Desmon Doss
Fonte: http://www.adventistaseuropa.org/heroi-improvavel/,
Texto publicado originalmente em RevistaAdventista.com.br
Adaptado
em 02/042018
Origens
Desmond
Thomas Doss nasceu em Lynchburg, Virgínia, em 1919. Seu pai era carpinteiro e a
mãe trabalhava em uma fábrica de sapatos. Durante a infância de Doss, um quadro
ilustrado dos Dez Mandamentos, que ficava na sala da sua casa, mexeu muito com
ele. O que mais chamava a atenção de Doss era a cena de Caim, com um grande
pedaço de pau, matando Abel. Ao olhar a gravura, ele se perguntava muitas
vezes: “Como alguém pode fazer isso com o próprio irmão?” (veja mais no
documentário The Concientious Objector).
Quando
Doss ainda era criança, viu seu pai bêbado discutir com seu tio, e depois
buscar uma arma de fogo. A mãe de Desmond, prevendo uma tragédia, corajosamente
entrou no meio da briga, tomou a arma do marido e, antes que ele matasse o
próprio irmão, pediu que Doss levasse a arma para bem longe do pai. Ele correu
por dois quarteirões e, enquanto corria, decidiu que, a partir daquele momento,
nunca mais pegaria em uma arma. Aqueles foram os primeiros 200 metros do
restante de uma vida. Durante as grandes batalhas da II Guerra Mundial, Doss
correria muitas outras vezes desarmado em meio ao fogo cruzado, a fim de
salvar, enquanto outros matavam.
Carreira
militar
Em
1942, quando Doss se alistou no exército, a única arma que carregava era uma
Bíblia de bolso. Ele sofreu perseguição durante os treinamentos militares
devido a sua devoção à oração, por se recusar em pegar em armas, por não comer
carne e também por guardar o sábado (leia mais em Dictionary of Virginia
Biography). Algumas vezes, quando Doss se ajoelhava ao lado de sua cama para
orar, seus colegas de exército atiravam sapatos nele. Um oficial ameaçou
levá-lo para a corte marcial e até tentaram dispensá-lo do exército, sob a
alegação de que ele tinha problemas mentais.
A
insistência de Doss em não tocar em armas deixou irados muitos companheiros do
campo de treinamento. Como publicou o site do jornal Los Angeles Times, um
soldado chegou a dizer: “Doss, quando estivermos no campo de batalha, eu mesmo
irei atirar em você!”
Atos
heroicos
Mas,
na linha de frente da guerra, tudo mudou. Como médico da 77ª Divisão de
Infantaria, da 307ª Infantaria do exército americano nas batalhas do Pacífico,
Doss conquistou rapidamente o respeito de seus companheiros. Combate após
combate, ação após ação, havia sempre alguma história sobre Desmond T. Doss, o
médico que, mesmo sob risco de morte, recusava-se a abandonar soldados feridos.
Doss segurando uma Bíblia
Mesmo
em meio ao clima infernal da guerra, Doss conseguia manter a coragem,
resgatando soldados sob fogo inimigo, chuva torrencial e lama. Pela constante
bravura, em Guam, em 1944, e nas Filipinas, entre 1944 e 1945, ele recebeu duas
estrelas de bronze (Conscientious Objector, Medical-Aid Man, Awarded Medal of
Honor, Review and Herald, 1º de novembro de 1945, p. 2).
A
batalha de Okinawa
O
paramédico americano era o homem mais odiado pelos soldados japoneses de
Okinawa. Para um soldado nipônico, matar um médico significava destruir a
esperança do exército inimigo, porque se um soldado fosse ferido, não haveria
mais ninguém para cuidar dele. Todos os médicos americanos que estavam naquela
ilha portavam armas, menos Desmond Doss, segundo lembrou o jornal The
Telegraph, em reportagem publicada recentemente. No lugar de uma pistola, ele
carregava um Bíblia de bolso. Quando não estava cuidando dos feridos, Doss lia
as Escrituras. Os textos da Bíblia que lhe traziam coragem eram Apocalipse 3:10
e Salmo 91. Na sua experiência de guerra, literalmente “mil caíram ao seu lado,
e dez mil à sua direita, mas ele não foi atingido”, pelo menos não mortalmente
(Heroes Have Backgrounds, The Youth’s Instructor, 3 de julho de 1945, p. 13).
Entre
29 de abril e 21 de maio de 1945, Desmond Doss cuidou dos soldados de Okinawa,
atendendo, em algumas ocasiões, até mesmo soldados inimigos. Com determinação
inflexível diante de condições desesperadamente perigosas, Doss avançou
inúmeras vezes através das linhas japonesas e trouxe os homens feridos para
áreas seguras (Conscientious Objector, Medical-Aid Man, Awarded Medal of
Honor,Review and Herald, 1º de novembro de 1945, p. 2).
Até
o último homem
Local por onde Doss, após salvar desceu 75 de seus colegas feridos.
Em 5
de maio de 1945, a unidade militar da qual Desmond Doss fazia parte, recebeu a
missão de capturar a Escarpa Maeda, uma parede de 120 metros que cercava a
frente da ilha de Okinawa e que servia de quartel-general para os militares
japoneses. Através de escadas feitas de cordas, a companhia de 155 soldados
chegou sem dificuldades até o lugar mais alto do penhasco. Mas era uma
armadilha. Os japoneses conseguiram emboscar 100 soldados americanos.
Depois
de uma luta terrível, o comandante da companhia deu ordem para que, aqueles que
pudessem, abandonassem o cume da serra. Assim, eles recuaram para a base. Todos
os que podiam fugiram, mas Doss decidiu ficar porque sabia que muitos soldados
estavam gravemente feridos. Na parte de baixo ele foi procurado por vinte
minutos, então alguém gritou e apontou para a serra. Doss era o único homem que
permanecia de pé no alto da Escarpa Maeda. Ele gritava para que os homens que
estavam na base recebessem os feridos que ele descia delicadamente através de
cordas até as mãos de amigos (There’s a War to Be Won, 1997, p. 480).
Por
cerca de doze horas, e totalmente desarmado, Desmond Doss enfrentou
metralhadoras, rifles e morteiros japoneses, descendo soldado após soldado, até
o último homem, para a base americana do penhasco. Como apoio, usou apenas um
toco e uma corda. Durante esse tempo, o único pensamento de Doss era uma
oração: “Senhor, ajude-me a salvar mais um. Apenas mais um!” O resgate
aconteceu num sábado.
Usando
uma arma, uma única vez
No
dia 21 de maio, em um ataque noturno, Doss permaneceu exposto em campo aberto
enquanto os demais soldados de sua companhia fugiram. Mesmo sob o risco de ser
confundido com um soldado japonês infiltrado, ele cuidou dos feridos, até que a
explosão de uma granada feriu gravemente suas pernas. Em vez de chamar outro
médico para tirá-lo da zona de batalha, ele mesmo cuidou de seus ferimentos e
esperou cinco horas até que os maqueiros o encontrassem e o levassem para uma
área segura. O trio foi surpreendido por um ataque de tanque japonês, e Doss,
vendo um homem com ferimentos mais graves próximo a ele, arrastou-se para fora
da maca e pediu que os maqueiros cuidassem primeiro do outro homem.
Enquanto
esperava o retorno da maca, ele foi novamente atingido, dessa vez por um
franco-atirador, e sofreu uma fratura múltipla no braço esquerdo. Com
impressionante perseverança, ele atou a coronha de um rifle ao seu braço
quebrado para formar uma tala e, mesmo ferido, arrastou-se por quase 300 metros
até um local seguro, onde poderia ser ajudado (Conscientious Objector,
Medical-Aid Man, Awarded Medal of Honor, Review and Herald, 1º de novembro de
1945, p. 2). Esta foi a única vez em que ele usou uma arma.
O
resgate da Bíblia de Doss
Alguns
dias depois, num barco-hospital, próximo à costa da ilha de Okinawa, Desmond
procurou sua Bíblia no bolso da camisa, mas ela não estava mais lá. A Bíblia
que ele havia recebido como presente da esposa o manteve de pé durante os meses
de treinamento, quando ele era ridicularizado pelos colegas de acampamento. O mesmo
livro também lhe servira de conforto constantemente durante os meses de combate
em Guam, Leyte e Okinawa. Provavelmente o exemplar tivesse sido perdido em
algum lugar no cume do penhasco onde, com o uniforme encharcado de sangue, ele
salvou dezenas de soldados. Ele implorou: “Por favor, alguém diga para os meus
companheiros de batalha que eu perdi a minha Bíblia!”
Os
soldados, que antes criticavam o adventista do sétimo dia, receberam a mensagem
na ilha e voltaram para a Escarpa Maeda com uma nova missão: resgatar a bíblia
de Desmond Doss. Eles a encontraram, e enviaram pelo correio até a casa de Doss
(World War II Medal of Honor Recipients, 2010, p. 192).
Lições
a ser seguidas
Doss morreu em 2006, aos 87
anos de idade.
Para
Doss, a salvação vinha da oração a Deus. No fim de abril de 1945, antes que sua
unidade militar subisse um penhasco em Okinawa, ele pediu ao tenente da
companhia autorização para orar. Doss disse ao comandante: “A oração é a maior salvadora
de vidas. Não é melhor pararmos e orar?” As palavras de Doss fizeram com que o
tenente interrompesse toda a companhia militar, que estava à beira de um ataque
que parecia ser a morte certa. Naquele dia, a companhia B, da qual Doss fazia
parte, subiu pelo lado sul do penhasco e não houve nenhuma baixa, mas a
companhia A foi dizimada pelos japoneses (Conscience Honored, Signs of the
Times, 4 de dezembro de 1945, p. 2).
A
lei de Deus sempre estava no coração de Doss, ele chegou a dizer que, quando
criança, ao olhar para o quadro dos Dez Mandamentos, era como se Deus falasse
para ele: “Desmond, se você me ama, não matará ninguém.”
Outra
qualidade de Desmond Doss era sua humildade. Em novembro de 1945, ele recebeu a
Medalha de Honra do Congresso, a mais alta condecoração militar dos Estados
Unidos. Ainda assim, não se orgulhava do que fez, mas tinha orgulho de Deus
tê-lo usado para salvar muitas vidas. Ele dizia: “Eu não queria ser um herói.
Mas eu era como a mãe que corre para dentro de uma casa pegando fogo a fim de
resgatar seus filhos. No campo de batalha, eu era como a mãe que não abandona
seus filhos. Eu amava os meus amigos, e eles me amavam. O que eu fiz foi um serviço
de amor”, publicou o jornal The Washington Post, no dia 26 de março de 2006,
por ocasião da morte do herói adventista.
Foi
esse amor que fez de Doss um grande missionário no tempo e no lugar mais
improvável da história. Ele se tornou conhecido entre seus companheiros como o
anjo da misericórdia, e sua oração, que também deve ser a nossa, era: “Senhor,
ajude-me a salvar mais um. Apenas mais um!”
O Filme "Até o Último Homem"
Em
Até o Último Homem, Mel Gibson faz um
filme de conciliação. Numa época em que parece um tanto feio exaltar
personagens guerreiros, toma um herói de guerra que jamais segurou um fuzil em
suas mãos. E, no entanto, foi condecorado por seus feitos. A história baseia-se
em personagem real. E a produção está indicada em seis categorias do Oscar,
incluindo melhor filme, direção e ator (Andrew Garfield).
À
sua maneira, Gibson faz um filme intenso - e extenso. Ao longo de 2h20, somos
apresentados às origens do personagem Desmond Doss (Garfield), suas complexas
relações familiares e o momento em que conhece o amor de sua vida. Depois, há
Pearl Harbour e a pressão social para se alistar. Doss é religioso e jamais
consentiria em matar um ser humano, mesmo que lhe dissessem que esse é seu
inimigo e que, no contexto da guerra, a morte não é pecado. Em seguida, vem a
guerra propriamente dita. O campo de batalha, seus horrores, seus vilões, seus
heróis.
Doss
é um daqueles que se chamam nos Estados Unidos de um “objetores de
consciência”. Tem suas razões e elas dizem respeito tanto à fé religiosa quanto
à ética pessoal, planos que num religioso genuíno se confundem. Mas essas
razões não se sustentam em situação de guerra. Ou será que sim? Na mentalidade
militar, quem se recusa a fazer treinamento com seu fuzil não merece fazer
parte da corporação. Não é digno sequer ser olhado na cara. Não é ninguém. Doss
tentará sustentar sua posição e não ser obrigado a pedir baixa ou ser condenado
na Corte Marcial.
Não
se espere muita sutileza de Mel Gibson. E, no entanto, ele está num ambiente
propício a discutir alguns impasses morais. Descreve seu personagem como alguém
de muita personalidade, forte e firme, porém vivendo numa situação que, para os
outros, é de extrema contradição. Se despreza a guerra, por que motivo faz
questão de expor-se no campo de batalha?
Ora,
muita gente que nunca pegou numa espingardinha de chumbo fez parte da guerra.
Informantes e espiões fazem parte da guerra. Os cientistas que criaram a bomba
atômica contribuíram para a guerra e o genocídio. Enfermeiras que cuidavam dos
feridos fizeram parte da guerra. E médicos e paramédicos tinham sua função no
front, fundamental aliás - a de dar atendimento imediato aos atingidos por
projéteis ou estilhaços de granadas e bombas. São uma tropa de choque, por
assim dizer, da assistência médica. Aquela que vem antes dos hospitais e dos
cuidados mais elaborados. É a infantaria médica. E nela Doss queria atuar
porque se sentira pessoalmente insultado com o ataque a Pearl Harbour e não
queria permanecer no conforto de casa enquanto jovens como ele arriscavam a
pele do outro lado do mundo.
Há o
lado “psicológico” também. Gibson busca nas raízes familiares explicações para
a firmeza moral de Doss. A família é destroçada por um pai alcoólatra e
agressivo, Tom Doss (Hugo Weaving). No entanto, esse pai foi também um herói,
na 1.ª Guerra Mundial, na qual viu muitos dos seus amigos morrerem ao seu lado.
Um dos seus rituais é ir ao cemitério visitar as tumbas desses amigos, mortos
ainda na juventude. E, como ocorre com frequência aos sobreviventes, se
perguntava por que eles morreram e ele estava vivo? Em que instância se decidem
essas coisas? Ou é tudo acaso? Esse ex-militar atormentado não é pintado sem
algumas nuances. O sentimento de culpa é uma delas. E há mais: opressor por
natureza, e até mesmo sádico, ele terá papel importante num momento delicado da
vida do filho.
FLÁVIO
PEREIRA DA SILVA FILHO, mestre em Teologia Bíblica, é pastor e jornalista. Texto
publicado originalmente em RevistaAdventista.com.br
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