Escravo e o Feitor. Imagem: Enciclopédia Delta Larousse 1967.
Para a historiografia sulina durante décadas o escravo africano inexistiu, sendo esse um consenso entre os historiadores a pouca importância que teria tido o escravo na formação do Rio Grande do Sul. Avaliavam ser o homem livre o fator preponderante na formação de nosso Estado.
Acreditavam que os escravos eram pouco utilizados, e quando se falava neles era para ressaltar que aqui, se houve escravismo, ele foi paternal, benigno. Pelo conceito vigente acreditavam que havia sido pequena a contribuição de sangue africano na etnia rio-grandense. Diante desses fatos cria-se então o difuso mito da Província libertária, obra do braço livre, inocente, ou quase, da pecha da escravidão. Mas os primeiros escritos sérios sobre o assunto irão provar o contrário. Participando do amplo movimento da década de 30, que reiniciará o estudo mais sistemático da “africanologia” brasileira, aparecerão os primeiros trabalhos do advogado Dante de Laytano que procurará, nos documentos, relatos e mapas estatísticos do século XVIII e XIX, o traço da passagem da escravidão pelo Rio Grande do Sul. Tece duras palavras sobre a benignidade do tratamento aos escravos, pois enquanto os negros estavam no pastoril do Rio Grande tiveram um tratamento mais humano, mas ao habitar a senzala dos granjeiros ou as charqueadas esse tratamento foi modificado pelas chicoteadas do feitor e pela barbárie escravagista.
Na verdade, a história do escravo no sul está, ainda, por escrever-se. Isso deve-se a resistência dos historiadores gaúchos a escrever a história como ela é, pois tornará pouco simpático os heróis aparecerem como senhores-de-escravos. Junta-se a esse problema a raridade das fontes históricas, pois muitas foram propositalmente destruídas. A saga do escravo no Rio Grande do Sul não deve ser esquecida, pois ali nas fétidas e úmidas senzalas das charqueadas, nos suicídios do escravo desesperado, no negro aquilombado, nas tentativas de fuga e insurreições está o passado do nosso povo.
No fim do século XVII, Portugal funda a Colônia de Sacramento e uma das mercadorias procuradas que mais chegavam à mesma colônia era o negro. Era um gigantesco mercado de mão-de-obra servil devido a sua posição geográfica que facilitava tanto o recebimento como a distribuição pela região. O comercio com o homem escravizado será uma realidade cotidiana na Colônia. Outra atividade importante para a Colônia de Sacramento além do contrabando era o couro, sebos carnes salgadas e os escravos africanos como citados anteriormente. A caça ao gado da Banda Oriental, pelo seu couro, será permanentemente, um dos pilares econômicos da Colônia. Conseguindo o couro, era ele secado e exportado para o Brasil, ou para o exterior.
Com a abertura do ciclo mineiro, com o descobrimento dos campos auríferos em Minas Gerais. As “vacarias” do sul serão agora valorizadas não somente pelo couro que se podia extrair. O gado vale como animal de carga, como fonte de suprimento.
Nos primeiros anos do novo século, começarão a descer, em direção ao sul, tropeiros vicentinos em busca do valorizado e abundante gado. Isso possibilita a fixação do homem: as primeiras “estâncias”, os primeiros povoados. A ocupação do sul, que vinha dando-se em função da Colônia de Sacramento, torna-se independente desta, toma uma razão em si. Mas isso não significa que a ocupação do Rio Grande do Sul tenha-se dado baseada essencialmente sobre o braço livre. Mesmo sendo obvio que a caça ao gado selvagem não se combinava com o trabalho compulsório. Os peões que trabalhavam na courama eram senhores de seus destinos, pois se encontravam com boas montarias e armados. Coisas que não se encaixavam com o homem escravizado. Alguns escravos que participavam dessas atividades transformavam-se em acompanhantes de seus senhores como guarda-costas e pajens. A escravidão era meramente jurídica.
A abundância de mão de obra para estas atividades estava relacionada com a dificuldade de obter terras e o orgulho impedia os colonos de competir com os escravos índios e negros pela agricultura, pois isso os faria manchar a honra espanhola. O negocio do gado era diferente. Era “Sport”, não trabalho. O mesmo era válido para o lusitano. Desse modelo social nasce o gaudério, changador ou gaúcho. Em regra homens de má índole, vagabundos e fugitivos. O gaúcho foi parte fundamental de nossa história que esqueceu do eterno presente : o escravo. Embora, até quase o início do século XIX não tivéssemos um regime social de produção escravista a presença do homem escravizado era constante e significativa. O nosso território começa a ser ocupado durante um período aonde a sociedade brasileira esta toda alicerçada sobre a exploração do trabalho servil. A posse de um escravo significava status social.
A presença do escravo em nossas primeiras estâncias e algo pouco estudado, mas seu papel importante esta presente na analise de mapas estatísticos da Capitania. A agricultura ocupará, também, nesses primeiros anos o braço escravo. Não o fará porém com exclusividade. O regime social de escravidão se estrutura com a expulsão dos espanhóis e a fundação da primeira charqueada, ao nível industrial, que teremos uma atividade produtiva de primeira ordem, baseada na exploração do trabalho escravo. Iniciando a introdução sistemática de escravos para a exploração na atividade produtiva.
O ato de charquear era uma pratica artesanal e o próprio peão podia preparar o couro e carneá-lo, estender as carnes. O começo da produção industrial de charque no Rio Grande do Sul deve-se as secas do final do século XVIII, no nordeste que até então era o produtor da carne seca. Desse modo o mercado do produtor; o Rio Grande do Sul o substituirá. O ciclo da charqueada inaugura a definitiva estruturação do escravismo como modo social de produção dominante de uma ampla região de nosso território. As conseqüências e determinação que isso trará para a nossa história não foram, ainda, nem mesmo delineadas.
Por mais de cem anos, a classe economicamente mais dinâmica viverá da exploração direta do trabalho escravo. Teremos então nossas senzalas, feitores, tronco, nossas “casas grandes” e nelas frente a frente, o senhor e o escravo. Pode-se dizer que o limite da jornada de trabalho na charqueada era a resistência física do escravo. A violência na charqueada era extrema, o escravo mau trabalhador era na maioria das vezes castigado e torturado. Era um nodo de coerção muito eficiente para os senhores das charqueadas.
Com a supressão “Legal” da entrada de novos escravos em 1850, pressionado pela marinha inglesa, o império começa efetivamente a reprimir o tráfico negreiro. Teremos porém ainda os desembarques clandestinos. O contrabando de escravos que desembarcaram em Montevidéu no Uruguai era comum até a abolição da escravatura no mesmo.
Outro problema a ser abordado pela historiografia era a origem dos escravos que chegavam ao Rio Grande do Sul, pois no máximo o que aparecia nos registros era o porto em que eram embarcados no continente africano. Para esboçar a origem e tradição histórico-cultural do afro-gaúcho seria necessário dois grandes processos. Identificar as correntes escravistas do continente africano e definir suas conexões com o nosso tráfico.
O escravo era ensinado a obedecer e acreditar na superioridade de seu senhor. Porém incessantemente, o escravo resistiu. Quando resiste e retoma das mãos do senhor sua vida, reassume sua essência, é homem. O ápice da resistência ao escravismo foi a insurreição mesmo rara e os quilombos, sociedades livres para homens livres. Eram insurgências sociais, coletivas. De modo individual o escravo, fazia corpo mole, fugia, a justiçava eu senhor e sua família, feitor e o suicídio como o limite máximo da busca por liberdade. O suicídio será uma constante na história do escravismo. As concepções religiosas africanas, a brutalização e desumanização a que era lançado, as duras condições de sua vida, tudo apontava ao suicídio como possível alternativa. Podia assumir esse ato proporções verdadeiramente endêmicas. O suicídio não era só um perda material, mas uma sansão moral.
A fuga de escravos para alcançar liberdade era comum, pois fugiam para aquilombar-se em um retirado ermo, para construir uma cabana afastada no campo, para procurar um novo senhor. No Rio Grande do Sul fugia em direção a fronteira castelhana, raia da liberdade. A fuga do escravo atravessará toda a história do escravismo gaúcho. A mais comum era a fuga para a constituição de “quilombos”. O escravo não só procurava conquistar sua liberdade através da fuga. São constantes, na documentação do Império, referências a insurreições ou tentativas de insurreições servis. As conspirações libertarias dos escravos gaúchos, no entanto,foram sempre reprimidas antes de eclodirem. E isso não era de estranhar devido a várias barreiras como: comunicação, línguas distintas, repressão e delação entre outras.
O envelhecimento da escravaria, a escassez crescente de braços servis, assim como outros fatores, obrigou aos senhores-de-escravos a procurarem outro tipo de trabalhador para suas fazendas, plantações, etc. A escravidão no Brasil, prolongou-se até o apodrecimento.
O apego constante dos historiadores gaúchos, em manter sob sua tutela a presença imaculada dos heróis de nosso estado tem impedido que a luz de fatos que construíram nossa sociedade atual venham a tona. Protegendo os heróis de receberem também o titulo de senhores de escravos, estão obstruindo o avanço do nosso encontro com nossas origens.
No decorrer do texto o autor demonstra uma clara preocupação em situar o leitor dentro do contexto internacional e nacional que levaram a escravatura no Rio Grande do Sul e de forma objetiva demonstra o uso do instrumento servil desde o inicio da colonização no Estado. A única mudança foi devido à maior necessidade de produção e capital com a vinda das charqueadas. Com as charqueadas os escravos começaram a trabalhar como máquinas em uma linha de produção, sendo cobrados para trabalharem mais por muito pouco (custo-benefício). Para que desse modo seus senhores viesse a lucrar muito.
Podemos observar que o escravo era um objeto de uso para seus senhores, pois se ficasse desgastado (muito doentes e velhos) depois de muito trabalho eram substituídos como um maquinário obsoleto por um mais atual, no caso um negro mais jovem.
Mas pior que a escravidão é alguns historiadores terem o interesse de excluir esse evento dos anais da história de nosso Estado. Isso é como se mantivéssemos escravizados até hoje todos os escravos que aqui em nosso Estado chegaram e com sangue ajudaram a construir nossa economia e desenvolvimento.
Diante de todos os fatos presentes no texto fica clara a luta permanente do humano de pele negra procurando constantemente a liberdade, pois é um grito presente dentro da própria alma do individuo. Essa luta estava presente nas fugas mesmo que sem rumo, nos quilombos como uma luta organizada de estabelecer uma sociedade construída por eles e para eles, aonde fossem aceitos. Uma luta que levava a natureza de liberdade presente na alma humana ao extremo, de sentir-se em saída e como última saída à vingança contra seus algozes ou o suicídio baseado em suas crenças na esperança de retornar a sua terra.
A escravidão no Rio Grande do Sul é um exemplo para todo o Brasil e o mundo, um triste exemplo de que na atualidade homens são incapazes de curvar seus diplomas empoeirados há realidade dos fatos, é um exemplo de luta cultural entre o branco europeu imigrante que recebia todo respeito da sociedade e o negro escravo, à quem não sobrava nenhum pouco de respeito na sociedade.
Leandro Claudir
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DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sergius, (Orgs.). RS: Economia e
Política: O Escravo Africano no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed.
Mercado Aberto, 1979.
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