O delegado-geral de São Paulo, Marcos Carneiro, tomou posse em 2011 com a determinação de, dentre outras iniciativas para melhorar o atendimento à população nas delegacias do Estado, proibir o uso de palavras latinas nos boletins de ocorrência policial. Na primeira entrevista após assumir o cargo, em 10 de janeiro, Carneiro disse que considera obscuro para a população o uso de termos como
ad cautelam (por cautela), por vezes escritos com erro ou aplicados de forma abusiva, "numa situação que exige objetividade".
O veto ao latim em boletins e memorandos policiais de São Paulo depende, para ser efetivado, de publicação de portaria no Diário Oficial do Estado. Mas já é dado como fato, embora nada impedisse a edição de portaria contrária, exigindo, simplesmente, a tradução entre parênteses de todas as expressões latinas consagradas no meio, algumas das quais usadas por esnobismo ou para exclusão dos não iniciados, mas outras tantas de aplicação precisa e tradicional.
A medida, pensada como instrumento de ampliação da cidadania, vai na contramão da discreta, mas surpreendente, valorização de que o latim tem sido alvo nos últimos tempos.
InternetO Google, por exemplo, acaba de anunciar o latim como a mais nova língua no cardápio de seu Google Translate. Segundo o engenheiro Jakob Uszkoreit, no blog oficial do sistema de busca, é o primeiro idioma sem falantes nativos que o serviço é capaz de traduzir de forma automática. O latim, no entanto, oferece dificuldades específicas ao buscador, que depende de textos reais e traduções já feitas para usar como referência, diz Jakob. Um dos limites do sistema é a dificuldade de traduzir termos contemporâneos, que não existiam na Roma antiga. O serviço cria aproximações. Para um xingamento muito atual, como "Vai se ferrar!", o Google Translate cria o equivalente "
Pedicabo ego vos". Se, em caminho inverso, pedimos versão em português para "
Pedicabo ego vos", o equivalente será "Eu vou amaldiçoar você".
A preocupação em criar aproximações semânticas é compartilhada pela maior instituição a ainda usar o latim de forma oficial, a Igreja Católica. Mas, diferentemente do Google, a Igreja arvora-se de autoridade para "atualizar" o latim. Apesar das mudanças do Concílio Vaticano II, que acabaram por excluir o latim nas missas, o Vaticano vem tentando retomar o uso do idioma.
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Carneiro quer proibir expressões latinas em boletins de ocorrência em São Paulo |
Reação papalO papa Paulo VI, por exemplo, criou em 1970 a Fundação Latina do Vaticano, responsável por um dicionário moderno, o
Lexicon Recentis Latinitas (2003,
www.alpheratz.org), em dois volumes com 15 mil palavras, adaptações latinas de termos usados nos dias de hoje.
A importância do latim para a Igreja é tão intestina que a Cidade do Vaticano tem o único caixa eletrônico do planeta com instruções em latim. A retomada do idioma, no entanto, só se sacramentou há três anos, quando o papa Bento XVI promulgou documento retomando o uso do latim nas missas, se houver interesse por parte dos fiéis.
A carta apostólica
Motu Proprio, com o nome de
Summorum Pontificum (dos maiores pontífices), permitiu a realização extraordinária de missas em latim, segundo livros litúrgicos anteriores ao Concílio Vaticano II, pelos padres que o desejarem, sem necessidade de autorização de bispos. O rito de São Pio V (século 16) fora usado até a reforma litúrgica de 1970, quando Paulo VI aprovou missas em vernáculo local.
Responsável pela celebração na paróquia da Imaculada Conceição, em Curitiba, o padre Paulo Iubel não acredita que o rito tradicional seja um retrocesso dentro da Igreja, já que não seria uma imposição.
- É só uma resposta ao pedido de um grupo. Ninguém seria coagido a participar - explica o sacerdote.
Para o padre, o uso do latim permitiria uma espécie de ligação com o passado à medida que preserva elementos espirituais.
- Eu me sinto pessoalmente mais realizado (após a celebração da missa). É como se o fator de mistério prevalecesse - comenta Iubel.
No mosteiro de São Bento, centro de São Paulo, o padre Jonas dos Santos Lisboa celebra missas em latim aos domingos, às 18 horas. Com túnica roxa, abençoa os fiéis, cruzando o corredor principal. Lentamente, volta ao altar e dá início à missa, que segue as normas do antigo missal romano, como genuflexões, uso do latim durante o rito (com exceção da liturgia da palavra), sucessivas anáforas (em que o padre fala e os presentes respondem), tudo regido pelo sacerdote que fica, a maior parte do tempo, de frente para o altar, de costas para os fiéis.
InvençãoEm trinta e três anos de sacerdócio, padre Jonas rezou só uma missa em português. Ele foi integrante da diocese de Campos de Goytacazes (RJ), orientada pelo bispo dom Antonio de Castro Mayer, que seguiu o ritual antigo após o Concílio Vaticano II.
- Temos DVD que ensina a celebrar a missa no rito tradicional.
Gravado pela paróquia Pessoal do Senhor Bom Jesus Crucificado e do Imaculado Coração de Maria, de Campos, o DVD é enviado a igrejas de Belo Horizonte, Nova Iguaçu, Volta Redonda e Curitiba, junto a um livro de orientação.
O latim inventado pela Igreja para termos atuais como "futebol" e "buzina" ganha contraponto ficcional na série adolescente
Harry Potter, fenômeno de mídia a popularizar o latim numa escala poucas vezes vistas. Mas que latim! As palavras mágicas usadas em feitiços da franquia, em livros, filmes e games, são resultado de transliterações inventivas ou da geleia geral que a autora J. K. Rowling preparou para dar a cada encantamento um frescor artificialmente classicizante, de quem compartilha um saber esquecido.
Não raro, não há genuína derivação do latim nos termos mágicos. Para a garotada que consome o bruxo, é o que menos importa.