Drama filosófico que, ao
mostrar a procura como fonte pulsante da vida, transfigura-se em odisséia do
homem moderno.
Eloá
Heise
A tragédia Fausto é, sem dúvida alguma, um dos textos que
empresta a Goethe repercussão universal. Nela, pode-se dizer, o poeta expressa
a experiência de toda sua existência. O próprio autor afirma em Poesia e
verdade, que essa obra representa o “suma sumaruim” de sua vida. Não se pode
esquecer que Goethe trabalhou durante 60 anos com esse tema : de 1772 (com seus
trabalhos sobre o Urfaust – Fausto zero como ficou conhecido pela tradução
encenada no Brasil) até 1832, ou seja, pouco antes de sua morte, ano em que
postumamente é publicado o Fausto II. Em seu longo processo de elaboração, esse
texto congrega as várias transformações pelas quais passou o poeta em sua longa
vida: os vários períodos literários da época – Ilustração, Sturm und Drang,
Classicismo, Romantismo -; as diversas atividades do poeta junto ao estado, no
meio teatral, seus interesses científicos – botânica, mineralogia, estudo das
cores -; seus estudos filosóficos – teologia, teosofia, escritos
mágico-místicos -, além dos conhecimentos da mitologia antiga.
Fausto, além de ser a obra simbólica da vida de Goethe,
adquire também significado universal por materializar o mito do homem moderno,
o homem que busca dar significado a sua vida, que precisa tocar o eterno e
compreender o misterioso. Sob este aspecto, o mito faústico transforma-se em um
“mito vivo”, um relato que confere modelo para a conduta humana.
O
mito faústico e as marcas intertextuais
A relação de Fausto como o conceito de mito, entretanto,
também deve ser entendida em uma outra acepção, no sentido de fábula, de
ficção, uma vez que a obra de Goethe baseia-se na lenda medieval sobre a figura
histórica do doutor Fausto.
Para entender o verdadeiro significado da figura do
doutor Fausto, torna-se importante ressaltar que não se trata apenas de um
charlatão que se tornou rico e famoso por ter feito um pacto com o diabo, como
se propaga comumente. Cabe lembrar que o mito criado em relação a essa figura
histórica – Georg (Johann) Faust,
(1480-1540) tem sua origem em uma época de crise, a transição entre a Idade
Média e a Idade Moderna, época caracterizada por profundas mudanças, na qual
conceitos até então inquestionáveis começam a ser colocados em xeque. Nesses
novos tempos de inquietação, ligados a pesquisas no campo das ciências naturais
e outras ciências, pode-se entender que aquele que manifesta sua descrença em
relação a verdades, tidas como absolutas, é considerado um homem não temente a
Deus, um pactuário do demo. Isso explica a recorrência do motivo do pacto com o
diabo à época. Nesse contexto, basta lembrar de figuras contemporâneas ao
doutor Fausto: Paracelsius, Nostradamus, Bacon ou Galileu que, perante os olhos
da Inquisição, também teriam feito uma aliança com o demônio. Esse é o pano de
fundo que serve de cenário para o aparecimento do personagem histórico, doutor
Fausto, em tempos que espelham esse processo de busca por maioridade.
Consta que esse douto levou uma vida errante, passando
por várias localidades da Alemanha, o que fez que se tornasse conhecido por
toda parte. Estudou magia, medicina, astrologia, alquimia, atividades que lhe
permitiram trabalhar com horóscopo e fazer profecias. Unindo a capacidade de
curar com a de prever o futuro, ficou famoso e conseguiu amealhar uma boa
fortuna. Todas essas aptidões, por sua vez, renderam-lhe a fama de ter vendido
sua alma ao diabo. Esse destino pessoal, que personifica os anseios da época ao
materializar a busca daquele que quer ultrapassar os próprios limites através
da especulação, dará origem à primeira versão escrita sobre as histórias de
Fausto, publicada logo após a morte do Fausto histórico, em 1587, sob o título
de Historia von D. Johann Fausten.
Essa história, de autor anônimo e de cunho popular,
narra, ao lado de relatos sobre o Fausto, que eram voz corrente, outras discussões
de cunho teológico, astrológico, histórico, científico, provindas das mais
diferentes fontes contemporâneas. Essa estrutura, sem unidade estética, acaba
por refletir esse tempo de transformação, com a justaposição de crenças
diabólicas medievais ao lado do novo espírito das ciências. No livro popular,
com suas partes especulativas e enciclopédicas, o pacto entre Fausto e o diabo
compreende um período de 24 anos. Nesse contexto, a sede insaciável do
protagonista por saber é vista, antes de tudo, como um grande pecado, pois uma
tal postura afastaria o homem de Deus e o aproximaria da dúvida. Esse homem
incorreria no pecado da hybris, a presunção, por pretender equiparar-se a Deus.
Essa história, tão ao gosto da época, conquistou enorme repercussão, atingindo
5 edições. Sabe-se que Goethe, ainda quando criança, entrou em contato com a
edição de 1725, sob a forma de teatro de marionetes, apresentada em praças de
mercado.
As
versões de Marlowe e Lessing
Por volta de 1592, o livro
popular alemão é traduzido para o inglês, originando-se daí o livro popular
inglês sobre o tema Fausto. Esse livro, por sua vez, serve de material para
Christopher Marlowe, o mais importante dramaturgo ao lado de Shakespeare,
escrever sua peça Tragical history of doctor Faustus, editada em 1604. As
encenações do texto de Marlowe, por seu turno, irão repercutir novamente na
Alemanha ao serem apresentadas por teatros mambembes, em língua estrangeira,
mas de forma pantomímica. Consta que Goethe conheceu as encenações da peça de
Marlowe de 1768 e 1770.
Já a partir do drama de Marlowe, começa a delinear-se uma
ambivalência moral em relação a este homem impulsionado por sua sede de saber.
Tem origem no dramaturgo inglês a idéia do monólogo inicial, no qual Fausto
mostra toda sua infelicidade por não alcançar a plenitude do conhecimento.
Enquanto no livro popular alemão há uma clara condenação da presunção do
protagonista, a versão inglesa da lenda deixa transparecer uma postura dúbia.
Existe a condenação, sim, mas, paralelamente, percebe-se uma admiração pela
figura desse douto que, qual um Prometeu, desafia a divindade. Contudo, também
na versão inglesa, o ímpeto desmesurado de Fausto conduzirá ao estabelecimento
de um pacto com o diabo, selado sob a condição de viver 24 anos de prazer sem
limites, decorrendo, como conseqüência, a sua condenação.
A lenda sobre o Fausto ganha novo fôlego a partir de
idéias próprias do período da Ilustração. Entre 1755 e 1775, Lessing, o grande
escritor do Iluminismo alemão, desenvolve projetos de escrever uma peça sobre o
Fausto. O texto não chega a se efetivar, restando apenas a montagem de
fragmentos e idéias gerais
reconstituídas pela memória de amigos, dados creditados à coincidência
de informações.
Se Kant, em sua definição de Iluminismo, mostra que o
lema dessa corrente filosófica é: Sapere aude - tenha a coragem de servir-te da
tua própria inteligência -, então Fausto, por ousar, por ter a coragem de
buscar pelo sentido da vida, não poderia ser alguém condenado à danação dos
infernos. Nesse contexto iluminista, Fausto, na sua procura pela verdade
através da razão, empreende uma tarefa que dignifica o homem; em outras
palavras: aquele que decide fazer uso de sua qualidade intrínseca, a razão, não
será condenado, mas transforma-se no preferido de Deus, o destinado à salvação.
Goethe conhecia os planos de Lessing e as reconstituições
de seu drama que podem ser detectadas, em sua essência, nas obras teatrais
póstumas (Theatralischer nachlass, de 1786). Vem de Lessing a idéia de salvação
que encontramos no Fausto de Goethe.
Goethe contou, pois, com diferentes pré-textos na
elaboração de suas variadas versões da tragédia: de 1772-1775, elabora o Fausto
zero; em 1790, produz Fausto, um fragmento; em 1808, é publicado o Fausto I e,
em 1832, o Fausto II. No rastreamento do percurso do mito faústico e das fontes
que serviram de inspiração para a realização de sua obra-prima, pode-se
mencionar suas impressões da infância, ao assistir nas praças dos mercados as
encenações do livro popular propriamente dito, a versão inglesa, com as
apresentações do Fausto de Marlowe. A esses legados de cunho literário deve-se
acrescentar um fato de origem real, o processo e a execução da infanticida
Margaretha Brand, ocorrido em 1771-72, tragédia que impressionou profundamente
Goethe e que será ficcionalizada em sua obra através do destino de Gretchen, a
mulher que se apaixona por Fausto e, ao ser abandonada por ele, em um ato de
loucura, assassina o próprio filho. Dentro desse rol de marcas intertextuais
cabe dar ênfase especial à idéia de salvação, esboçada inicialmente por Lessing
e assumida por Goethe, que servirá de inspiração para a virada redentora no
destino de seu protagonista.
A
estrutura da peça
Dentre as diversas versões mencionadas, vamos nos ater à
composição do Fausto I e do Fausto II, que podem sem interpretadas como uma
unidade, com uma construção própria.
A peça inicia-se com três cenas introdutórias, três
prólogos que desenvolvem, respectivamente, uma perspectiva autobiográfica, uma
perspectiva poetológica e uma perspectiva metafísica.
O primeiro prólogo, Dedicatória, não dedica a peça a
ninguém, como o título faz supor, mas é uma metarreflexão, em forma de
monólogo, no qual o poeta faz uma retrospectiva da história da obra. No Prólogo
no teatro, que vem a seguir, há uma discussão sobre a essência e a função da
obra teatral; no confronto de opiniões antagônicas, debatem-se temas pouco
ortodoxos para uma peça de teatro como: produção, rentabilidade, encenação e
recepção do drama. Percebe-se, pois, que esses dois prólogos iniciais não se
integram no enredo dramático.
O Prólogo no céu, no entanto, é parte do desenvolvimento
da trama e representa a moldura celestial externa que contém no seu escopo a
ação terrena interna. Essa moldura metafísica envolve todo o drama. Inicia-se
no começo do Fausto I e encerra seu contorno no fim do Fausto II, sob forma de
epílogo. A moldura celeste, formulada segundo conceitos próprios da tradição
cristã e assumindo a fórmula de um mistério medieval, apresenta uma imagem do
mundo e do homem. Nesse jogo universal a terra é colocada entre o céu e o
inferno e o ser humano entre Deus e a diabo.
Nesse espaço, Fausto, personificando o homem, transforma-se em objeto de disputa entre o
Senhor e Mefistófeles. O Senhor acredita que o homem é intrinsecamente bom;
pode errar porque procura, mas, por fim, será conduzido à luz. Já Mefisto o vê
como uma criatura mal construída, dividida entre o instinto animal e sua parte
racional. A partir dessas posições contrárias, Mefisto pede permissão e aposta
que conduzirá Fausto por seus caminhos. Já o Senhor, por acreditar que “o homem
erra, enquanto aspira” mas “da trilha certa se acha sempre a par”, aceita a
aposta. Paralelamente, o Senhor também sabe que o “humano afã tende a frouxar
ligeiro” e, por isso, é necessário que o homem tenha por companheiro o diabo,
que atiça e instiga, impedindo que o ser humano caia na suprema condenação, a
inércia. Assim, Mefisto desempenha uma dupla função: conduz o homem por
caminhos que o levarão à culpa mas, ao mesmo tempo, impede que ele esmoreça e
cesse sua atividade, o motor essencial da vida.
Fausto, portanto, é colocado em jogo como objeto
demonstrativo pelo Senhor, e deve provar através de si os valores ou os
desvalores da criação. O drama, como um todo, pode ser entendido como a tentativa
espiritual de compreensão da totalidade do universo. Discute, de forma poética,
o sentido da criação, a função do mal, o destino do homem.
A ação interna da peça, no âmbito terreno, vai espelhar,
na aposta feita entre Fausto e Mefisto, o dilema proposto no âmbito celestial,
entre o Senhor e Mefistófeles. Diante do desafio que lhe propõe Fausto, Mefisto
assume a tarefa de satisfazer o homem e de conduzi-lo pelas experiências do
pequeno mundo (Fausto I) e do grande mundo (Fausto II). Já Fausto, na sua busca
sem limites, aposta que o diabo nunca conseguirá seu intento, que ele nunca irá
deitar-se em “uma cama de preguiça” e, satisfeito consigo, irá proferir as
palavras que condenariam sua alma:
“permaneça (momento), tão belo que és”. Desta maneira, com a ajuda de Mefisto,
Fausto percorrerá o mundo na ânsia de vivenciar toda experiência destinada à
humanidade.
A ação terrena, abarca toda a trajetória do protagonista:
desde a cena Noite, (Fausto I), com a constatação da crise existencial, até a
cena final Grande átrio de palácio (Fausto II), quando Fausto morre. Dentro
desse grande contorno, a partir das propostas do pacto e da aposta entre Fausto
e Mefisto, o protagonista irá percorrer as diversas estações na sua busca por
sentido.
Cabe mencionar que o pacto, cerne do mito faústico
tradicional, tem pouca ênfase na obra de Goethe. O pacto, sugerido por Mefisto,
é prontamente aceito por Fausto, pois o protagonista “não teme nem o inferno
nem o diabo”. Essencial em Goethe é a aposta, desafio proposto pelo titã Fausto
que, por não apresentar um vencedor de antemão, tem um caráter ativo e
inconclusivo (diferente do pacto que é um acordo fechado). Coaduna-se, assim,
mais com a proposta vital da obra: a ação contínua como mola propulsora da
vida.
No Fausto I podemos detectar três estações: a procura por
sentido através da bebida (O porão de Auerbach), do desejo e do amor por
Gretchen (cenas Rua até Cárcere) e da sensualidade desenfreada (Noite de
Walpúrgis). O Fausto II também comporta mais três estações: o mundo da corte (I
ato), a estação da beleza e da arte (II e III atos) e a estação do conquistador
e empreendedor (IV e V atos).
Quem
ganha a aposta?
Depois das diversas buscas, no fim de seus dias, Fausto,
quase cego, tem a visão de um povo ativo, lutando junto na conquista de terras
para viver livremente. Nesse instante, o protagonista quase pronuncia a fórmula
que aponta para o fim da procura: “Sim ao
momento diria / Oh! Pára enfim – és tão formoso!” Em seguida, morre.
Quem ganha a aposta? A ação no âmbito terrestre deixa
essa pergunta sem resposta. Na moldura celeste, contudo, os anjos, na atmosfera
superior, levam a alma imortal de Fausto: “Quem aspirar, lutando ao alvo / À
redenção traremos”.
Assim, Fausto, ou o homem, é salvo, há a redenção;
paralelamente é condenado a ser um eterno insatisfeito, o destino do homem
moderno. A grande resposta está, pois, na pergunta que não cessa; a vida só
adquire sentido no movimento constante: criação é ação.
Eloá
Heise é professora da USP e autora de A lenda do Dr. Fausto em relação
dialética com a utopia (capítulo do livro A literatura da virada do século: fim das utopias,
Humanitas/FAPESP, FFLCH/USP, 2001).
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