O ditador que matou milhões
de pessoas de fome, traiu companheiros e usou seu povo como bucha de canhão...
Ainda tem fãs na Rússia, para quem ele foi responsável pela modernização do
país e pela vitória sobre Hitler.
No começo do ano, no povoado
de Akura, na Geórgia, a população reinaugurou um busto de Josef Stalin, o
ditador que comandou a União Soviética com mãos de ferro e sede de sangue por
três décadas, de 1922 até sua morte, há 60 anos. A estátua havia sido retirada
pela prefeitura em 2010, mas os moradores resolveram gastar dinheiro do próprio
bolso para restaurar a obra e devolvê-la ao seu pedestal na praça principal do
lugar. "Não se pode esconder a história", disse a moradora Elgudja
Bluishvili. "Se foi bom ou mau, ele agora é parte disso, e nasceu na
Geórgia."
A história já deu a Stalin
seu lugar: o de tirano cruel. O homem sem escrúpulos que não se importou em
matar milhões de ucranianos, cazaques e siberianos de fome durante o perío-do
de coletivização do campo na URSS, no início dos anos 30. O líder responsável
pela morte de 700 mil bolcheviques e militares nos chamados Processos de
Moscou, no qual a maioria das "confissões" era obtida por meio de
tortura. O maquiavélico que fez alianças com membros do partido apenas para
isolar supostos adversários e, em seguida, traí-los e condená-los à morte. O
comunista sem princípios que se aliou ao nazismo com o pacto de não agressão de
1939. O general paspalho que usou a população russa como bucha de canhão na
Segunda Guerra, na qual a URSS perdeu quase 24 milhões de pessoas (em
comparação, as baixas da derrotada Alemanha não chegaram aos 8 milhões). Por
fim, sua morte levou à divisão mundial do comunismo, com defensores e
detratores que romperam com o monolito esquerdista que seguia os ditames de
Moscou.
A volta do culto à
personalidade de Stalin nos países da antiga União Soviética, em especial na
Geórgia, onde nasceu, e na Rússia, a capital do império, não é obra de amadores
nem se limita a fãs esparsos do ditador bigodudo. Ela encontra eco em
intelectuais e historiadores. E pode ser vista nas ruas de Moscou. Desde
outubro do ano passado, uma organização civil chamada Sindicato dos Cidadãos
Russos recolhe assinaturas para devolver a Volgogrado o nome pelo qual a cidade
se tornou célebre em todo o mundo: Stalingrado. Ali, durante a Guerra Civil que
se seguiu à Revolução Bolchevique, Stalin conduziu o Exército Vermelho e
conquistou uma grande vitória. Em 1925, quando ele já exercia plenamente o
poder na URSS, o Comitê Central do Partido Comunista propôs que a cidade ganhasse
seu nome - e como Stalingrado ela foi palco de uma das maiores, mais sangrentas
e heroicas batalhas da Segunda Guerra. O nome perdurou até 1961.
Stalingrado
No site da organização,
explica-se que "a posição do Sindicato dos Cidadãos da Rússia é simples e
compreensível a cada patriota". O abaixo-assinado recolheu na internet 9
780 assinaturas a favor da mudança - e 687 contra. Na véspera das últimas
eleições presidenciais, já se acreditava que o presidente russo, Vladimir
Putin, rebatizaria a cidade para atrair eleitores. Membros do Clube de
Especialistas de Volgogrado conseguiram mudar o nome da cidade por um dia em
comemoração aos 70 anos da vitória das tropas soviéticas, em 2 de fevereiro.
"A ideia é fazer disso uma tradição, enquanto não se resolve a questão da
renomeação da cidade", diz o cientista político Vitáli Arkov, membro do
grupo.
Stalin, batizado Iosif
Vissarionovich Djugashvili, morreu em março de 1953. Desde então, a Rússia está
na terceira onda de "desestalinização". A primeira, conduzida por
Nikita Kruschev em seu discurso secreto no 20º Congresso do Partido Comunista
da URSS, revelou os crimes de Stalin. Em 1961, quando Stalingrado foi
rebatizada de Volgogrado, o corpo do tirano foi retirado do gélido mausoléu da
Praça Vermelha, onde ainda hoje estão em exposição os restos de seu
predecessor, Vladimir Lenin. Stalin foi enterrado próximo de um dos muros do
Kremlin - ainda hoje é um dos túmulos mais visitados no local.
A segunda onda veio nos anos
80, com a perestroika de Mikhail Gorbachev. O líder que implodiu a URSS
combatia qualquer manifestação de apoio ao totalitarismo. Um dos pontos altos
dessa fase foi o filme Pokaianie (Confissão), de 1984. Uma crítica alegórica ao
stalinismo, a ficção do georgiano Tenghiz Abuladze foi imediatamente proibida
na União Soviética. Relançado três anos depois, com a abertura promovida por
Gorbachev, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1987.
Por fim, a terceira onda é
recente. Iniciou-se em 2010 com a nomeação de Mikhail Fedotov ao cargo de chefe
do Comitê Presidencial para os Direitos Humanos. Uma das primeiras ações de
Fedotov foi declarar guerra ao culto a Stalin. Ele contava com o apoio do então
presidente Dmitri Medvedev para a criação de um novo projeto de
"desestalinização da consciência russa" a partir de 2011. A
confirmação de Fedotov no cargo em 2012 levou os russos, que antes acreditavam
na contrariedade de Putin ao processo, a crer no seu apoio à desestalinização,
apesar de seu silêncio quanto ao assunto.
O silêncio se explica. Até
hoje o tirano goza da simpatia de uma boa parcela da população russa. De acordo
com estudo do VtsIOM (Centro Russo de Pesquisas de Opinião Pública) publicado
em abril de 2011, um em cada quatro russos afirma que sua família sofreu
repressão na era Stalin. Mas só 26% dos entrevistados apoiam a
"desestalinização" - e quase metade consideram os esforços como
"tagarelice" e "mitificação". Também cresceu o número de
russos que consideram o papel de Stalin como positivo: de 15% em 2007 para 26%
em 2011.
Avanços
econômicos
Combater o georgiano,
notaram logo as autoridades russas, não era tarefa fácil. Na primeira vez em
que se ensaiou uma reabilitação do tirano, não havia transcorrido nem dez anos
de sua morte. O líder Leonid Brejnev, considerado um neostalinista, citou
Stalin nas comemorações dos 20 anos do fim da Grande Guerra Patriótica, o nome
como os russos chamam a Segunda Guerra. "Não devemos encobrir os erros,
mas também não podemos encobrir os méritos. Portanto, respeitemos Stalin",
disse Brejnev, sob aplausos.
Que méritos são esses? O
ex-vice-presidente da Comissão Presidencial Contra a Falsificação da História
em Favor dos Interesses da Rússia Issaak Kalina é conhecido por defender o uso
de livros de história da Federação Russa redigidos por Aleksandr Filippov, os
quais se referem a Stalin como "um administrador eficiente" e à
repressão civil como "custos" do progresso. De fato, a habilidade
como "administrador" é o principal argumento dos que advogam em seu
favor hoje. Mesmo durante sua vida, teve seus méritos reconhecidos, até pela
insuspeita revista conservadora norte-americana Time, que o escolheu
"homem do ano" duas vezes, em 1939 e 1942.
Basta uma análise de alguns
números dos dois primeiros Planos Quinquenais soviéticos, tocados a mando de
Stalin. Vale lembrar que o planeta enfrentava a Grande Depressão que sobreveio
ao Crash de 1929 (a URSS era um país isolado, mas ainda assim os avanços são
impressionantes). "A economia soviética, segundo as mais recentes e
confiáveis estimativas, cresceu no mínimo 70% entre 1933 e 1938", registra
Richard Overy, professor do King¿s College de Londres, em seu livro Os
Ditadores. Ainda que os esforços soviéticos não tenham valorizado o consumo de
massa, o planejamento econômico dos comunistas foi capaz de, entre 1928 e 1937,
fazer a produção de máquinas crescer incríveis 2 425%. O número da produção de
automóveis foi catapultado de 800 unidades anuais para 200 mil no mesmo
período. Muitos fundamentos do estudo da macroeconomia, hoje matéria
obrigatória em cursos de economia, são resultado do trabalho dos burocratas
soviéticos.
"Vinte milhões de
pessoas morreram em três ou quatro anos com a Guerra Civil, e a Primeira Guerra
resultou em ainda mais 1,5 milhão de mortos. O país sumiu do mapa da política
mundial, era apenas sangue, chamas, violência", diz o historiador Aléksandr
Vershínin, do Centro de Análises da Governança. "Stalin surgiu do sangue
da guerra civil. E, no lugar do caos, instalou a calmaria."
Se houve calma, foi a paz
dos cemitérios. Não existem números definitivos, mas fala-se em 8 milhões de
mortos de fome na URSS, 5 milhões dos quais na Ucrânia, por causa da política
de industrialização e da coletivização forçada do campo. Stalin enviava
comissários para checar a produção e identificar desvio de grãos, mas não dava
ouvidos às críticas. Quando um funcionário ousou relatar o que ocorria na
Ucrânia, Stalin o cortou, como relata Simon Sebag Montefiore em Stalin, a Corte
do Czar Vermelho: "Fabricar tal conto de fadas sobre a fome! Achou que nos
assustaria, mas não vai funcionar". Em seguida, sugeriu que o burocrata
deixasse o comitê central do partido na Ucrânia e entrasse para a União dos
Escritores, onde poderia se dedicar à ficção. Mas a fome era real. Tristemente
real.
Linha
do tempo
1902 - A primeira das sete
prisões de Stalin, que usava o codinome Koba, tirado de um romance
1905 - Atende ao congresso
do partido, na Finlândia, onde atrai pouca atenção
1912 - Por indicação de
Lenin, entra para o comitê central do partido e adota o nome Stalin
1913 - Publica um artigo
sobre marxismo e questão nacional que vai ajudá-lo a crescer no partido
1917 - Torna-se editor
responsável do Pravda, o jornal oficial dos bolcheviques
1917 - Na Revolução de
Outubro, é ofuscado pelas ações de Leon Trotski
1918 - Destaca-se em vários
fronts na Guerra Civil. Também vira comissário de nacionalidades
1921 - Em seu testamento
político, Lenin pede que Stalin não ocupe o secretariado
1922 - Assume o posto que só
deixaria morto: secretário-geral do comitê central do Partido Comunista
1924 - Lenin morre. Stalin e
aliados eclipsam Trotski, o sucessor natural na liderança da União Soviética
1924 - Stalin assume o poder
em um triunvirato, ao lado de Grigory Zinoviev e Lev Kamenev
1928 - Começa o processo de
industrialização e de coletivização da agricultura na URSS
1929 - Stalin manda Trotski
para o exílio, acusado de trair a revolução. Ele seria morto no México, em 1940
1934 - Sergo Kirov é
assassinado em Leningrado. Foi o pretexto para os expurgos no partido
1936 - Kamenev e Zinoviev
são julgados por traição, depois de confessarem sob tortura, condenados e
mortos
1937 - Mikhail Tukhachevsky,
maior autoridade militar do país, é condenado à morte por traição
1939 - URSS e Alemanha
assinam o pacto de não agressão, que garante aos comunistas o leste da Polônia
1941 - Com a Operação
Barbarossa, a Alemanha invade a URSS e em outubro chega perto de Moscou
1945 - Tropas soviéticas
entram em Berlim e colocam a bandeira comunista no alto do Reichstag
1948 - Tito, o líder
comunista da Iugoslávia, é o primeiro dirigente a romper com o stalinismo
1947 - Jdanov, membro do
comitê central, inicia uma série de expurgos entre intelectuais e cientistas
soviéticos
1953 - Stalin comanda a
prisão e morte de médicos, a maioria judeus, que trabalhavam no Kremlin
1953 - Stalin morre sozinho
em sua dacha depois de ser vítima de um acidente vascular cerebral
1956 - No 20º Congresso do
Partido Comunista, Nikita Kruschev denuncia os crimes de Stalin
A
vida íntima do ditador
Certa vez, Stalin perdeu a
compostura com seu filho Vassíli, que havia se aproveitado do sobrenome famoso.
"Mas eu sou um Stalin também", rebateu o filho. A tréplica foi
colérica: "Não, você não é. Você não é Stalin e eu não sou Stalin. Stalin
é o poder soviético. Stalin é o que ele é nos jornais e nos retratos, não você,
nem mesmo eu!"
A vida pessoal do ditador
foi um grande tumulto. Iosif Vissarionovich Djugashivili nasceu 1878 em Gori,
na Geórgia. Vissarion, seu pai beberrão, trabalhou como sapateiro e costumava
espancar a mãe, a lavadeira Ekaterina (Keké) e o pequeno Soso - ele morreu numa
briga e foi enterrado como indigente. Seus dois irmãos morreram na infância e
ele mesmo sobreviveu à varíola. O menino estudou em um seminário e conviveu com
dúvidas sobre a paternidade. "É possível que Stalin seja filho de seu
padrinho, um rico estalajadeiro", diz Simon Montefiore. O próprio ditador
disse uma vez que seu pai era um padre.
Em 1899, expulso do
seminário, tornou-se revolucionário em tempo integral e assaltava bancos para
ajudar o caixa do partido. Adotou o nome Koba, um personagem fora da lei do
romance O Parricida. Foi preso pela primeira vez em 1902 e enviado para a
Sibéria. Fugindo da cadeia e voltando a ela, casou-se com Ekaterina Svanidze,
com quem teve um filho, Iákov. Ela sucumbiu a uma tuberculose, aos 29 anos. No
enterro, Stalin disparou uma frase premonitória: "Ela morreu e com ela
morreram meus últimos sentimentos ternos pelas pessoas".
Stalin, codinome que adotou
em 1912, significa aço, ou feito de aço. O viúvo se casou com um antiga
datilógrafa de Lenin, Nádia Alliluyeva. Ele tinha 41, ela 18. Tiveram dois
filhos, Vassíli e Svetlana. Nádia se suicidou com um tiro, dentro do Kremlin.
O primogênito Iákov, oficial
de artilharia, foi preso no início da Segunda Guerra e os nazistas tentaram
envolvê-lo numa troca de prisioneiros. Stalin rejeitou a proposta e seu filho
morreu no campo de concentração de Sachsenhausen. Vassíli foi um jovem
desregrado, piloto da aeronáutica. Morreu em 1962, em decorrência do
alcoolismo. Svetlana, a queridinha, depois de vários casamentos infelizes, fugiu
da URSS, voltou, e por fim se estabeleceu nos EUA. Escreveu duas autobiografias
e ficou rica. Perdeu todo o dinheiro e morreu na obscuridade.
Stalin, a Corte do Czar
Vermelho, Simon Sebag Montefiore, Companhia das Letras, 2003
Stalin, Triunfo e Tragédia,
Dmitri Volkogonov, Nova Fronteira, 2004
Os Ditadores - A Rússia de
Stalin e a Alemanha de Hitler, Richard Overy, José Olympio, 2009.
Texto
Marina Darmaros, de Moscou, e Wagner Gutierrez Barreira.
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