No meio de um deserto aterrorizante no norte do Tibete, arqueólogos chineses escavaram um extraordinário cemitério. Os ocupantes morreram quase quatro mil anos atrás, mas seus corpos foram bem preservados pelo ar seco. O cemitério fica em território hoje pertencente à província de Xinjiang, noroeste da China, mas os restos encontrados são de pessoas com traços europeus, cabelos castanhos e narizes longos.
Embora sepultados em um dos maiores desertos do mundo, os corpos foram enterrados em barcos posicionados de cabeça para baixo. E em lugar de lápides que declarem esperanças pias na mercê de um deus quanto a eles, o cemitério exibe uma vigorosa floresta de símbolos fálicos, sinalizando intenso interesse dos moradores locais quanto aos prazeres ou utilidade da procriação.
O povo há muito desaparecido não tem nome, porque sua origem e identidade ainda são desconhecidas. Mas estão surgindo muitas pistas sobre sua proveniência, modo de vida e até mesmo sobre o idioma que falava. Os sepulcros, conhecidos como Pequeno Cemitério Fluvial Número 5, ficam perto do leito seco de um rio na bacia de Tarim, região cercada por inóspitas cadeias de montanhas. A maior parte da bacia é ocupada pelo deserto de Taklimakan, uma terra tão árida que os viajantes posteriores da Estrada da Seda sempre optavam por contorná-lo ao norte ou ao sul.
A múmia de uma criança - um dos 200 corpos escavados do cemitério.Nos tempos modernos, a região foi ocupada pelos uigures, uma etnia de fala turca, e nos últimos 50 anos também recebeu migrantes da etnia chinesa dominante, os han. Recentemente surgiram tensões étnicas entre os dois grupos, com conflitos em Urumqi, a capital de Xinjiang. Grande número de antigas múmias – na verdade cadáveres ressecados- foram localizadas nas areias, e se tornaram mais um objeto de disputa entre os uigures e os han.
As cerca de 200 múmias encontradas têm aparência distintamente ocidental, e os uigures, mesmo que só tenham chegado à região no século 10, as alegam como prova de que a província sempre pertenceu a eles. Algumas das múmias, entre as quais uma mulher bem preservada conhecida como “a beldade de Loulan”, foram analistas por Li Jin, conhecido geneticista da Universidade Fudan que afirmou em 2008 que o ADN continha marcadores que apontavam para origens no leste ou até mesmo no sul da Ásia.
As múmias do cemitério são as mais antigas já encontradas na bacia de Tarim. Testes de carbono conduzidos pela Universidade de Pequim dataram as mais antigas delas de 3.980 anos atrás. Uma equipe de geneticistas chineses analisou o DNA das múmias.
A despeito das tensões políticas quanto à origem das múmias, os pesquisadores chineses afirmaram em relatório publicado no mês passado pela revista científica BMC Biology que o povo tinha origens mistas, com marcadores genéticos europeus e siberianos, e que provavelmente tinha vindo de fora da China. A equipe trabalhou sob o comando de Hui Zhou, da Universidade Jilin, em Changchou, e o relatório tinha Jin como co-autor.
Todos os homens que foram analisados portavam um cromossomo Y hoje mais comumente encontrado no leste da Europa, centro da Ásia e Sibéria, mas raramente na China. O DNA mitocôndrico, que é transmitido pela linhagem feminina, consistia de uma linhagem da Sibéria e duas comuns na Europa. Já que tanto o cromossomo Y quanto as linhagens de DNA mitocôndrico são antigas, o Dr. Zhu e sua equipe concluíram que as populações europeia e siberiana provavelmente já haviam começado a se combinar antes de chegar à bacia de Tarim, por volta de quatro mil anos atrás.
O cemitério foi redescoberto em 1934 pelo arqueólogo sueco Folke Bergman, mas passou 66 anos ignorado até que uma expedição chinesa voltou a localizá-lo, usando o GPS. Os arqueólogos começaram a escavar o sítio entre 2003 e 2005. Os relatórios dos pesquisadores foram traduzidos e resumidos por Victor Mair, professor de chinês na Universidade da Pensilvânia e especialista na pré-história da bacia de Tarim.
Enquanto os arqueólogos chineses escavavam as cinco camadas de túmulos, conta Mair, encontraram cerca de 200 estacas, cada qual com quatro metros de altura. Muitas tinham lâminas lisas, pintadas de vermelho e negro, como os remos de alguma grande galera que tivesse naufragado por sob as ondas de areia.
E por sob as estacas existiam de fato barcos, de cascos revestidos de couro animal e posicionados de cabeça para baixo. Os corpos que os barcos abrigavam ainda vestiam as roupas com que foram sepultados – toucas de feltro com penas enfeitando as abas, muito parecidas com chapéus montanheses do Tirol. As múmias portavam grandes mantos de lã com borlas, e botas de couro. Uma espécie de Victoria’s Secret da Idade do Bronze parece ter fornecido as roupas de baixo – tangas sumárias para os homens e saias feitas de fios soltos para as mulheres.
Dentro de cada barco usado como caixão haviam oferendas de sepultamento, entre as quais cestos de palha muito bem trançados, máscaras rituais entalhadas e ramos de efedra, uma erva que pode ter sido usada em rituais ou como medicamento.
Nos caixões femininos, os chineses arqueólogos encontraram um ou mais falos de madeira em tamanho natural, postados sobre ou ao lado dos corpos. Ao observar de novo o formato das estacas de quatro metros que se estendiam da proa dos barcos femininos, os arqueólogos chegaram à conclusão de que se tratava de gigantescos símbolos fálicos.
Os barcos dos homens todos estavam sob estacas em estilo remo. Mas na verdade não era essa sua função, concluíram os arqueólogos chineses: as peças no topo das estacas eram uma representação simbólica de vulvas femininas, o complemento dos símbolos encontrados nos barcos das mulheres. “O cemitério todo estava decorado com símbolos sexuais explícitos”, escreveu Mair. Em sua interpretação, a “obsessão com a procriação” refletia a importância que a comunidade atribuía à fertilidade.
Arthur Wolf, antropólogo da Universidade Stanford e especialista em fertilidade em culturas leste asiáticas, disse que as estacas talvez sirvam como marcos de status social, um tema comum nas tumbas e nas estátuas encontradas em cemitérios. “Ao que parece o que a maioria das pessoas deseja levar é o seu status, se esse status é motivo de orgulho”, disse.
Mair disse que a interpretação dos arqueólogos chineses que definiram as estacas como símbolos fálicos é “uma análise crível”. A evidente veneração das pessoas sepultadas no local pela procriação pode indicar que estavam interessadas tanto nos prazeres quanto na utilidade do sexo, se levarmos em conta que os dois são difíceis de separar. Mas parecia haver respeito especial pela fertilidade, disse Mair, porque muitas mulheres estavam enterradas em caixões duplos, com oferendas especiais de sepultamento.
Dada a vida em um ambiente hostil, “a mortalidade infantil deve ter sido muito grande, e a necessidade de procriar, especialmente devido à situação isolada em que viviam, muito intensa”, disse Mair. Outro possível risco para a fertilidade poderia ter surgido caso a população praticasse procriação consanguínea. “As mulheres capazes de gerar crianças e garantir sua sobrevivência até a idade adulta devem ter sido especialmente reverenciadas”, disse Mair.
Diversos dos itens identificados no cemitério se assemelham a artefatos ou costumes familiares na Europa, ele apontou. Barcos para sepultamento eram comuns entre os vikings. Saias de fios e símbolos fálicos também foram localizados em locais de sepultamento da era do bronze no norte da Europa.
Não há assentamentos populacionais conhecidos perto do cemitério, e portanto é provável que as pessoas vivessem a alguma distância e chegassem ao cemitério de barco. Não foram encontradas ferramentas para trabalho em madeira no local, o que sustenta a ideia de que as estacas tenham sido entalhadas em outro lugar.
A Bacia de Tarim já era bastante árida quanto os moradores responsáveis pelo cemitério chegaram, quatro mil anos atrás. Eles provavelmente viveram lutando arduamente para sobreviver até que os lagos e rios dos quais dependiam por fim secaram, por volta do ano 400. Sepultamentos acompanhados por objetos como chapéus de feltro e cestos de palha eram comuns na região até dois mil anos atrás.
Não se sabe que idioma os moradores da região falavam, mas Mair acredita que possa ter sido tocariano, uma antiga intrigante na família dos idiomas indoeuropeus. Manuscritos em tocariano foram localizados na bacia de Tarim, onde o idioma era falado entre os anos 500 e 900. A despeito de sua presença no leste, o tocariano parece mais aparentado aos idiomas “centum” da Europa que aos idiomas “satem” da Índia e Irã. A divisão se baseia nas palavra usadas para centena em latim (centum) e sânscrito (satam).
Os moradores da região já estavam presentes dois mil anos antes das primeiras provas quanto ao uso do tocariano, mas “existe uma clara continuidade de cultura”, disse Mair, comprovada pelo uso dos chapéus de feltro em sepultamentos, uma tradição preservada até os primeiros séculos depois de Cristo.
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