Odin e Thor ante o rei dos anões Hreidmar.
O
que significa, pergunta-se Wagner, que uma arte, como a música,
tenha surgido com esse poder incomparável na vida do homem moderno?
Não há necessidade tampouco de desprezar essa vida moderna ao ver
que nela subsiste uma problema; pelo contrário, quando avaliarmos as
forças poderosas que governam essa vida e quando evocarmos a imagem
do indivíduo violentamente ávido de se elevar e que luta para
adquirir a liberdade consciente e a independência do pensamento, é
particularmente então que a aparição da música neste mundo parece
um enigma. Como não dizer que em semelhante época a música não
deveria ter surgido? Mas como então explicar sua existência? É um
acaso? Certamente o aparecimento de um grande artista poderia ser
furto do acaso, mas uma sequência de artistas como a história da
música moderna apresenta, fenômeno que só se repetiu analogamente
uma vez, na época dos gregos, induz a pensar que aqui não é o caso
que reina, mas uma necessidade. Essa necessidade, aí está
justamente o problema ao qual Wagner dá uma pergunta.
Foi
o primeiro que descobriu um mal difundido em todos os povos, em toda
a extensão dos países civilizados; em toda parte a língua está
afetada por uma doença e essa horrível doença pesa sobre toda a
evolução da humanidade. A fim de captar o que mais se opõe ao
sentimento, ou seja, o pensamento, a língua teve de galgar os
degraus mais elevados que possam ser acessíveis e se afastar sempre
mais da poderosa emoção que na origem era capaz de expressar sem
esforço; esgotou-se nesse esforço desmedido, no curso do breve
período da civilização moderna. Isso de tal forma que não pode
mais preencher o papel pelo qual foi criada e que consiste em
permitir aos homens sofredores se entenderem a respeito das
necessidades mais elementares da vida.
O
homem em sua penúria não consegue mais se fazer compreender nem em
se comunicar verdadeiramente com o outro por meio da língua; nesse
estado em que tem obscuramente consciência, a língua; nesse estado
em que tem obscuramente consciência, a língua se tornou um poder
autônomo que aperta os homens com seus braços de fantasma e os
impele para onde não querem ir. A partir do momento em que procuram
se entender e se unir para uma obra comum, a loucura dos conceitos
gerais ou mesmo das puras sonoridades verbais se apodera deles e,
nessa impossibilidade em que estão para se exprimir, as criações
coletivas de seu espírito levam por sua vez o sinal do
desentendimento íntimo, na medida em que não correspondem mais a
necessidades reais, mas somente ao nada dessas palavras e desses
conceitos tirânicos; é assim que a humanidade acrescenta a seus
outros males a submissão à convenção, ou seja, a um acordo entre
as palavras e os atos que não correpondem a um acordo de sentimento.
Do mesmo modo que as artes em seu declínio chegam a um ponto em que
a proliferação mórbida dos meios e das formas adquira uma
prepoderância tirânica sobre a alma dos jovens artistas e os reduz
à servidão, assim também, no declínio das línguas, nos tornamos
escravos das palavras; sob essa coação, ninguém ousa mais se
mostrar tal como é nem se exprimir ingenuamente e muito poucos
chegam a salvaguardar sua personalidade na luta contra uma cultura
que julga afirmar seu sucesso não se colocando serviço de
necessidades claramente sentidas, mas envolvendo o indivíduo na rede
das “idéias claras e distintas” e ensinando-lhe a pensar
corretamente; como se não houvesse um interesse qualquer para tornar
o homem apto a pensar e a raciocinar corretamente, se não conseguiu
primeiramente lhe ensinar a sentir corretamente!
Quando,
em seguida, numa humanidade assim alterada, chega tinindo a música
de nossos mestre alemães, o que é que percebemos? Precisamente esse
sentimento justo, inimigo de toda convenção, de toda barreira
artificial, de toda desinteligência entre os homens. Essa música é
retorno à natureza, pois, é na alma dos homens amantes que surgiu a
necessidade imperiosa desse retorno e o que vibra em sua arte é a
natureza mudada em amor. Pode-se admitir que essa e´uma das
respostas que Wagner dá ao problema da significação da música em
nosso tempo; mas tem uma segunda. A relação entre a música e a
vida não é somente a de uma linguagem com outra espécie de
linguagem, é também a relação do mundo sonoro inteiro com o mundo
visual inteiro. Mas enquanto fenômeno visual e
comparada com as manifestações anteriores da vida, a existência do
homem moderno é de uma pobreza, de uma miséria extrema apesar de
sua inenarrável confusão de cores que só pode satisfazer o olhar
mais superficial.
Wilhelm Richard Wagner (1813-1883).
Que
nos demos ao trabalho de olhar um pouco mais de perto e analisar a
impressão produzida por esse jogo de cores violentamente agitado.
Não é semelhante ao cintilar e ao reflexo de inumeráveis pequenas
pedras e fragmentos de pedras tomadas das civilizações passadas?
Que vemos nisso além de luxo inconveniente, animação de comando,
aparência afetada? Um traje feito de ouropéis multicoloridos para
vestir aqueles que estão nus e tremendo? Uma dança falsamente
alegre imposta aos que sofrem? Gestos de orgulhosa fatuidade exigidos
de feridos graves?
O
homem moderno nada mais é que aparência. Longe de mostrar no que
exprime, se dissimula; e o resto de inventividade artística que se
conservou em algumas nações.
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NIETZCHE,
Friedrich Wilhelm. O Caso Wagner. São Paulo: Editora Escala, 2013.
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