Em meados do século XVII a
Europa viveu uma transformação que seria fundamental para quase tudo que se
passou no mundo desde então. Na expressão do historiador inglês Hugh
Trevor-Roper (1914-2003), ela virou “de cabeça para baixo” em termos políticos,
econômicos e intelectuais. Ou melhor, sua cabeça virou para o norte: países
como Inglaterra e Holanda passaram a ser as potências do continente; Itália e
Espanha entraram em decadência. O poder, em outras palavras, se deslocou das
regiões católicas – que incluíam ainda Flandres e o sul da Alemanha – para as
protestantes, como também Suíça e a França dos huguenotes, comandada por
banqueiros e industriais calvinistas. O capitalismo tal como o conhecemos nasceu,
e com ele as diferenças de ritmo e mentalidade que marcariam o jogo das nações
nos séculos seguintes.
Em seu fascinante volume de
ensaios sobre o tema, A Crise do Século XVII – Religião, A Reforma e Mudança
Social, enfim publicado no Brasil (editora Topbooks), Trevor-Roper tenta
entender o que se passou no intervalo que vai do fim do Renascimento, que data
em 1620, até o surgimento do Iluminismo, ao redor de 1660. Um movimento, de
certo modo, era continuidade do outro, mas sofreu um deslocamento geográfico
tão rápido quanto evidente. Segundo a conhecida tese do sociólogo alemão Max
Weber, essa mudança se deu por uma razão ética: a moral protestante estava mais
predisposta ao espírito capitalista, por infundir no indivíduo mais autonomia
intelectual e menos aversão ao lucro. Trevor-Roper está de acordo, mas tenta
acrescentar nuances importantes à visão. Para ele, a religião foi um dos
fatores, não o único.
O primeiro e melhor ensaio
do livro, que está no subtítulo do volume (originalmente publicado em 1967 pela
Liberty Fund), é eloquente ao mostrar que os países católicos no início daquele
século estavam, por assim dizer, preparados para dar o salto capitalista, para
converter seu mundo comercial e financista em uma economia baseada na
indústria, em novas escalas de produção. Havia condições materiais e culturais
para tanto. Mas uma série de acontecimentos mudou o panorama. Nos países
protestantes, empreendedores calvinistas formavam “a elite econômica da
Europa”; nos católicos, existia um hiato entre a Igreja e as forças produtivas.
Só que a diferença não se deve apenas à mentalidade calvinista.
Um dos acontecimentos
centrais foi a expansão do poder da Espanha, responsável maior pela
Contra-Reforma, pela aproximação entre Estado e Igreja que se intensificou com
as novas concorrências. Diferentemente da Itália, em especial de cidades
mercantis como Veneza, a Espanha tinha sua riqueza apoiada em uma sociedade
ainda feudal e burocrática que havia sido “acidentalmente alçada ao poder
mundial pela prata da América”. Como tal, essa riqueza da monarquia espanhola
era mais aparente do que duradoura, porque fora de sintonia com os novos
tempos. O seu era um capitalismo de Estado, centralizador e opressor, menos
tolerante com heresias, dominado por príncipes personalistas. Ou seja: não foi
apenas o protestantismo que abriu espaço para o capitalismo, mas também o
catolicismo que fechou as portas para ele.
Outros fatos se passaram no
campo das idéias. Não por causa da moral protestante, e sim porque tolerada por
ela, a filosofia iluminista começou a vicejar nos países do norte europeu.
Pensadores do protestantismo francês (huguenotes), como Languet e
Duplessis-Mornay, formulavam a nova ciência política, pós-Maquiavel. Na Holanda
o conceito de Direito Natural era forjado por Grotius e outros intelectuais. Na
Inglaterra de Cromwell, apesar do messianismo de seu líder, o ensaísmo de
Francis Bacon lançava as bases da ciência moderna, empírica, e Thomas Hobbes
propunha a submissão do poder religioso ao político. Na terra de Calvino, a
Suíça, assim como na Escócia, as universidades fomentavam o pensamento laico de
Montesquieu, David Hume, Adam Smith e Voltaire, influenciando cabeças como as
do grande historiador Edward Gibbon e a do fundador americano Thomas Jefferson.
Qual era então a conexão
entre calvinismo e Iluminismo? Era moral, social ou teológica? Para responder a
essa pergunta, Trevor-Roper, no quarto ensaio, As Origens Religiosas do
Iluminismo, vai primeiro às raízes do movimento no final da Renascença. E lá
encontra, em destaque, o pensamento de Erasmo de Roterdã (1466-1536),
representante mais completo de uma era liberal, pacífica e cosmopolita,
anterior às guerras religiosas da primeira metade do século 17. Era uma época
em que se acreditava numa Igreja unida, consensual, em que correntes como os
arminianos (seguidores de Armínio, que dizia que a fé depende da vontade
individual) e os socinianos (seguidores de Socino, que não acreditava em pecado
original) discordavam de Calvino e não eram perseguidas por isso. Trevor-Roper
resume: “Podemos dizer que as diferentes sociedades calvinistas da Europa
contribuíram para o Iluminismo apenas na medida em que se afastaram do
calvinismo.”
O Iluminismo teve, sim,
bases religiosas, mas delas se distanciaria cada vez mais. O calvinismo mudou o
paradigma ético, ao romper com o antiindividualismo católico, mas foram
movimentos dissidentes do calvinismo que abriram caminho para a afirmação da
razão crítica e do livre-arbítrio. Weber estava certo em seu diagnóstico a
respeito da nova ética, mas não em associá-la com tanta ênfase ao calvinismo. O
humanismo de outro herdeiro de Erasmo, Montaigne, na virada para o século 17,
era também produto dessa reação ao puritanismo religioso. Sem as “heresias” ao
próprio protestantismo, sem o pensamento laico ou laicizante de todos esses
inimigos de utopias e ideologias, o novo mundo capitalista não teria irrompido
com a mesma força.
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