Imagem: A Lesson of the Evil. Psicopatas
infiltrados na política, igrejas, escolas, faculdades
ou em grandes empresas podem fazer estragos inimagináveis.
Seu comportamento se caracteriza por um forte
disfarce de amizade e sociabilidade. Apesar dessa agradável aparência, ele
oculta falta de confiabilidade, tendências impulsivas e profundo ressentimento
e mau humor para com os membros de sua família e pessoas próximas.
Cinco
milhões de brasileiros são incapazes de sentir emoções. Eles podem até matar
sem culpa e estão incógnitos ao seu lado. Agora, a ciência começa a
desvendá-los.
Tinha alguma coisa errada com o Guilherme.
Desde quando era pequeno, 4 anos de idade, a mãe, Norma*, achava que ele não
era uma criança normal. O guri não tinha apego a nada, era frio, não obedecia a
ninguém.
O problema ficou claro aos 9 anos. Guilherme,
nome fictício de um rapaz do Guarujá, litoral de São Paulo, que hoje tem 28
anos, roubava os colegas da escola, os vizinhos e dinheiro em casa. Também
passou a expressar uma enorme capacidade de fazer os outros acreditar no que
inventava. Aos 18, o garoto conseguiu enganar uma construtora e comprar um
apartamento fiado. Tinha alguma coisa errada com o Guilherme.
Em busca de uma solução, Norma passou 15 anos
rodando com o filho entre psicólogos, psiquiatras, pediatras e até benzedeiros.
Para todos, ele não passava de um garoto normal, com vontades e birras comuns.
“Diziam que era mimo demais, que não soubemos impor limites.” Uma pista para o
problema do filho só apareceu em 2004. A mãe leu uma entrevista sobre
psicopatia e resolveu procurar psiquiatras especializados no assunto. Então
descobriu que o filho sofre da mesma doença de alguns assassinos em série e
também de certos políticos, líderes religiosos e executivos. “Dói saber que meu
filho é um psicopata, mas pelo menos agora eu entendo que problema ele tem.”
Guilherme não é um assassino como o Maníaco
do Parque ou o Chico Picadinho. Mas todos eles sofrem do mesmo problema: uma
total ausência de compaixão, nenhuma culpa pelo que fazem ou medo de serem
pegos, além de inteligência acima da média e habilidade para manipular quem
está em volta. A gente costuma chamar pessoas assim de monstros, gênios. Mas para a Organização Mundial da Saúde (OMS), eles têm uma “doença”,
ou melhor, deficiência. O nome mais conhecido é psicopatia, mas
também se usam os termos sociopatia e transtorno de personalidade antissocial.
Entre os psiquiatras, há consenso quanto a
estimativas surpreendentes sobre a psicopatia. “De 1% a 3% da população tem
esse transtorno. Entre os presos, esse índice chega a 20%”, afirma a psiquiatra
forense Hilda Morana. Isso significa que uma pessoa em cada 30 poderia ser
diagnosticada como psicopata. E que haveria até 5 milhões de pessoas assim só
no Brasil. Dessas, poucas seriam violentas.
A maioria não comete crimes, mas deixa as
pessoas com quem convive desapontadas. “Eles andam pela
sociedade como predadores sociais, rachando famílias, se aproveitando de
pessoas vulneráveis e deixando carteiras vazias por onde passam”,
diz o psicólogo canadense Robert Hare, professor da Universidade da Colúmbia
Britânica e um dos maiores especialistas no assunto.
Os psicopatas que não são assassinos estão em escritórios, faculdades,
na política e em empresas por aí, muitas vezes ganhando uma
promoção atrás da outra enquanto puxam o tapete de colegas. Também dá para encontrá-los de baciada entre políticos
que desviam dinheiro de merenda para suas contas bancárias, entre médicos que
deixam pacientes morrer por descaso, entre “amigos” que pegam dinheiro
emprestado e nunca devolvem… Lendo esta reportagem, não se surpreenda se você
achar que conhece algum. Certamente você já conheceu.
O francês Philip Pinel, um dos pais da
psiquiatria, escreveu no século 18 sobre pessoas que sofriam uma “loucura sem delírio”. Mas o
primeiro estudo para valer sobre psicopatia só viria em 1941, com o livro The
Mask of Sanity (“A Máscara da Sanidade”, sem tradução para o português), do
psiquiatra americano Hervey Cleckley. Ele dedica a obra a um problema
“conhecido, mas ignorado” e cita casos de pacientes com charme acima da média, capacidade de convencer qualquer um e
ausência de remorso. Com base nesses estudos, Robert Hare passou 30
anos reunindo características comuns de pessoas assim, até montar sua escala Hare, o método para reconhecer psicopatas mais
usado hoje.
Seja como for, não é fácil identificar um. Psicopatas não
têm crises como doentes mentais: o transtorno é constante ao longo da vida.
Outras funções cerebrais, como a capacidade de raciocínio, não são afetadas.
Algumas características, no entanto, são evidentes.
Segredos e mentiras
Atributo
número 1: mentir.
Todo mundo mente, mas psicopatas fazem isso o tempo todo, com todo mundo.
Inclusive com eles mesmos. Eles são profissionais da lorota.
Ana*,
há 9 anos conheceu um cara incrível. Ele dizia que, com apenas 27 anos, era
diretor de uma grande companhia e que, por causa disso, viajava sempre para os
EUA e para a Europa. Atencioso e encantador, Cláudio era o genro que toda sogra
queria ter. “Em 5 meses, a gente estava quase(casando. Então a mãe dele revelou
que era tudo mentira, que o filho era doente, enganava as pessoas desde criança
e passava por um tratamento psiquiátrico.”
“O diagnóstico de transtorno anti-social
depende de um exame detalhado. É que, além de mentir, ele mostra ausência de
culpa”, afirma o psiquiatra Antônio de Pádua
Serafim, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
E esse é um atributo-chave da mente de um
psicopata: cabeça fresca.
Nada deixa esses indivíduos com peso na consciência. Fazer coisas erradas, todo
mundo faz. Mas o que diferencia o psicopata do “todo mundo” é que um erro não
vai fazer com que ele sofra. Sempre vai ter uma desculpa: Justamente por achar
que não fazem nada de errado, eles repetem seus erros.
“Psicopatas reincidem 3 vezes mais que
criminosos comuns”, afirma Hilda Morana, que traduziu e adaptou a escala Hare
para o Brasil. “Tem mais: eles acham que são imunes a punições.” E isso vale em
qualquer situação. Até na hora de jogar baralho. Psicopatas não aprendem com
punições. Não adianta dar palmadas neles.
Além disso, psicopata que se preze se orgulha
de suas mancadas. Esse sujeito pode ser o marido que trai a mulher e se gaba
para os amigos. Ou coisa pior.
Eis mais um traço psicopático. “Eles tratam as pessoas como coisas”,
afirma o psiquiatra Sérgio Paulo Rigonatti, do Instituto de Psiquiatria do HC.
Isso acontece porque eles simplesmente não assimilam emoções.
Em 2001, o psiquiatra Antônio Serafim colocou
presos de São Paulo para assistir a cenas reais horripilantes. Cada um ouvia,
por um fone, sons desagradáveis, como gritos de desespero. “Os criminosos
comuns tiveram reações físicas de medo”, diz ele. “Já os identificados como
psicopatas não apresentaram sequer variação de batimento cardíaco.”
Mais: uma série de estudos do Instituto de Neurociência Cognitiva,
nos EUA, mostrou que psicopatas têm dificuldade em nomear expressões de
tristeza, medo e reprovação em imagens de rostos humanos. “Outros 3 estudos ligaram psicopatia com a falta de nojo e problemas
em reconhecer qualquer tipo de emoção na voz das pessoas”, afirma Blair.
É simples: assim como daltônicos não
conseguem ver cores, psicopatas são incapazes de enxergar emoções. Não as
enxergam nem as sentem, pelo menos não do mesmo jeito que os outros fazem. Em
vez disso, eles só teriam o que os psiquiatras chamam de proto-emoções –
sensações de prazer, euforia e dor menos intensas que o normal. “Isso impede os
psicopatas de se colocar no lugar dos outros”, diz Hilda Morana.
Esse jeito asséptico de ver o mundo faz com
que um psicopata consiga mentir sem ficar nervoso, sacanear os outros sem
sentir culpa e, em casos extremos, retalhar um corpo com o mesmo sangue-frio de
quem separa as asinhas do peito de um frango assado.
Ok, o problema central dos psicopatas é que
eles não conseguem sentir emoções. Mas por que isso acontece?
Para
a neurologia os “circuitos” do cérebro de um psicopata são fisicamente
diferentes dos de uma pessoa normal. Agora, resta saber se essas deficiências
vêm escritas no DNA ou se surgem depois do nascimento.
Hoje, se sabe que boa parte da estrutura
cerebral se forma durante a vida, sobretudo na infância. Mas cientistas buscam
uma causa genética porque a psicopatia parece surgir independentemente do
contexto ou da educação. “Nascem tantos psicopatas na Suécia ou na Finlândia
quanto no Brasil”, afirma Hilda Morana. “Os pais costumam se perguntar onde foi
que erraram.” A impressão é que psicopatas nasceram com o problema. “Eles
também surgem em famílias equilibradas, são irmãos de pessoas normais e deixam
seus pais perplexos”, afirma Oliveira-Souza.
James Blair vai pela mesma linha: “Estudos
com pessoas da mesma família, gêmeos e filhos adotados indicam que o
comportamento dos psicopatas e as disfunções emocionais são coisas
hereditárias”, afirma.
Os que vêm de famílias equilibradas e viveram
uma infância sem grandes dramas teriam uma probabilidade maior de se
transformar naqueles que mentem, trapaceiam, roubam, mas não matam. Mais de 70%
dos psicopatas diagnosticados são desse grupo, mas não há motivo para alívio. Psicopatas
infiltrados na política, igrejas, escolas e faculdades ou em grandes empresas
podem fazer estragos ainda piores.
Exemplos não faltam. O político absurdamente corrupto que é adorado
por eleitores, cativa jornalistas durante entrevistas, não entra em contradição
nem parece sentir culpa por ter recheado suas contas bancárias com dinheiro
público é um. O líder religioso que enriquece à custa de doações dos fiéis é
outro. O professor que discrimina e humilha seus alunos. E por aí vai.
“Eles costumam se dar bem em ambientes pouco
estruturados e com pessoas vulneráveis. Agem como cartomantes, pais de santo,
líderes messiânicos”, afirma Oliveira-Souza. Psicopatas não tão fanáticos, mas
com a mesma falta de escrúpulos, também estão em grandes empresas, sugando
dinheiro e tornando a vida dos colegas um inferno.
A habilidade para mentir despudoradamente sem
levantar suspeitas faz com que eles se dêem bem já nas entrevistas de emprego. O charme que
eles simulam ajuda a conquistar a confiança dos chefes e a pressionar para que
colegas que atrapalham sua ascensão profissional acabem demitidos. Não raro,
costumam ocupar os cargos hierárquicos mais altos.
Sociopatas corporativos são responsáveis por
escândalos como o da Enron, em 2002, quando a empresa americana mentiu sobre
seus lucros para bombar preços de ações.
O que fazer?
Seja nas empresas, nas ruas, nossos amigos
com transtorno anti-social são tecnicamente incapazes de frear seus impulsos
sacanas. Mas, para os psiquiatras, essa limitação não significa que eles não
devam ser responsabilizados pelo que fazem. “Psicopatas têm plena consciência de que
seus atos não são corretos”, afirma Hare. “Apenas não dão muita importância
para isso.” Se cometem crimes, então, devem ir para a cadeia como os outros
criminosos.
Só que até depois de presos psicopatas causam
mais dores de cabeça que a média dos criminosos. Na cadeia, tendem a se
transformar em líderes e agir no comando de rebeliões, por exemplo. “Mas nunca
aparecem. Eles sabem como manter suas fichas limpas e acabam saindo da prisão
mais cedo”, diz Antônio de Pádua Serafim.
Por conta disso, a psiquiatra forense Hilda
Morana foi a Brasília em 2004 tentar convencer deputados a criar prisões especiais para psicopatas. Conseguiu fazer a
idéia virar um projeto de lei, que não foi aprovado. Nas prisões brasileiras,
não há procedimento de diagnóstico de psicopatia para os presos que pedem
redução da pena. Tampouco há procedimentos para evitar que psicopatas entrem na
polícia – uma instituição teoricamente tão atraente para eles quanto as grandes
empresas. Também não há testes de psicopatia na hora de julgar se um preso pode
partir para um regime semi-aberto. Nas escolas, professores não estão
preparados para reconhecer jovens com o transtorno.
Também não existem tratamentos comprovados nem remédios que façam
efeito. Outro problema: quando levados a consultórios, os
psicopatas acabam ficando piores. Eles adquirem o vocabulário dos especialistas
e se munem de desculpas para justificar seu comportamento quando for
necessário. Diante da falta de perspectiva de cura, quem convive com psicopatas
no dia-a-dia opta por vigiá-los o máximo possível.
Charme
Tem
facilidade em lidar com as palavras e convencer pessoas vulneráveis. Por isso,
torna-se líder com frequência. Seja na cadeia, seja em multinacionais.
Inteligência
O
QI costuma ser maior que o da média: alguns conseguem se passar por médico ou
advogado sem nunca ter acabado o colegial.
Ausência de culpa