Os Apócrifos, edição luterana com notas. Imagem: http://cyberbrethren.com/2011/07/27/the-apocrypha-lutheran-edition-with-notes-a-tantalizing-tidbit-of-the-feast-to-come/.
O presente texto não tem por objetivo diminuir
de forma alguma a autoridade dos quatro Evangelhos
Canônicos aceito pela maior parte das Igrejas cristãs pelo mundo. Mas, sim mostrar uma visão
histórica e como tal uma análise firmada nesta de que estes livros que
foram colocados fora do Cânon principal do cristianismo possa nos ensinar mais
sobre aqueles que os escreveram e seus objetivos. É com essas bases que
apresento aos amigos Construtores um texto que visa ampliar nossa visão sobre essa
obra a muito envolvida em confrontos e diversas com bases teóricas. Não é fácil definir o que são “evangelhos
apócrifos”, bem como o que são escritos apócrifos em geral. Para simplificar a
tarefa, pode-se dizer: “apócrifos” designa
todos os textos que estão reunidos na coleção iniciada por Edgar Hennecke, e depois sob a curadoria de Wilhelm Schneemelcher, intitulada “Neutestamentliche Apokryphen”. Com essa definição do conceito,
porém, estaríamos presos num círculo fechado, uma vez que a escolha dos textos
para aquela coleção parte de uma determinada pré-compreensão do que seja “apócrifo”.
CHH
“A
todas as grandes mentes que deram seu sangue para que a Justiça se cumpra no
Universo.”
Maria Helena de Oliveira Tricca
Nas
edições até agora feitas dessa obra de referência, não houve mudança digna de
nota quanto a seu conteúdo. Na primeira edição (1904) e na segunda edição
(1924) constavam, por exemplo, os Padres Apostólicos: a primeira e a segunda Epístola de Clemente,
as Epístolas de
Inácio, de Policarpo, de Barnabé, a Didaché, o Pastor Hermas, Também nesse grupo de escritos
trata-se de um corpus artificialmente organizado, que deve seu título, “Padres Apostólicos”, a uma
edição do texto em 1672. A
partir da terceira edição (1959), gradativamente começam a serem considerados
entre os “Apócrifos do Novo Testamento”
os textos de Nag Hammadi. Alguns
textos eram acrescentados e depois tornavam a ser excluídos, tais como a Carta de Diogneto,
os Ditos de
Sextus (ambos somente na segunda
edição) e as Odes
de Salomão (na segunda e na terceira
edições).
Christoph Markschies, que iniciou
uma reedição da valiosa coleção, sugere que se fale de “apócrifos cristãos
antigos”. Com o termo “antigo” assinala-se a restrição à época da Igreja
antiga, pois, de fato, a redação dos apócrifos prolongou-se até a Idade Média e
a Idade Moderna, enquanto o termo “cristão” deve libertar o conceito de sua
fixação ao Novo Testamento. Se com isso todas as dificuldades quanto à
terminologia estão removidas, permanece uma questão em aberto. Além do mais, os
escritos de Nag Hammadi, entre os quais se encontra o tão considerado Evangelho
de Tomé, deverão ser excluídos da obra, para serem reunidos numa tradução
própria.
O termo “apócrifo”, para iniciar,
provém do grego (απόκρυφος). Significa literalmente, “oculto”, “escondido”, “secreto”.
Aplicado a textos do cristianismo primitivo, seu significado toma duas direções
que, apesar de suas oposições, se mantêm inter-relacionadas:
1) Com
o conceito “apócrifo” designam-se revelações
secretas, que não constam no conjunto das revelações geralmente
aceitas, mas que, para determinados grupos, têm relevância bem maior do que os
ensinamentos conhecidos e aceitos no ambiente eclesial. “Apócrifo” tem aqui um
tomo positivo, sem reservas; com o mesmo significado, o termo também está
presente em Clemente de Alexandria.
2) Em contrapartida,
os seguidores da Igreja Ortodoxa, defendendo um cânone escriturístico
claramente delimitado, tomam a designação “apócrifo” como sinônimo de “falsificação”,
“não-confiável”. No Decretum Gelasianum, uma lista canônica do século VI, o termo “apócrifo”
aparece de maneira estereotipada, em referência a um grande número de escritos,
com o significado equivalente a “herético”.
Nega-se qualquer base de autoridade ao acervo escriturístico assim
denominado.
Em ambas as
avaliações estabelece-se uma relação entre os escritos apócrifos e o cânone do
Novo Testamento, que em seus elementos básicos estava estabelecido em fins do
século III. Para uma parte dos assim chamados apócrifos, principalmente para os
mais tardios, um fator que levou à sua produção poderia ser assim descrito: tomando
como medida os escritos neotestamentários, tinha-se a intenção de
complementá-los, levar adiante o processo de produção escriturístico e preencher
supostas lacunas. Em parte pretendia-se também, diante deles, valorizar
interesses teológicos próprios, adaptando-se, por isso mesmo, aos seus grandes
gêneros literário: evangelhos, epístolas, atos de apóstolos, apocalipse.
Nesse modo
de ver, um aspecto, contudo, não recebe a devida consideração (e nesse aspecto
a definição de apócrifos, em Walter
Rebell, como concorrentes dos textos do Novo Testamento diz respeito
somente a uma parte do todo). Alguns textos, cronologicamente muito antigos,
por nós denominados apócrifos, só posteriormente se tornaram apócrifos (o que Dieter lührmann nos indica em sua obra).
Isso que dizer que eles, em sua origem, pertencem àquela corrente mais ampla de
produção literária do cristianismo primitivo preexistente ao processo de
canonização, e por isso mesmo nem sequer se medem com o cânone e nem têm a
intenção de por ele ser medidos.
Recentemente,
principalmente na pesquisa norte-americana (por exemplo, de Helmut Koester), mas não somente lá,
trabalha-se com a tese de que alguns textos “apócrifos” não só seriam tão
antigos, mas mesmo mais antigos ainda do que os escritos reunidos no Novo
Testamento, e, conforme a expressão consequente dessa posição, teria sido
utilizada pelos autores diretamente como fontes e possuiriam, por essa razão, importância
central para a reconstrução das origens históricas do cristianismo. Também
diante dessas posições avançadas, insustentáveis nessas suas formulações radicais,
é recomendável uma atitude de precaução. Caso contrário, correr-se-ia o risco
de substituir uma ideologia mais antiga, que estava convicta da supremacia do
cânone, por outra, mais recente, que favorece uma literatura (e um
cristianismo) “livre”, não canônica, não ortodoxa (por exemplo, John Dominic Crossan, no texto da capa
da obra coletiva organizada por J.
Millar, promete demasiado, afirmando: “tudo o que se precisa é fortalecer a
busca pelo Jesus histórico”). Juízos globais aqui estão fora de lugar. Antes,
em cada caso individual é necessário observar com a máxima atenção, para então
elaborar a hipótese adequada. Se a impressão geral então, mesmo assim, tender para
a posição mais antiga, ela não estará baseada numa intenção apologética. Esse
resultado terá sido alcançado bem mais pelo trabalho designado nos textos.
É necessário
apresentar uma guinda metodológica de certa importância. Na comparação entre
evangelhos “que se tornaram apócrifos” e evangelhos “que se tornaram canônicos”
é necessário observar com mais atenção um fenômeno que somente a pesquisa mais
recente constatou: o fenômeno da tradição “oral secundária”. Em muitos casos,
aos textos escritos subjazem tradições orais que, ao lado desses textos,
continuam a sua caminhada. Antes de tudo, porém, na Antiguidade, também
materiais colocados por escrito são muitas vezes transmitidos oralmente. No
caso dos evangelhos canônicos isso está claro – basta lembrar sua regular
leitura na liturgia. As narrativas dos evangelhos canônicos passam para uma
nova fase, isto é, para a tradição oral secundária, na qual novamente estão
abertas à livre transformação e, antes de qualquer coisa, à acomodação
harmonizadora das diversas versões. Por esse atalho, os evangelhos canônicos
também poderão ter exercido influência sobre a redação de textos apócrifos.
Na escolha
de textos, teremos que proceder de modo programático, sem ceder demasiado às
limitações provenientes dos problemas de definição e da situação das fontes.
Isso significa, primordialmente, que também devemos levar em conta trechos
escolhidos dos textos de Nag Hammadi.
Critérios para uma análise mais ou menos detida de um texto (ou também para
ignorá-lo) são idade, conteúdo, significado, grau de notoriedade e sua história
posterior. As visões de conjunto, em parte sumárias, poderão incentivar as
leitoras e os leitores e encetar ulteriores viagens de descobertas, num mundo
fascinante e em parte por demais desconhecido dos Evangelhos Apócrifos.
CHH
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Você quer saber mais?
KLAUCK, Hans-Josef.
Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
APÓCRIFOS
II: os proscritos da Bíblia/compilados por Maria Helena de Oliveira Tricca –
São Paulo: Editora Mercuryo, 1992.
APÓCRIFOS
III: os proscritos da Bíblia/ Tradução do alemão gótico por Ivo Martinazzo. Compilados
por Maria Helena de Oliveira Tricca – São Paulo: Editora Mercuryo, 1995.
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