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Mapa da Transiberiana de 1897. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.
Para aqueles que tiveram o privilégio de percorrê-lo, ele é bem mais do
que uma experiência. Uma referência, um mito. Impossível esquecê-lo. Basta
evocar o rolamento do caminho de ferro na imensidão siberiana – caleidoscópio
de paisagens diversas – para despertar a curiosidade. A ferrovia mais longa do
mundo – quase 10 mil quilômetros, um quarto da circunferência da Terra na
altura do Equador – ainda inflama os espíritos.
Na taiga, entre as colinas e montes pelados, os complexos industriais do
rio Ural ao lago Baikal – o mais profundo do planeta, localizado no sul da
Sibéria – da Europa à Ásia, os vagões fora de moda repintados nas cores da
Rússia pós-comunista oferecem um passeio ferroviário excepcional. No século
XXI, essa linha de trem – cuja construção exigiu que florestas inteiras fossem
abatidas, rios desviados, milhares de quilômetros de trilhos instalados e
centenas de pontes construídas – ainda surpreende pelo gigantismo. Antes da
ferrovia, para atravessar a Sibéria, utilizava-se o trakt, uma estrada de
cascalho, mantida sob os cuidados de presidiários ou de mujiques, os exilados
voluntários, para que os negociantes, militares e adversários banidos – tais
como os dezembristas, os primeiros a se revoltar, em 1825, contra o regime
czarista – não tivessem os ossos deslocados nas carroças ou trenós, a cada
quilômetro.
Os pioneiros Quando se iniciaram as obras, em 1890, Anton Tchekhov,
viajando pelo trakt com destino à Ilha Sacalina, escreveu: “Eis-me em
Ecaterimburgo (onde, em 1918, foram executados o czar Nicolau II e sua família),
eu tenho o pé direito na Europa e o esquerdo na Ásia”. Se viajasse na década
seguinte, poderia ter chegado de trem. Foi o tempo gasto para a instalação de
10 mil quilômetros de trilhos. Engenheiros e operários pagaram caro para
construir esse colosso em tão pouco tempo.
Tudo começou em 1867, depois que o Império Russo, em dificuldades
financeiras por conta da Guerra da Crimeia (1853-1856), vendeu o Alasca para os
EUA. O governo russo percebeu, que a Sibéria, terra selvagem e de exílio onde
somente os negociantes de pele faziam fortuna, dispunha de riquezas ainda não
exploradas, entre elas as enormes jazidas de ouro. Como transportá-las, se não
fosse por ferrovia? Assim, nasceu a ideia da Transiberiana. Desde que o projeto
da ferrovia se tornou conhecido, as sugestões se multiplicaram – algumas
delirantes, como a de comboios puxados por cavalos, na falta de carvão para
alimentar as locomotivas a vapor...
Iniciativa militar As autoridades czaristas compreenderam rapidamente a
importância econômica e estratégica de um trem que ligasse Moscou a
Vladivostok, a jovem cidade construída em frente ao Japão, rival histórico da
Rússia. Após o conflito franco-prussiano de 1870, a diplomacia russa percebeu
que, no caso de guerra com os japoneses, a ferrovia seria um meio eficaz para
transportar as tropas – o que foi confirmado em 1904. Pode-se dizer que a
Transiberiana foi, a princípio, construída por militares e para militares.
Em 1875, a publicação do romance Michel Strogoff , de Júlio Verne,
apresenta as terras desconhecidas da Sibéria Oriental ao grande público. O
entusiasmo foi tamanho que, de forma inesperada, os chineses, invejosos da
publicidade dada a essa região, interromperam as exportações de chá para a
Rússia. Fosse boiardo ou mujique, ninguém ficou indiferente a essa medida: um
dia inteiro sem chá era tão insuportável que, na Transiberiana do século XXI,
continua-se a dar mais atenção à manutenção do samovar – um em cada carro – do
que à do eixos...
Para o ministro das Finanças
Serguei Witte, ardor e fé eram fundamentais para uma obra tão monumental.
Retrato do Ministro das Finanças e membro do Conselho de Estado Sergei
Yulyevich Witte, óleo sobre tela, Ilya Repin, 1903. Imagem: Galeria Tretyakov,
Moscou.
Embora no final do século XIX, o trem existisse somente nos documentos
do Comitê das linhas férreas, a colonização das terras aráveis siberianas se
acelerou. As pressões sobre o czar Alexandre III se intensificaram. O barão
Korf, governador da Sibéria Oriental, repete que, do lado de Vladivostok, a via
férrea seria uma espécie de muralha contra toda e qualquer invasão chinesa ou
japonesa. Seu filho, o czareviche Nicolau, reteve a lição. Num documento
assinado de próprio punho e datado de 29 de março de 1891, ele sela o destino
da Transiberiana – ignorando que, 27 anos mais tarde, ele faria, naquela
ferrovia, sua última viagem.
Diante de um casebre de madeira, ele instalou em Vladivostok o primeiro
trilho. Para Serguei de Witte, ministro das Finanças, tanto o ardor quanto a fé
nessas obras tornaram-se uma necessidade. As responsabilidades eram enormes:
definir um traçado, achar materiais, recrutar os operários, que precisariam ser
alimentados e alojados e ainda trabalhariam em condições climáticas extremas.
Primeira decisão: a construção deveria ocorrer, simultaneamente, em três
grandes áreas. Uma dificuldade maior surgiu: a travessia do lago Baikal.
A Sibéria não dispunha de estaleiros navais. Os comboios atravessavam
essa extensão de água, verdadeiro mar interior, numa barca construída na
Inglaterra e enviada em peças isoladas pelos trechos da linha já finalizados.
De vocação militar, no início, a ferrovia devia ser protegida. Daí, a ideia de
expandir em 11 centímetros a largura dos trilhos, fixada na Europa e na Ásia a
1,52 metro.
Os construtores foram declarados “heróis da pátria”, uma homenagem
modesta para quem sofreu tanto. Após um dia inteiro cavando, atulhando,
instalando vigas e trilhos, os trabalhadores eram transportados em carroças
pelo trakt, de volta aos casebres de madeira mofada dispostos por seções de 5
km, distância que eles deveriam percorrer em caso de neve, vento ou calor
escaldante, e sob o ataque constante de mosquitos. O abastecimento de
provisões, água potável – e vodca – era problemático. Fossem engenheiros ou operários,
esses homens famintos podiam se transformar em animais selvagens, capazes de
estrangular um camarada por uma simples migalha de pão.
Milhares ficaram cegos Algumas estelas ao longo do caminho lembram aos
passageiros que ali ocorreram mortes, muitas mortes. O ministro Witte escreveu
um relatório destinado ao czar, que se solidarizou, ordenando somente a
substituição dos defuntos por novas levas de trabalhadores – ninguém na capital
procurou criar um serviço de saúde. Entre as vítimas figuram milhares de
operários que ficaram cegos por causa de picadas de insetos.
Após a morte de Alexandre III, em 1894, boiardos e mujiques imploraram
para que Nicolau II interrompesse as obras. O Transiberiana talvez nunca
tivesse sido concluída não fosse a contribuição do rico industrial belga
Georges Nagelmackers. Inventor dos vagões-leito, sob a sigla Pullman, ele
sugere a Witte o lançamento de um trem “confortável” e chega a oferecer de
presente um vagão-igreja. As obras, não mais sob tutela militar, continuam. Gustav
Eiffel, o pai da torre, sempre à procura de um bom negócio, propõe o
fornecimento de todo o percurso de vigotas metálicas.
Meretrizes de toda a Europa Quilômetro após quilômetro, o trilho
avançava pela floresta boreal. Witte tem, então, uma revelação: o que falta aos
homens? Mulheres! Por meio de pequenos anúncios, prostitutas, bem pagas, são
trazidas de toda a Europa – e não da perversa Ásia! O czar concorda. Quantos
siberianos são descendentes de meretrizes das calçadas de Paris!
Estação de Krasnoyarsk, na
Rússia, em agosto de 2006. Imagem: História Viva.
Considerando que os industriais seriam os principais beneficiários do
trem, Nagelmackers recorre aos mais afortunados. Sem resultado. Ele sopra,
então, a Witte uma ideia, banal hoje em dia, mas original em 1898: uma viagem
para a imprensa, de Moscou a Tomsk. Três carros com dois leitos, um vagão-salão
com piano, uma cozinha delicada preparada por Auguste Escoffier. Oriundo da
Côte d’Azur, esse chefe fez as delícias dos ricos russos, para os quais a
Riviera é a antecâmara do paraíso. Todos aprovam a ideia, com exceção do czar:
ele não queria que os estrangeiros tomassem conhecimento das terríveis
condições de trabalho nas obras. A solução foi dar folga para todos os
trabalhadores de 5 a 25 de agosto, durante toda a viagem, que se faz ao longo
de 3 500 km. Os relatos dessa “fabulosa Sibéria” transbordavam de entusiasmo –
mas nenhuma palavra sobre os deportados. O luxo oferecido justificava uma tal
dissimulação?
O czar, entretanto, se voltou contra Witte por causa de gastos não
justificados; o ministro das Finanças invocou epidemias, chuvas, rebeliões
rapidamente reprimidas dos aldeões incompetentes empregados à força... E
manteve seu cargo. Em 1903, a Transiberiana foi concluída. A partir do ano seguinte,
ela provou sua utilidade. Quando, na noite de 9 de fevereiro, uma armada
japonesa atracou em Port-Arthur, o czar, humilhado, gritou: “Que as tropas
sejam enviadas pela ferrovia!”. Sim, mas... Sem dúvida instalados muito
rapidamente, os trilhos entre Khabarovsk e Vladivostok apresentam vários
defeitos. E o que tinha que acontecer, aconteceu: perto de Tchita, o trem
descarrilou numa floresta, uma zona pouco povoada onde faltam provisões e água
doce. Alguns militares morrem, outros perdem a razão ou fogem para a estepe –
uma vasta escolha de presas para os ursos, tigres e lobos.
Trem da insurreição Até 1916, os trens circularam. No ano seguinte,
Churchill declarou: “A Batalha do Marne também foi ganha na linha do trem
Transiberiano.” A Sibéria não era somente uma terra de deportação; o trem
facilitava a rebelião, a linha de trem tornou-se símbolo da insurreição. Os
amotinados, quando não eram fuzilados diante dos vagões, eles usam a sala de
reunião.
Em 1918, após a revolução, o general tcheco Kolchak, tendo ocupado as
estações, fez espalhar a existência de um Estado independente com o qual se
sonhava. Mas em vão: ele é executado pelos milicianos soviéticos. Pai do Exército
Vermelho, Trotski instala cinco vagões como casa, escritório e centro de
espionagem cobrindo toda a Sibéria. De 1922 a 1940, Stalin instala próximo às
vias os infames gulags, campos de trabalhos forçados.
Não nos enganemos: se civis e militares russos mantêm amáveis conversas
– sob os olhos da provonitsa, a ferromoça que reina entre samovares e
passageiros, o “trem n° 1”, sempre lotado, também facilita o desenvolvimento de
práticas mafiosas. Sem, no entanto, espantar os cavalos selvagens que galopam através
das montanhas Altai e da imensidão siberiana...
Autor: Claude Mossé. Jornalista e
autor de livro sobre a Transiberiana.
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