O nos resta após a morte, além de
poeira e ossos? O que nós nos tornamos depois que advém o inevitável fim? Uma
triste verdade a respeito da condição humana é que nossa existência é meramente
transitória. Do mais poderoso monarca, ao mais insignificante escravo, o
destino de todos é um só.
Mas isso não significa que, nossa
vivência não possa ser de alguma forma resgatada e compreendida pelas gerações
futuras. Para muitos, essa é a única forma de imortalidade: a memória, o
respeito e o interesse daqueles que nos sucedem.
Recentemente, arqueólogos trabalhando
em um antigo cemitério no Delta do Rio Falyron, próximo de Atenas,
capital da Grécia, fizeram uma descoberta ao mesmo tempo enigmática e
aterrorizante.
Oitenta esqueletos humanos foram
enterrados lado a lado em uma cova comum no que deveria ser uma grande terreno
baldio de solo pantanoso nos arredores da Cidade Estado. A
princípio não parece ser uma notícia muito importante, já que covas coletivas
eram algo corriqueiro no Mundo Antigo, frequentemente assolado por pragas,
pestes e massacres. Contudo, é o fato desses esqueletos terem sido colocados na
terra ainda usando grilhões de ferro que chama a atenção.
Os especialistas conjecturam que eles
podem ter sido vítimas de uma execução em massa, entre os séculos VIII e V
antes de Cristo. Contudo, não há como saber ao certo quem eles eram e porque
passaram por tão estranha modalidade de execução. A descoberta é única, e
constitui uma forma incomum de punição nas cidades estado da Grécia Antiga.
Arqueólogos supõem que o crime
praticado tenha sido de enorme gravidade para que eles enfrentassem um fim tão
incomum.
As vítimas aparentemente foram
escoltadas, puxando e arrastando suas correntes para uma área cerca de um
quilômetro e meio fora da cidade antiga. Lá eles foram perfilados lado a lado e
atingidos por um objeto contundente, supostamente uma clava ou bastão na
cabeça. Os crânios apresentam ferimentos condizentes com esse tipo de golpe,
mas há indícios que alguns tenham sido simplesmente atirados no buraco e
enterrados vivos, já que os ferimentos não teriam força suficiente para matar.
Alguns esqueletos estavam perfeitamente depositados na terra, com pernas e braços
dobrados, mas outros, indicavam terem de alguma forma resistido. Além disso,
eles parecem ter morrido ao mesmo tempo, o que reforça a teoria de uma execução
coletiva.
Um elemento no qual os pesquisadores
estão se concentrando é se certificar que os restos das correntes realmente não
se assemelham ao que era usado em escravos no período. A primeira suspeita dos
historiadores era que os homens poderiam ser escravos rebeldes, condenados à
morte por matarem seus senhores. Contudo, os primeiros exames apontaram para o
fato de todos os esqueletos, pertencerem a homens jovens e com boa saúde no
momento de sua execução. Uma condição que não se enquadra em uma descrição
típica de escravos ou servos - mesmo os gregos que eram significativamente mais
bem tratados.
As correntes restringiam os prisioneiros, sendo fixadas no pulso direito e no
tornozelo esquerdo de cada um deles. Nenhuma ossada pertencia a pessoas
"acostumadas a vestir" ferros de restrição e muito provavelmente não
se tratavam de trabalhadores rurais ou indivíduos envolvidos com atividade
marcial. Além disso, todos eram bastante jovens, tendo entre 16 e 27 anos
aproximadamente.
O contexto histórico, concede as
melhores pistas do motivo pelo qual a execução possa ter ocorrido naquela
região em especial. Stella Chryssoulaki, responsável pela escavação contou
a Reuters o seguinte:
"Este foi um período de grande instabilidade para a sociedade
ateniense, um período em que aristocratas e nobres estavam batalhando uns
contra os outros por poder e prestígio político. Ter uma opinião forte ou
defendê-la poderia ser algo extremamente perigoso nessa época."
Mais notável, o período em que o
cemitério foi usado, coincide com a Rebelião de Cílon em
meados de 632 a.C. O incidente, que é um dos primeiros acontecimentos datados
de forma confiável na História da Grécia, se refere a uma tentativa mal
sucedida de golpe tentado pelo aristocrata e campeão olímpico Cílon,
para derrubar de forma violenta a elite ateniense. Cílon aliado ao seu
sogro Teágenes, foi motivado pelas palavras do Oráculo de
Delfos que o aconselhou a tomar o Poder durante o Festival em Honra a
Zeus (as Olimpíadas), quando ele seria favorecido pelos Deuses do Olimpo.
A rebelião, entretanto, foi frustrada
pelos guardas da cidade e os envolvidos tiveram de buscar refúgio no Templo
de Atena dentro da Acrópole. Clamando por Santuário - a
proteção da Deusa Atena concedida pelos sacerdotes - as portas foram abertas a
eles e fechadas diante de seus perseguidores. Embora Cílon tenha escapado, um
número desconhecido de seus seguidores ficaram confinados no templo. Se estes
aceitassem se tornar religiosos, ficariam intocáveis.
Mégara, o tirano da cidade prometeu que se eles se entregassem poderiam
enfrentar um julgamento justo ao invés de serem imediatamente condenados à
morte. Os rebeldes aceitaram deixar o templo, mas apenas depois que uma corda
fosse atada a estátua de Atena e a um deles, representando uma lembrança de que
eles estavam sob efeito do Santuário. Ocorre que segundo os registros da época,
a corda se rompeu (ou foi cortada) e aqueles que os acusavam apontaram para o
fato como um indicador de que Atena não desejava mais protegê-los.
O destino dos rebeldes é historicamente
incerto, mas Heródoto e Trucidides, historiadores
que viveram na época afirmavam que eles teriam sido executados por Mégara,
ainda que não exista qualquer menção de como e onde se deu a execução.
Um aspecto fascinante da lenda diz que
Mégara e seus descendentes foram amaldiçoados por terem violado a Lei
do Santuário, executando aqueles que suplicavam o auxílio de Atena. Além de
ter sido banido de sua cidade, o tirano recebeu como punição um miasma ("mácula"),
que seria herdada por todos seus filhos e netos. O miasma era uma corrupção de
corpo e alma, uma mancha física e espiritual passada a todos que tivessem
contato com Mégara e os seus descendentes. Plutarco teria escrito
que o miasma do tirano e de seus filhos o compelia a andar nas sombras, longe
da luz do sol, incomodado pelo fogo, sempre doente e com frio. Ainda segundo as
lendas, ele não podia ser recebido em casa alguma, pelo temor de contaminação,
oque sugere que ele possa ter contraído alguma doença desfigurante.
Muito embora, Mégara tenha retomado o poder de Atenas anos mais tarde, a
maldição não foi anulada e ele governou por pouco tempo, sendo detestado por
todos, inclusive seus antigos aliados. Quando Mégara morreu, seus filhos foram
presos e executados, seus netos atirados ao mar para que a linhagem perecesse
com ele. Alguns, no entanto sobreviveram, e segundo as lendas teriam se aliado
aos Invasores Persas quando estes levaram seus exércitos até a
Grécia com propósito de conquista.
Seria possível que os esqueletos
acorrentados possam ser os restos dos homens que tentaram se rebelar?
Chryssoulaki espera descobrir:
"É possível que com testes de DNA possamos dizer de que região da
Grécia antiga vieram esses homens o que ajudaria a confirmar a hipótese de que
esses indivíduos poderiam ser parte da Rebelião de Cílon, uma tentativa de
tomada de poder que falhou".
Então, quem foram esses homens e o que
aconteceu com eles? O que fizeram para enfrentar um destino tão terrível?
Talvez eles tenham ousado um dia se
erguer contra um Tirano e tenham sofrido por isso. Seus ossos são o único
testemunho de que eles um dia ergueram suas vozes e seus punhos, talvez, se
hoje forem lembrados, eles possam garantir sua imortalidade.
Eu sei o que vocês estão
pensando:
(...) "o
miasma do tirano e de seus filhos o compelia a andar nas sombras, longe da luz
do sol, incomodado pelo fogo, sempre doente e com frio".
Nem preciso dizer o que isso parece, não é?
E mais, além da miasma, temos tantos elementos interessantes nessa estória,
salientando que a parte da descoberta dos ossos e dos registros históricos são verdadeiros,
o que nos faz imaginar como uma boa estória poderia ser montada ao redor disso
tudo.
Outro detalhe: Cílon, sim, em inglês é
"Cylon", e sim, é o mesmíssimo nome usado pela raça de
implacáveis máquinas inteligentes, vistas na série Battlestar Galactica.
O nome foi usado para designar essas máquinas e sua rebelião e tem tudo a ver
com a Rebelião histórica de Cílon.
Para quem achava que "Cilônio" fosse um termo genérico criado
por algum roteirista de série de TV, engana-se, alguém ali conhecia bem
História Clássica.