RESUMO
Este texto
procura mostrar a importância de se considerar o olhar do próprio surdo no
ensino de música para surdos. Alerta a que muitas abordagens na Educação
Musical desconsideram as marcas culturais surdas, dão a impressão de que se
está forçando o surdo a participar de algo que não leva em conta suas
características biológicas, que atenta contra sua identidade, que não considera
a cultura surda. Defende que o objetivo de ajudar o surdo a conhecer a
importância da música há que demandar um trabalho diferente daquele que se
realiza com os ouvintes. Defende ainda que os surdos têm o direito de passar
por experiências educacionais em grupos de surdos, constituindo estratégias de
identificação num processo sócio-histórico autêntico, não comandado. Conclui
que “conhecer música”
é um direito que os surdos
têm, mas que compete aos profissionais da área convencê-los, encantá-los,
atraí-los para a importância deste artefato cultural das comunidades ouvintes.
Palavras-Chave: educação musical, música, surdos.
OS SURDOS, A MÚSICA E A
EDUCAÇÃO
BA-BOO-MA-RANG-RANG-RANG.
BA-BOO-MA-RANG-RANG-RANG. É com uma tabuleta com estes dizeres que o professor
John Leeds (William Hurt) começa a tentar ensinar música para sua aluna surda
no filme Filhos do Silêncio, baseado na peça de Mark Medoff, que conta a
história de amor de Leeds, um professor de surdos, e a surda Sarah (Marlee
Maltin, que, por sinal, ganhou o Oscar de Melhor Atriz por este trabalho).
Leeds consegue um bom resultado, porque sai do mero “ensino de música” e
mistura música com dança e com percepção das vibrações. É emocionante a
tentativa que ele faz ao tentar explicar, por gestos, o que é a música, para sua
amada, que nunca ouviu.
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Professora da Universidade Federal do Amazonas – Faculdade de Educação –
Departamento de Teoria e Fundamentos. E-mail para contato: pranidia@gmail.com
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Outros tipos de
vivências com música para surdos são apresentados no filme “Adorável Professor”
(Mr. Hollan´s Opus - 1995), quando, o professor Glen
Holland (Richard Deyfruss –
também indicado para o Oscar de Melhor Ator neste trabalho) tenta fazer o seu
filho surdo vivenciar a música sentando em cima de uma caixa de som ou quando
ele tenta cantar a música "Beautiful Boy", de John Lennon, na
formatura de seu filho, numa escola de surdos, colocando recursos tecnológicos
de jogos de luzes para acompanhar a orquestra. Esta música escolhida, quando
diz
"life is what happens while you’re busy making other plans", ou seja, “a vida é o que acontece quando você está ocupado
fazendo outros planos”, serve para ilustrar a disparidade de sentimentos
envolvidos entre o sonho de ser um famoso músico e a realidade de haver sido um
“simples” professor de música e pai de um filho surdo.
Tenho assistido
muitas manifestações de insatisfação por parte de surdos adultos que, ao
analisarem a maneira como a inclusão da música é feita na
Educação de Surdos,
sentem-se agredidos pelo fato de que muitas abordagens dão a impressão de que
se está forçando o surdo a participar de algo que desconsideram as marcas
culturais surdas, dão a impressão de que se está forçando o surdo a participar
de algo que não leva em conta suas características biológicas, que atenta
contra sua identidade, que não considera a cultura surda e que é uma imposição
dos ouvintes. Estamos tratando de um território
contestado, logo, é necessário que alguns pressupostos sejam definidos,
para que se possa pensar em conseguir sucesso na relação do surdo com a música,
ou no objetivo pedagógico de utilizar a Educação Musical para auxiliar o surdo
a desenvolver-se como pessoa que reflete sobre todo o seu contexto social.
É muito
importante que sejam questionados os objetivos pedagógicos a serem perseguidos
com as atividades musicais para surdos: o que se pretende é oferecer aos surdos
o direito de conhecer este elemento cultural humano tão importante, ou, o que
se pretende é obrigar os surdos a participarem de algo que não faz sentido para
eles? Estamos tratando de uma oferta
ou de uma obrigatoriedade? De uma
troca ou de um pacote depositado?
Entendo que os
surdos podem ter acesso à música: de sua forma, de seu jeito próprio. Segundo
Helena Coelho,
o canto é uma forma de comunicação pelo toque. A energia enviada pelo
cantor por intermédio das vibrações sonoras de sua voz “toca” de forma
fisicamente mecânica o tímpano
do ouvinte. Mas não só o tímpano. Todo o
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corpo do cantor é uma fonte
sonora esférica e todo o corpo do ouvinte é um receptor sonoro imerso
no campo dessas vibrações. Assim sendo, falar/cantar e escutar é uma espécie de
“toque absoluto” (Coelho, 1991).
Olhando por
este ângulo, é possível dizer que os surdos podem curtir este “toque”
proporcionado pela música. A experiência da surdez potencializa não apenas a
visão, mas todo o corpo do surdo, levando-o a experimentar as vibrações de
forma até mais intensa que os ouvintes.
Os surdos têm
opiniões sobre a música e suas expressões. Noutro trabalho, entrevistei um
surdo que disse:
Surdo nenhum ouve música ou gosta de corais... No coral de surdos tem
que prevalecer a expressividade do surdo na arte, não se trata de acompanhar o
som. Toda a cadência, toda a sequência não tem que ser conforme o som (Sá,
2002, p. 169).
Ora, os surdos não
estão alheios às expressões culturais características dos ouvintes: sabem que
elas existem e emitem opiniões sobre as mesmas. As dissonâncias que surgem
quando comunidades ouvintes e surdas se encontram é que, muitas vezes, os
ouvintes pensam que os surdos “devem” apreciar a música como eles apreciam e os
surdos pensam que os ouvintes estão encontrando mais uma forma de ressaltar sua
“falta” ou de fazer com que os surdos sejam como eles
(como se os ouvintes fossem o padrão).
É necessário,
então, entender que ser surdo é muito mais que não ouvir, que não falar, que
não cantar, que não tocar instrumento: esta perspectiva da “negatividade”
embaça a perspectiva da potencialidade. Ser surdo é experimentar uma forma
diferenciada de ser, a qual se baseia primordialmente nas experiências visuais
para a leitura do mundo. Em verdade, surdez é muito mais que privação
sensorial, muito mais que a experiência de uma falta.
Os surdos não
têm como única característica a surdez, por isto não podemos falar dos
surdos como uma totalidade, entretanto, podemos falar deles como um grupo sócio-cultural,
comunitário e plural. Logo, não podemos falar em
Educação Musical para
surdos pensando num surdo idealizado, pois os
surdos diferem muito entre si e os
diferentes graus de surdez, aliados às diferentes experiências familiares,
sociais e culturais, certamente diferenciarão os graus de interesse pela
música, ou pela Educação Musical, ou pelos instrumentos musicais.
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Há surdos que
odeiam música, mas há surdos que amam a música. Há surdos que entendem a
música, há surdos que nem querem entender a música. Há surdos que se emocionam
com a música, há surdos que se sentem indiferentes com a música. Há surdos que
têm maiores condições de deliciar-se com a música. Há surdos que jamais
passarão por uma experiência de sentir prazer na presença de alguma peça
musical. Tudo isto porque existem diferentes graus de surdez e diferentes
experiências sociais com a música: isto faz uma enorme diferença quanto aos
objetivos educacionais.
No entanto,
independentemente das diferenças que existem entre os surdos, a surdez impõe-se
como uma característica que ultrapassa as determinações de classe, de gênero,
de raça, fazendo com que se possa falar dos surdos como um grupo que
compartilha modos de existir e que, por causa desta característica ressaltante,
tendem a formar comunidades que compartilham experiências, interpretações,
significados e representações. Isto faz com que seja possível dizer que os surdos, de modo geral, não têm muito
interesse pela música, sabendo-se
que esta afirmação não envolve todos os surdos. Da mesma forma, se pode afirmar que os
surdos, de modo geral, têm muito interesse pela dança, sabendo-se, também, que esta afirmação não envolve todos os
surdos.
A possibilidade
de se pensar no “grupo dos surdos” leva-nos a verificar que “os surdos” têm que ser chamados a opinarem
sobre o tema, pois, muita contribuição se pode extrair das visões deles
próprios sobre a Educação Musical.
Deve-se, por exemplo,
perguntar: qual a visão dos surdos em geral, sobre a obediência aos comandos
dos ouvintes nas apresentações musicais de grupos de surdos que meramente
copiam o ouvinte-modelo que se põe a fazer sinais, acompanhando a música que os
ouvintes estão apreciando, e, muitas vezes, tendo que repetir refrões diversas
vezes? Quem são os surdos que se propõem a seguir estas sugestões dos ouvintes?
Ora, as imposições educacionais, políticas e clínico-patológicas sobre os
surdos os fazem distanciar-se daquilo que caracteriza as comunidades surdas politicamente
organizadas (em verdade, poucos sabem o que caracteriza as marcas culturais
surdas de existir e de conviver).
Questionando as estratégias
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Existem surdos
e surdos, mas, algumas características são comuns à maioria dos surdos:
utilizam prioritariamente a visão para captar as informações do meio; têm a
potencialidade natural para usar uma língua gesto-visual; estão constituindo
sua história na luta contra a opressão e a discriminação, dentre outras
características.
Estas
características reafirmam a necessidade
de estratégias educacionais
completamente diferentes das que são utilizadas para os ouvintes, não só na
Educação Musical, mas em todas as propostas educacionais.
Ajudar o surdo a apreciar a música e a conhecer a importância da música
nas sociedades humanas há que demandar um trabalho completamente diferente
daquele que se realiza com os ouvintes. Os objetivos e as estratégias pedagógicas serão outros, pois o
público é diferenciado.
Geralmente o
corriqueiro é se ver surdos incluídos em classes regulares, sendo convidados a
participar de aulas/atividades musicais junto aos demais alunos ouvintes,
conduzidos por professores ouvintes. Nestas atividades se trabalha o ritmo, mas
também a melodia, o timbre, a harmonia, é claro. Ora, o surdo não tem acesso
natural a estas dimensões da música, então, as estratégias para que eles venham
a entender a música devem ser muito bem planejadas.
Uma questão
importante é: acaso se pode resolver as questões que envolvem uma aula de
Educação Musical para surdos apenas com a presença de intérpretes de Língua de
Sinais (LIBRAS) nas salas de aula? Certamente que não.
O uso da Língua
de Sinais em sala de aula é algo conquistado recentemente no Brasil. A despeito
da luta pelo direito de ter um intérprete em sala de aula, deve-se saber que a
presença de um intérprete de LIBRAS não resolve todas as questões que envolvem
a educação deste grupo diferenciado cultural e lingüisticamente. As atividades de Educação Musical são um
exemplo de que a presença de
intérprete não é a única providência a ser tomada para que se alcance o êxito
escolar e o desenvolvimento de todas as potencialidades do aluno surdo.
Em verdade,
infelizmente, há ainda uma grande resistência em se usar educacionalmente a
língua natural dos surdos. Assim, é imprescindível que inicialmente se
questione se as propostas de Educação Musical para os surdos têm garantida a
presença da Língua de Sinais Brasileira ou se, além da dificuldade de
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acessar os conhecimentos
musicais o surdo ainda tem que vencer a dificuldade de acesso à língua do
professor ouvinte. A discussão passa pelo questionamento do uso de uma língua
anti-natural quando há uma língua natural disponível.
No entanto, é
necessário ampliar a discussão lingüística, pois ela sozinha não dá conta da
complexidade da questão. Outras questões surgem: com tais atividades se está
pretendo oferecer aos surdos um conhecimento a mais ou se está impondo modelos
ouvintes? O surdo “normalizado” é o
surdo que canta, é o surdo que toca,
é o surdo que fala? As propostas de Educação Musical acaso estão baseadas numa visão quase que “terapêutica”,
segundo a qual a música poderia funcionar como uma terapia para pessoas
deficientes, patológicas?
Quem é o
professor de Educação Musical para surdos? É o professor ouvinte monolíngüe que
tem como objetivo transformar o surdo em um “ouvinte de segunda categoria”? Ou
é um professor que está prevenido contra a supremacia da língua oficial na
escola, que conhece adequadas estratégias de ensino-aprendizagem, que enfatiza
as potencialidades dos surdos, que tem qualificação técnica para este trabalho
específico? A área da Educação Musical é pontual para se discutir estas
questões.
Por que querem
que o surdo aprenda música? Por que a Educação Musical faz parte de um
currículo para surdos?
Se as razões para este aprendizado não ficarem
muito claras para os professores, para os pais, e, principalmente, para os
surdos, continuaremos assistindo a uma resistência dos surdos para com tudo o
que diz respeito à música, o que poderá ser uma pena, pois o conhecimento
musical pode ser utilizado em prol do desenvolvimento dos surdos em inúmeras
áreas.
Apontando a necessidade de
mudanças
O que se tem a fazer é discutir as assimetrias
de poderes e saberes
(entre surdos e ouvintes,
entre surdos e surdos, entre ouvintes e ouvintes, entre grupos e grupos, entre
grupos e indivíduos) e discutir os efeitos sociais das representações,
imposições e expectativas que os professores, os pais e a sociedade têm sobre
os surdos e os efeitos individuais das imposições que lhes fazem. Estamos
falando de surdos aceitáveis para a sociedade dos que ouvem?
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Estamos vivendo
um tempo em que, infelizmente, é quase um paradigma a idéia de que os surdos
têm que ser incluídos em escolas regulares (a despeito da resistência que esta
idéia traz em alguns fóruns de discussão acadêmica e política).
Ora, por que não podemos pensar numa proposta para a Educação Musical de
surdos feita em espaços exclusivos, ou seja, tendo como alvo apenas os surdos –
seja na escola, seja na associação, seja em cursos, seja em oficinas? O que nos
impede de pensar em estratégias exclusivas para eles, estratégias que atendam
às suas necessidades de um trabalho eminentemente visual?
Na minha
opinião, o tema da inclusão escolar deve continuar debaixo de suspeitas, à luz
dos recursos lingüísticos, cognitivos, e sócio-culturais de que o surdo
necessita em seu período de escolarização. Penso que questionar a inclusão nas
aulas de Educação Musical é necessário, para que seja pensada e viabilizada uma
proposta de Educação Musical pautada em processos de aprendizagem
significativos, prazerosos e eficazes para este grupo específico, e não para
que consiga performances de canto ou de execução de instrumentos musicais, como
que para atestar o “heroísmo” de quem “venceu a deficiência” após um
treinamento exaustivo.
No meu
entender, as propostas de trabalho educacional específico para surdos facilitam
a formação da identidade surda e o aprimoramento cognitivo. Todo espaço onde
suas características distintas possam ser consideradas são espaços de vida
cultural. Ora, os surdos têm o direito
de passar por experiências educacionais
em grupos de surdos, caso assim o desejem, constituindo estratégias de
identificação num processo sócio-histórico autêntico, livre, particular, não
comandado; isto é plenamente possível (talvez não unicamente, mas primordialmente) em espaços que
respeitem sua condição sócio-lingüística e cultural.
Na realidade, a
questão central não é “em que espaço os surdos estão sendo educados”, mas,
quais são as reais oportunidades de aprendizado e quais as políticas de
significação e as oportunidades de participação que lhes estão disponíveis.
Defendo espaços
privilegiados pelo uso prioritário da Língua de Sinais na educação de surdos,
sim, mas não nego que, se a discussão se detiver apenas na luta pelo uso da
Língua de Sinais, outros determinantes fundamentais serão
apagados. Certamente o uso
da Língua de Sinais é um determinante fundamental, mas não é o único. O que
proponho não diz respeito a um enfrentamento entre
“língua oral X língua de
sinais”, ou a uma polarização “cultura ouvinte X cultura surda”, o que busco
diz respeito à discussão sobre as assimetrias do poder e do saber entre surdos
e ouvintes (SÁ, 2002).
O cuidado que se tem que tomar é que facilmente
o ensino da música pode se tornar uma marca do ouvintismo – imposições colonialistas
dos ouvintes sobre os surdos.
O texto de
Sérgio Lulkin retrata e comenta a “expressão cultural amordaçada” no caso dos
surdos:
O coral com surdos faz uma ponte entre a produção sonora – o canto, a
música, o som – e uma produção visual. A música e a letra passam pela
apreciação e seleção de um professor ouvinte que faz uma tradução para a língua
de sinais. (...). Os sinais são conduzidos por um maestro que ouve a canção,
assim como o público ouvinte, e vai regendo de acordo com a fonte sonora. (...)
Invariavelmente temos um professor (maestro) de costas para o público,
sinalizando para os alunos que seguem, automaticamente, seus movimentos. O maestro
sinaliza canções que jamais fazem parte do repertório lingüístico dos “cantores”.
Nem mesmo são memorizadas. (...) Se considerarmos as propostas pedagógicas
contemporâneas que defendem uma educação direcionada para a autonomia do
sujeito, para o uso da língua como construtora de um locus cultural, então os
procedimentos apresentados costumeiramente nas performances artísticas negam,
com evidência, os princípios que norteiam estas propostas.
Existem apresentações de corais (de pessoas surdas) que incorporam
aspectos do som como a pulsação, o ritmo, o movimento, a harmonia, e
transformam o sinal lingüístico, encontrando neles a metáfora, guardando parte
do sentido original e criando novos sentidos através dos códigos que se
estabelecem nos espetáculos. E passam a ser de uma percepção pública,
compartilhada; passam a constituir uma memória cultural.
Logo, poderíamos advogar pelo sentido cultural da escuta onde há o
aprendizado da língua de sinais e a disposição para leitura e produção das
linguagens do corpo (...) para o conhecimento que possa ser produzido
centralmente pelo paradigma da visão e a sua relação com uma observação crítica
permanente, chegando a uma denúncia da violência implícita dos processos
educativos para pessoas surdas, centrados no domínio da fala e da audição
(Lulkin, 1998, p. 48).
Daí se
depreende a facilidade com que as marcas culturais da surdez são mais
facilmente negadas que possibilitadas.
Não é demais
ressaltar o óbvio: os surdos não ouvem, logo, não experimentam a música da mesma
maneira que os ouvintes, tal como os ouvintes não têm uma percepção visual como
a têm os surdos. Sendo isto uma realidade, há que se pensar: que
especificidades deveriam ser respeitadas nas atividades de ensino da cultura
musical para surdos? Que argumentos justificariam fazer um
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trabalho de Educação
Musical tendo, juntos, surdos e ouvintes? Que cuidados deveriam ser tomados?
Por exemplo:
quando os surdos estão juntos, em eventos da comunidade surda, a maioria deles
não valoriza as apresentações de surdos que tocam instrumentos (alguns deles
até consideram deselegante um surdo querer se apresentar tocando instrumento
quando sabe que a maioria dos surdos não tem capacidade de apreciar o que está
sendo executado). É óbvio que eles mesmos precisam aprender a respeitar as
opções dos surdos que optam por aprender a tocar, e, eles têm que ter a clareza
de que alguns surdos, pelas características de sua surdez, conseguem apreciar a
música mais que outros! Ainda que não se trate de proibição, o aprendizado de instrumentos não deve ser
ressaltado para os
surdos em geral, visto que a ausência do sentido da audição torna esta atividade mecânica e muitas vezes sem sentido,
demandando um extenso treinamento para a obtenção de resultados ínfimos.
Não estou querendo
dizer que para entender a música é necessário ser ouvinte, e nem que a música é
um fenômeno que só pode ser experimentado pela audição, ou que a música não
lhes pertence, ou que não possam tocar instrumentos. Em verdade, diversos
surdos têm manifestações não apenas rítmicas, mas até melódico-vocais, sim. Há
surdos, mesmo com surdez profunda ou severa, que chegam a “cantar” as músicas
das quais decoraram a letra, principalmente quando estão sozinhos ou quando
estão num grupo que está cantando aquela melodia conhecida. Há surdos que criam
frases melódicas e se divertem com isto. Cantar,
tocar, conhecer e entender a música é um direito que os surdos têm, caso
assim o queiram.
A música é uma
forma de arte importantíssima dado o que representa para a história da
humanidade. Os surdos precisam compreender que ela sempre foi, e ainda é, usada
nas reuniões sociais, nos esportes, nas guerras, na busca espiritual, no lazer,
na manifestação de sentimentos, enfim, que sempre foi um poderoso instrumento
de comunicação. Se o surdo não receber nenhuma informação sobre a música,
perderá uma gama muito importante de informações sobre a sociedade, ou seja,
deixará de exercer o direito ao saber e perderá uma valiosa parte da cultura da
humanidade, mas, este fato não justifica que os ouvintes
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exerçam poder sobre as suas
vontades, constrangendo-os (Haguiara-Cervelline, 2003).
Nem todos os surdos podem usar resíduos
auditivos para apreciar a música, mas todos podem usar sua inteligência para
compreender a música.
As pessoas surdas podem
perceber o ritmo, a dinâmica da música, o timbre do cantor, as vibrações, mas
tudo isto tem que ser apresentado num contexto
significativo, não num contexto
mecânico, dificultoso, obrigatório.
Muito pode ser
feito pela junção de música e dança, de música e teatro. A música pode ser
muito útil nas manifestações culturais dos surdos, como o teatro, a mímica, o
humor (a maioria destas manifestações são também pensadas para os ouvintes
apreciarem, o que é natural, visto que vivemos numa sociedade de diferentes).
Os surdos devem entender que a música provoca (mais) emoções nos ouvintes, e
estas emoções podem ser entendidas pelos surdos.
No entanto, se
se vai usar a música como apoio para o alcance de outros objetivos, como a
melhora da fala, que isto seja dito ao surdo, para que ele não fique com a
impressão de que “aquilo” é tudo o que ele pode vivenciar sobre música. A
utilização mecânica da música em sessões de “terapias”, as meras apresentações
artísticas com instrumentos, minimizam as possibilidades de desenvolver o
interesse pela música. O princípio subjacente é: conhecer música é um direito que os surdos têm, mas compete aos profissionais da área atraí-los,
convencê-los, sensibilizá-los, encantá-los. Não se dá assim com toda a
Educação?
REFERÊNCIAS
Coelho, Helena de S.N.W.: Técnica Vocal para Coros. São Leopoldo,
Sinodal, 1991.
Haguiara-Cervelline, Nadir.
A musicalidade do surdo:
representação e estigma. São Paulo: Editora Plexus, 2003.
Lulkin, Sérgio. O discurso moderno na educação dos surdos:
práticas de controle do corpo e a expressão cultural amordaçada. In: SKLIAR,
Carlos. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação,
1998.
Sá, Nídia Regina. Cultura, poder e educação de surdos.
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2002.
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Sá, Nídia Regina. Cultura, poder e educação de surdos. São Paulo: Edições Paulinas,
2007.
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