredes de apartamentos e de hotéis para que a Stasi
filmasse seus suspeitos. Até os banheiros eram penetrados pelos voyeurs comunistas",
afirma o escritor e jornalista Joseph Koehler em seu livro Stasi: the Untold
Story of the East German Secret Police ("Stasi: a história não contada da
polícia secreta da Alemanha Oriental", sem edição no Brasil).
Os alemães orientais estavam
acostumados à ostensiva vigilância por meio de microfones camuflados, câmeras
fotográficas, vídeos e milhares de colaboradores. Agentes eram colocados em
tempo integral nas fábricas para reportar tudo o que acontecia. Em cada
condomínio de apartamentos, havia um responsável por anotar e relatar toda a
rotina - que visitas cada morador recebeu, se algum visitante passou a noite no
local. Essa estrutura de vigilância exigia muitos, muitos funcionários.
Em 1989, a Stasi empregava
90 mil agentes e mantinha 175 mil informantes para monitorar 17 milhões de
habitantes. Ou seja, havia um espião para cada 63 habitantes. Alguns
especialistas, levando em conta os colaboradores ocasionais, estimam que um em
cada 6 alemães orientais passava informações à Stasi. É um número maior até
mesmo que a polícia secreta anterior, a temível Gestapo dos tempos nazistas,
que tinha cerca de 40 mil oficiais para vigiar 80 milhões de pessoas. O
resultado de tamanha vigilância é que 6 milhões de pessoas, ou mais de um terço
da população, tinham sua ficha nos enormes arquivos da Stasi.
Mais do que os números, o
que chama atenção é a constatação de que amigos, colegas de trabalho, de
faculdade e até familiares delatavam seus pares. As razões para colaborar eram
diversas - iam desde a fidelidade na ideologia comunista à coação e à ameaça,
passando pelo oferecimento de privilégios, como promoções e permissões para
viajar, ou mesmo o bom e velho pagamento em dinheiro, na melhor tradição
capitalista.
Muitos cidadãos só
descobriram que eram espionados depois da queda do Muro, consultando os
arquivos que restaram. A deputada federal Vera Lengsfeld descobriu que a
polícia sabia até que marca de sabonete ela usava. Informações repassadas por
49 informantes que a monitoravam - entre eles o próprio marido dela, pai de
seus dois filhos. Vera acabou encarcerada na prisão de Hohenschönhausen, hoje
transformada em museu. História parecida com a do ator Ulrich Muehe,
protagonista do filme A Vida dos Outros, vencedor do Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro de 2007, que ilustra as páginas desta reportagem. Muehe, morto há
três anos de câncer no estômago, também descobriu que sua ex-mulher havia
repassado informações sobre ele durante os 6 anos de seu casamento.
2.
O quebra-cabeças de 600 milhões de peças
A maior parte das
informações que se tem sobre a Stasi vem da própria instituição. Como era uma
organização muito burocrática, produzia relatórios em série sobre as
observações de milhares de informantes alemães e estrangeiros. Se toda a
documentação produzida pela polícia secreta fosse enfileirada, alcançaria
facilmente a distância de 110 quilômetros.
A Stasi bem que tentou se
livrar de parte dessa montanha de papel dias antes da queda do Muro. Nas
cidades menores, documentos começaram a ser queimados. Nas cidades maiores,
para não chamar atenção, os agentes optaram por picotar freneticamente pilhas e
pilhas de papéis. O material rasgado foi armazenado em 17 200 sacolas, que
seriam descartadas. Mas acabou sendo descoberto quando os quartéis da Stasi
foram invadidos pela população. Os arquivos destruídos representam apenas 5% do
total de documentação produzido pela polícia secreta durante sua existência.
Apenas esses pedaços de papel se constituem num quebra-cabeças de mais de 600
milhões de peças - os fragmentos de documentos produzidos durante 4 décadas.
Entre eles, há cartas feitas de papéis de diferentes texturas, fotografias,
folhas de carbono, recortes de jornal.
Dois funcionários gastaram 8
meses para organizar os papéis de apenas uma das 17 200 sacolas. O trabalho foi
recompensado com o levantamento de provas de que a Alemanha Oriental abrigou
terroristas, financiou programas de doping e praticou espionagem industrial
contra os vizinhos europeus, além de revelar o nome de vários informantes -
entre religiosos, intelectuais e altos funcionários da Alemanha Ocidental.
Hoje, para trazer à luz os
tempos escuros da polícia secreta, os alemães empreendem um gigantesco esforço
para remontar os papéis cortados. Não restam dúvidas de que o material merece
ser examinado. O grande desafio é como fazê-lo de forma produtiva e rápida. No
ritmo de uma sacola anual por funcionário, estimava-se que seriam necessários
700 anos para concluir a missão.
Desde 2006, um
supercomputador, ainda em teste, tenta reunir os fragmentos com as mesmas
características - como tipo de papel, cor e padrão de escrita - para facilitar
a montagem do quebra-cabeças. Para colocar o sistema em funcionamento em larga
escala, serão necessários US$ 30 milhões.
3.
Catálogo de cheiros
No museu da Stasi Runde
Ecke, em Leipzig, ficam em exposição fileiras de potes de vidro contendo
flanelas amarelas. São parte de uma coleção de milhares de amostras de cheiro
coletadas pelos agentes da Stasi para identificar e rastrear suspeitos de agir
contra os interesses do governo. "Era uma forma primitiva de conseguir
provas científicas contra supostos infratores, numa época em que o exame de DNA
não estava disponível", diz Jonathan Zatlin, professor de História Moderna
da Alemanha na Universidade de Boston.
Se encontrassem panfletos
jogados no chão, pincéis usados para afixar cartazes ou latas de spray de
pichação, os agentes depositavam flanelas sobre esses objetos para obter as
amostras de cheiro. O pano era guardado dentro de um pote de vidro. Quando a Stasi
encontrava algum suspeito de ser o responsável pela ação, procurava,
secretamente, obter uma amostra de cheiro para comparar com a recolhida
anteriormente. Uma das táticas era chamar o suspeito para uma conversa na
delegacia. Ao sentar-se na cadeira, a pessoa impregnava, sem saber, uma flanela
escondida no assento. Cães eram usados para farejar as duas amostras e dar
sinal caso elas coincidissem. "Em 1988, a Stasi mantinha 26 cães treinados
para farejar e rastrear pessoas e outros 15 para diferenciar amostras de
cheiro", diz a pesquisadora Kristie Macrakis.
Outra técnica desenvolvida
pelos cientistas a serviço da Stasi foram perfumes feitos com substâncias como
almíscar e hormônios de plantas para facilitar o monitoramento de dissidentes.
A essência era aplicada nos pneus do carro da pessoa a ser seguida. Assim, cães
podiam rastrear carros e sujeitos facilmente - a distância ou no meio de uma
multidão.
4.
Radiação para seguir suspeitos
Logo depois da queda do Muro
de Berlim, correu na Alemanha a lenda de que os agentes oficiais usavam
radiação para marcar e monitorar suspeitos. Com a abertura dos arquivos
confidenciais da Stasi, essa aparente lenda urbana foi revelada como
verdadeira. Até 1989, mais de 1 000 pessoas foram vigiadas dessa forma. A radiação
era borrifada, com um spray, sobre o cidadão suspeito de ser um dissidente, ou
pelo uso de alfinetes impregnados de radiação, escondidos em casacos e maletas.
Com isso, o suspeito seria identificado por aparelhos que contam o nível de
raios gama. Em vez de apitar, os aparelhos vibravam sempre que o suspeito
irradiado se aproximava. Um dos átomos instáveis mais usados era o scandio 46,
que permanece ativo por mais de 80 dias.
Para monitorar carros,
usavam-se balas de chumbo impregnadas com prata radioativa. As balas eram
disparadas contra o pneu do veículo a uma distância de 25 metros. A partir daí,
era possível seguir o carro a centenas de metros, mesmo no tráfego de Berlim. O
césio 137 marcava carros suspeitos de atravessar a fronteira entre as duas Alemanhas.
"Por ser muito penetrante, o césio é mais perceptível aos contadores de
radiação, mesmo que o alvo esteja protegido por paredes de concreto", diz
Kristie Macrakis, historiadora da Universidade Estadual de Michigan, nos EUA.
Essas ferramentas foram
criadas pelo programa Cloud, liderado pelo físico nuclear Franz Leuteriz nos
laboratórios técnicos da Stasi. Na década de 1970, 100 operações com radiação
eram realizadas por ano pela Stasi, afirma o físico Klaus Becker no estudo Uso
ilegal de fontes de radiação pelo governo. Suspeita-se que a prática esteja
ligada à morte, por câncer, de dissidentes que haviam sido espionados quando o
muro estava em pé.
5.
A polícia da paranoia
A abertura dos arquivos da
Stasi frequentemente provoca surpresas. Não por trazerem à luz fatos
inesperados de biografias, mas por revelarem a mesquinhez de algumas ações da
Stasi. Diversas tinham como único objetivo intimidar e desacreditar pessoas
disseminando a paranoia.
Uma das vítimas foi o
escritor, psicólogo e ativista Jürgen Fuchs. Foi o que revelou um documento de
setembro de 1982, narrando o que vinha sendo feito para colocá-lo sob pressão.
Fuchs recebia chamadas anônimas durante a madrugada; táxis e ambulâncias
apareciam em seu apartamento durante o dia ou à noite, reuniões e serviços
comerciais eram marcados em seu nome sem que ele soubesse. Depois de ler seus
arquivos, a também ativista Ulrike Poppe descobriu que agentes haviam sido
escalados para missões como roubar o carrinho de bebê da filha dele ou esvaziar
os pneus de sua bicicleta. "Após banir o uso de violência física, mais
comum nos anos 50, a Stasi usou essa tática contra os investigados, tanto para
desacreditá-los aos olhos de seus amigos e colegas, quanto para fazê-los
duvidar de sua própria sanidade", afirma o historiador Konrad Jarausch,
professor da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA.
Outras técnicas para
instaurar o estado de paranoia consistiam em invadir a casa do dissidente
trocando objetos de lugar, segui-lo ou plantar mentiras entre seu círculo de
amigos. "Vazava-se a informação de que a pessoa recebia privilégios do
governo, ou que teria delatado um amigo ou que traía seu cônjuge. Destruíam-se
relacionamentos até a vítima ficar isolada", diz o historiador Zatlin. Era
uma forma de neutralizar os colaboradores do Ocidente. "Tendo de suportar
tanta pressão, alguns sofriam de pânico e colapsos nervosos", diz Zatlin.
6.
Quase tudo era crime
O código criminal da
Alemanha Oriental afirmava, em sua introdução, que o objetivo do conjunto de leis
era "salvaguardar a dignidade humana, sua liberdade e direitos". Pura
ironia. Muitos dos crimes atribuídos a cidadãos da RDA, característicos de
regimes totalitários, iam contra esses princípios. Os chamados "crimes de
traição" são um bom exemplo disso, já que serviram de amparo legal para
prisões de segurança máxima ou de trabalho forçado por infrações como pedir
vistos de saída do país ou consultar um consulado ocidental sobre os
procedimentos para imigração.
Existem vários exemplos da
arbitrariedade da Justiça na interpretação do que era ou não crime. Um rapaz
foi apresentado às autoridades por agentes da Stasi após afirmar que as
fortificações na fronteira entre as duas Alemanhas eram "um absurdo".
No tribunal, ele admitiu assistir a programas ocidentais na TV e falar sobre
eles com amigos. Foi condenado por "propaganda hostil" a um ano e
meio de trabalho forçado.
Por ter pendurado um cartaz
na janela do apartamento em protesto depois que o governo negou seu visto de
saída, um jovem foi sentenciado com um ano e dez meses na penitenciária por
"interferência nas atividades do Estado". Uma carta escrita a um
amigo ocidental pedindo assistência para emigrar legalmente e outra, com o
mesmo conteúdo, enviada ao chefe de Estado da RDA, renderam a seu autor uma
pena de 4 anos, por "estabelecimento de contatos ilegais e calúnia
pública". Dava cadeia até mesmo frequentar a igreja (parasitismo social) e
reclamar de problemas da cidade, como buracos de rua (incentivo ao negativismo
social).
Reunião do Congresso Stasi.
Os documentos disponíveis
até o momento mostram que 40 mil pessoas foram condenadas por crimes políticos
durante a existência da Alemanha Oriental. Mas o Centro de Coleta de Evidência
Documental, entidade que há anos reúne material sobre a repressão na Alemanha
Oriental, acredita que esse número poderia chegar a 300 mil. Por trás das
condenações estava a ação de colegas, vizinhos e amigos que trabalhavam como
informantes.
Um dos motivos comuns de
prisão era tentar fugir do país. Foi o caso de Cliewe Juritza, hoje funcionário
do Museu da Stasi. Em 1984, aos 18 anos, ele foi preso na fronteira entre as
duas Alemanhas. "Um dia, quando perdi a paciência e gritei em protesto por
meu direito de ir e vir e de sair da RDA, me mandaram para a solitária",
diz Juritza, que ficou 18 meses preso.
A prisão de pessoas por
crimes políticos não era apenas fruto do excesso de rigor da Stasi, mas também
uma prática rentável para o governo socialista. Calcula-se que, entre 1963 e
1989, a Alemanha Ocidental tenha gasto cerca de US$ 3 bilhões para conseguir a
liberação de 34 mil presos políticos. Quem dirigia as negociações? A própria
Stasi.
7.
Os espiões mirins
A voracidade de vigiar os
cidadãos incluía até mesmo as crianças. Sabe-se hoje que cerca de 10 mil dos
informantes da Stasi tinham menos de 18 anos, ou 6% do total. O recrutamento
dos adolescentes acontecia entre as fileiras da chamada Juventude Alemã Livre,
organização estatal a que quase todos os jovens deviam se afiliar. Promessas de
vagas em boas universidades ou de incentivo na carreira esportiva, além do
argumento de que a função era um dever patriótico, eram algumas das táticas
para convencer os jovens espiões a colaborar desde cedo com as autoridades. As
tarefas mais comuns requisitadas aos informantes mirins eram a produção de
relatórios sobre o que acontecia na sala de aula ou fora dela. "Em
excursões a outros países, era comum pedir relatórios sobre como os professores
se comportaram", diz o historiador Jonathan Zatlin.
8.
Tortura psicológica
Diferentemente da polícia
estatal anterior, a Gestapo, a Stasi não primou pelas torturas físicas cruéis
nem pelos assassinatos em massa. Diante da enorme reação que houve no
pós-guerra aos métodos associados ao nazismo, a violência não era uma opção.
Embora haja relatos de alguns casos de espancamentos, em geral o método de
trabalho era a tortura psicológica, considerada mais eficaz para obter
informações confiáveis.
Nas penitenciárias para
presos políticos, as técnicas mais comuns eram o isolamento social,
desumanização, privação de sono. Os detidos eram mantidos durante meses em
celas solitárias, sem nenhum contato com outros seres humanos. Perdiam seus
nomes e eram chamados apenas pelo número da cela. De tempos em tempos, eram
submetidos a extenuantes interrogatórios, que duravam várias horas e
repetiam-se durante dias seguidos. Durante essas sessões, os interrogadores
mantinham os suspeitos sob constante pressão, gritando, repetindo perguntas e
fazendo ameaças.
Os prisioneiros também eram
submetidos à privação de sono. No livro Stasilândia, a jornalista Anna Funder
narra a história de Miriam Weber, presa política aos 16 anos. Os
interrogatórios a que foi submetida duravam 6 horas, das 22h às 4h da manhã.
Depois de cada sessão, ela era conduzida de volta à cela. Durante o dia, ela
era impedida de dormir. Um guarda retornava em intervalos regulares e esmurrava
a cela caso ela adormecesse. "Às vezes eu continuava cochilando. Aí ele
entrava, me sacudia e tirava o colchão, para que eu não tivesse nem onde me
sentar. É impossível explicar como isso arrebenta com a gente", conta
Miriam no livro.
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