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quarta-feira, 22 de julho de 2015

A formação das monarquias nacionais na Europa e a visão do outro: europeus e americanos.




Luis XIV da França.

As Monarquias Nacionais e o Estado Absolutista: A consolidação das monarquias nacionais assumiu formas diferentes em cada lugar da Europa ocidental. Na França, o poder do rei começou a se fortalecer na Baixa Idade Média (século X–XV), para se tornar absoluto na Idade Moderna (século XV-XVIII). Mas na Inglaterra não foi assim. Fortemente centralizado nos séculos XI e XII, o poder real se enfraqueceu progressivamente no final da Idade Média, transformando-se em uma monarquia com poderes limitados pela Magna Carta. No Sacro Império Romano-Germânico, na península Itálica (Itália) e na península Ibérica (Portugal e Espanha). O exercito perdeu seu caráter feudal por meio de novas leis reais ao qual permitiam ao rei convocar os homens livres (burgueses, artesãos e cavaleiros) para o exército. Por meio do capitalismo comercial, política mercantilista e o sistema colonial o Estado Absolutista, com seu soberano autocrático, não era um simples Estado de transição entre o Estado feudal e o Estado burguês que emergiria da Revolução Francesa em fins do século XVIII. Trata-se de um estado forte, centralizado e duradouro que tomou a forma de monarquia nacional. Com a ascensão das monarquias nacionais e os Estados Absolutistas as nações europeias começaram a organizar-se de forma mais estável. A partir do século XV a economia europeia conheceu um período de grande crescimento. Mas surgiu também um novo obstáculo a essa expansão, configurando uma crise de crescimento.

A expansão comercial e marítima europeia: uma das saídas encontradas para a superação da crise forma as Grandes Navegações. A partir do século XV, os europeus se lançaram à exploração de mares que pouco conheciam. Essa aventura permitiu a abertura de novas rotas para os mercados tradicionais do Oriente, além do encontro de novas fontes de metais preciosos para a cunhagem de moedas. Os pioneiros na expansão marítima foram os portugueses e os espanhóis, seguidos depois por ingleses, franceses e holandeses.

A visão do outro: europeus e americanos: no final do século XV, em 1492, os espanhóis aportaram em terras americanas e, em 1500, foi a vez dos portugueses. A partir daí, começou o processo de conquista e colonização do continente por povos da Europa. Nos anos seguintes, diversos deles, como os franceses, ingleses e holandeses, desembarcaram em terras americanas formando colônias e buscando riquezas. Dessa forma, em vários lugares do continente americano, no decorrer do século XVI, europeus foram se organizando e tomando posse de terras que já eram habitadas por comunidades com raízes culturais e hierárquicas há muito definidas. Esses povos estavam distribuídos em diferentes pontos do continente e organizavam-se em sociedades com características próprias, muitas delas altamente complexas, causando admiração aos recém-chegados. Entretanto, a colonização, para os europeus, sempre esteve relacionada à expansão territorial e comercial, o que, de certa forma, restringiu o conato entre eles e os nativos à obtenção de gêneros cuja extração ou produção gerasse o acúmulo de riquezas nos cofres europeus. Esse fato, somado à grande importância da religião na cultura europeia, contribuiu para que os costumes europeus fossem impostos em detrimento dos costumes nativos. Assim, primeiro, o contato entre europeus e povos nativos alterou os costumes vigentes nas terras encontradas e, apesar do menor impacto, mostrou aos conquistadores realidades e costumes diferentes dos conhecidos na Europa. Além da relação América-Europa, a colonização do novo continente alterou a realidade africana, com a implantação do sistema de trabalho escravista, que realocou milhares de africanos para supri a necessidade de mão de obra na América. As relações que se seguiram à chegada dos europeus com a chamada conquista da América (e também de outros continentes) foram de dominação, trocas culturais, assimilação e destruição de muitas das organizações sociais nativas. Nessa relação, a inexistência da noção de direitos humanos, somada à certeza dos europeus de que seu modo de vida e religião eram os corretos, além da intenção de explorar as novas terras, contribuíram para a desintegração quase completa de diversas culturas nativas. É possível afirmar que a colonização das Américas, assim como a que ocorreu em outros lugares no período, seguindo a lógica das expansões marítimas e comerciais, foi um processo marcado pelo etnocentrismo – europeus priorizavam suas crenças e objetivos comerciais, deixando de lado os costumes preestabelecidos pelos povos nativos.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Mitologia brasileira: será que você conhece os deuses?

Afinal, em povos tribais, a maior parte das explicações para fenômenos naturais era atribuída a entidades sobrenaturais, o que pode parecer ridículo, mas até hoje é aplicado: afinal, quem nunca pediu ajuda pra São Longuinho pra achar alguma coisa?

Tupã

Esse mítico deus dos trovões e tempestades brasileiro é uma versão tupiniquim do deus nórdico Thor, e, da mesma forma, era a explicação dos povos antigos para a raiva luminosa dos relâmpagos que iluminam o céu. Onipresente, também poderia ser uma analogia ao deus grego Zeus, já que é considerado o líder da cúpula divina da mitologia tupinambá.

Jaci
Essa deusa da lua e da noite seria a responsável pela magia e encanto na vida dos homens, e teria sido criada por Tupã para embelezar o mundo que havia criado. Irmã de Iara, a deusa dos lagos serenos, mais tarde Jaci acabou se tornando a própria esposa de Tupã.

Guaraci (ou Quaraci)
Uma representação indígena do deus Sol, é associado à pureza e verdade, assim como Brahma (hinduísmo) e Osíris (egípcio).

Yorixiriamori
Era um deus que encantava as mulheres com seu talento e beleza, e que por isso acabou virando alvo de ódio dos homens, transformando-se num pássaro para fugir. Essa história é contada no conto “A árvore cantante”, um clássico dos Ianomâmis.

Anhangá

O análogo a Hades e o Diabo, esse é o inimigo de Tupã e deus do “inferno”, e pode se transformar em vários animais diferentes. Quando alguém o vê, esse costuma ser um sinal de azar.

Ceuci
Deusa das lavouras, moradias e filha de Jurupari (que é o nome de um peixe brasileiro), nasceu dos frutos da árvore Purumã, que representa a morte e a vida para os Tupi-Guarani (como a Yggdrasil nórdica).

Akuanduba
Uma divindade dos índios araras, toca a sua flauta para dar sustentação e ordem ao mundo, representando a harmonia divina.

Wanadi
Deus dos iecuanas, faz parte de um mito no qual teria criado três seres vivos para habitar o mundo. Os dois primeiros, entretanto, teriam saído defeituosos, tornando-se os males do mundo, enquanto o terceiro teria nascido perfeito.

Yebá Bëló
Chamada de “mulher que apareceu do nada”, é citada como a responsável pela criação da humanidade segundo os Dessanas. De acordo com a lenda, teria moldado os homens e mulheres das folhas de coca que masca, chamadas de ipadu.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Por que existem poucos edifícios históricos e monumentos na África subsaariana!

Mansa Musa, foi o imperador do império de Mali do século XIV que cobria os atuais Mali, Senegal, Gâmbia, e Guiné.
O motivo é simples. Os europeus destruíram a maior parte. Só nos restam os desenhos e descrições de viajantes que visitaram os lugares antes das destruições. Em alguns lugares, ainda se podem ver ruínas. Muitas cidades foram abandonadas e viraram ruína quando os europeus trouxeram doenças exóticas (varíola e gripe) que começaram a se espalhar e matar gente. As ruínas dessas cidades ainda se encontram escondidas. De fato, a maior parte da história de África está ainda soterrada.

Neste artigo, vou compartilhar fragmentos de informação sobre África antes da chegada dos Europeus, as cidades destruídas e as lições que podemos aprender, enquanto africanos, para o futuro.

A coleta de fatos que dizem respeito ao estado das cidades africanas antes da sua destruição é feito por Robin Walker, um distinto pan-africanista e historiador, autor do livro ‘When We Ruled’ (Quando Governamos), e por PD Lawton, uma grande pan-africanista, que se prepara para lançar o livro “African Agenda” (A Agenda Africana).
Todas as citações e excertos neste artigo são dos livros de Robin Walker e PD Lawton. Recomendo comprar o livro de Walker ‘When We Ruled’ para uma história completa da beleza do continente antes da sua destruição. Pode obter mais informação sobre o trabalho de PD Lawton visitando o blog da autora: AfricanAgenda.net

Robin Walter e PD Lawton citam bastante outro grande pan-africanista, Walter Rodney que escreveu o livro ‘How Europe Underdeveloped Africa‘ (Como a Europa subdesenvolveu a África). Mais informações no canal YouTube ‘dogons2k12 : African Historical Ruins’, e no trabalho da Fundação Ta Neter Foundation.

Muitos desenhos são do livro African Cities and Towns Before the European Conquest (Cidades Africanas Antes da Conquista Europeia) de Richard W. Hull, publicado em 1976. Só esse livro destrói a visão estereotípica dos africanos vivendo em aglomerações simples, primitivas e dispersas sem qualquer apreciação por planejamento e design.

De fato, no final do século 13 quando um viajante europeu encontrou a grande Cidade de Benin na África Ocidental (atual Nigéria, Estado de Edo), ele escreveu o seguinte:
“A cidade parece ser muito grande. Quando entramos, vimos uma larga avenida, não pavimentada, que parece ser sete ou oito vezes mais larga que a rua Warmoes em Amsterdã… O palácio real é um conjunto de edifícios que ocupam tanto espaço quanto a cidade de Harlem, e que está rodeado de muralhas. Existem numerosos aposentos para os ministros do Príncipe e belas galerias, a maioria delas tão grandes quanto as da bolsa de Amsterdã. São suportadas por pilares de madeira revestidos de cobre, onde as suas vitórias estão representadas, e que são cuidadosamente mantidos. A cidade é composta de trinta ruas principais, bem retas e com 36 metros de largura, além de uma infinidade de pequenas ruas transversais. As casas são próximas umas das outras, bem organizadas. Este povo não tem nada de inferior aos holandeses em termos de limpeza; lavam e esfregam suas casas tão bem que elas estão bem polidas e brilham como cristal.”

Infelizmente, em 1897, a cidade de Benin foi destruída pelas forças britânicas sob as ordens do Almirante Harry Rawson. A cidade foi saqueada, explodida e queimada. Uma coleção dos famosos Bronzes de Benin está agora no Museu Britânico de Londres. Parte dos 700 bronzes roubados pelas tropas britânicas foram vendidos à Nigeria em 1972.
Outra história da grande cidade de Benin que diz respeito às suas muralhas: “Elas se estendem por um total de 16 000 quilômetros, num mosaico de mais de 500 junções de assentamento. Cobrem 6500 quilômetros quadrados e foram todas construídas pelo povo Edo. No total, elas são quatro vezes mais longas que a Grande Muralha da China e consumiram cem vezes mais materiais que a Grande Pirâmide de Quéops. Levaram cerca de 150 milhões de horas de escavação para serem construídas, e são talvez o maior fenômeno arqueológico do planeta.”
Vista da cidade de Benin em 1891 antes da conquista britânica. H. Ling Roth, Grande Benin, reprodução Barnes and Noble. 1968. 

 Sabia que no século 14, a cidade de Timbuktu na África ocidental era cinco vezes maior que a cidade de Londres, e a mais rica do mundo?

Hoje, Timbuktu é 236 vezes menor que Londres. Nada tem de cidade moderna. A sua população é metade que cinco séculos atrás, empobrecida com pedintes e vendedores de rua. A cidade é incapaz de conservar seus monumentos e arquivos do passado.
De volta ao século 14, os três lugares mais ricos da terra eram a China, o Irã/Iraque, e o império do Mali na África ocidental. Dos três, o único que ainda era independente e prospero era o império do Mali. A China e todo o Oriente Médio tinham sido conquistados pelas tropas mongóis de Genghis Kan que arrasou, pilhou e estuprou os lugares.
O homem mais rico na história da humanidade, Mansa Musa, foi o imperador do império de Mali do século 14 que cobria os atuais Mali, Senegal, Gâmbia, e Guiné.
Quando morreu em 1331, Mansa Musa valia o equivalente a 400 bilhões de dólares. Nessa época o império de Mali produzia mais de metade do abastecimento mundial de sal e de ouro.
Em baixo imagen do imperador Mansa Musa, o homem mais rico da história.


Quando Mansa Musa foi em peregrinação a Meca em 1324, levou e gastou tanto ouro, que o preço daquele metal caiu por 10 anos. 60 000 pessoas o acompanharam.
Foi fundador da biblioteca de Timbuktu, e os famosos manuscritos de Timbuktu que tratavam de todas as áreas de conhecimento foram escritos durante o seu reinado.
Testemunhas da grandeza do império do Mali vinham de todas as partes do globo. “Sergio Domian, um acadêmico de arte e arquitetura italiano, escreveu o seguinte sobre esse período: ‘Assim foi lançada a fundação da civilização urbana. Na época áurea do seu poder, Mali tinha pelo menos 400 cidades, e o interior do delta do rio Niger era densamente populoso.’

A cidade de Timbuktu no Mali tinha uma população de 115,000 no século 14 – 5 vezes mais que a Londres medieval.
O National Geographic descreveu recentemente Timbuktu como a Paris do mundo medieval, devido à sua cultura intelectual. De acordo com o Professor Henry Louis Gates, existiam na cidade 25,000 estudantes universitários.
“Muitas famílias antigas da África ocidental têm bibliotecas privadas com coleções de centenas de anos. As cidades mauritanas de Chinguetti e Oudane possuem um total de 3,450 livros medievais manuscritos. É possível que ainda existam cerca de 6,000 livros na cidade de Walata. Alguns datam do século oito. Existem 11,000 livros em coleções privadas no Niger.
Finalmente em Timbuktu, Mali, existem cerca de 700,000 livros que sobreviveram. Estão escritos em Mande, Suqi, Fulani, Timbuctu, e Sudani. Os conteúdos dos manuscritos incluem matemática, medicina, poesia, direito e astronomia. Este trabalho foi a primeira enciclopédia, no século 14, antes dos europeus terem a mesma ideia no século 18, 4 séculos depois.

Uma coleção de 1600 livros era considerada uma pequena biblioteca para um acadêmico da África ocidental no século 16. Existe registro do Professor Ahmed Baba de Timbuktu dizendo que possuía a menor biblioteca entre seus amigos – só tinha 1600 volumes.
Com respeito a estes velhos manuscritos, Michael Palin, na sua série de TV Sahara, disse que o Imam de Timbuktu “tem uma coleção de textos científicos que mostra claramente os planetas circulando em torno do Sol. Datam de centenas de anos . . . É prova convincente que os acadêmicos de Timbuktu sabiam mais que seus colegas europeus. No século 15 em Timbuktu os matemáticos conheciam a rotação dos planetas, detalhes do eclipse, coisas que tivemos de esperar 150 quase 200 anos para conhecer na Europa quando Galileu e Copérnico fizeram os mesmos cálculos e pagaram por isso.

A velha capital do Mali, capital de Niani possui um edifício do século 14 chamado Salão de Audiências. Sobreposto por uma cúpula e adornado de arabescos vivamente coloridos. As janelas do andar superior eram talhadas de madeira e emolduradas em prata; as do andar inferior eram talhadas de madeira e emolduradas em ouro.

Marinheiros do Mali chegaram às Américas em 1311, 181 anos antes de Colombo. O pesquisador egípcio Ibn Fadl Al-Umari, publicou o feito em cerca de 1342. No capitulo décimo do seu livro, existe um relato de duas grandes viagens marítimas ordenadas pelo predecessor de Mansa Musa, um rei que herdou o trono do Mali em 1312. Este rei marinheiro não é nomeado por Al-Umari, mas autores da atualidade identificam-no como Mansa Abubakari II.”

Esses acontecimentos aconteceram na mesma época que o continente europeu estava mergulhado nas trevas, destruído pela peste e pela fome, com seus povos se matando por motivos religiosos e étnicos.

domingo, 31 de maio de 2015

Fenomenologia


Franz Brentano, mestre de Husserl.

Fenomenologia (do grego phainesthai - aquilo que se apresenta ou que se mostra - e logos - explicação, estudo) afirma a importância dos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos – tudo que podemos saber do mundo resume-se a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na mente, cada um designado por uma palavra que representa a sua essência, sua "significação". Os objetos da Fenomenologia são dados absolutos apreendidos em intuição pura, com o propósito de descobrir estruturas essenciais dos atos (noesis) e as entidades objetivas que correspondem a elas (noema).

Edmund Husserl (1859-1938) - filósofo, matemático e lógico – é o fundador desse método de investigação filosófica e quem estabeleceu os principais conceitos e métodos que seriam amplamente usados pelos filósofos desta tradição. Ele, influenciado por Franz Brentano- seu mestre - lutou contra o historicismo e o psicologismo. Idealizou um recomeço para a filosofia como uma investigação subjetiva e rigorosa que se iniciaria com os estudos dos fenômenos, como estes aparentam à mente, para encontrar as verdades da razão. Suas investigações lógicas influenciaram até mesmo os filósofos e matemáticos da mais forte corrente oposta, o empirismo lógico. A Fenomenologia representou uma reação à eliminação da metafísica, pretensão de grande parte dos filósofos e cientistas do século XIX.

Husserl foi professor em Gotinga e Friburgo em Brisgóvia, e autor de “Ficar Sem Estudar" – 1906. Contrariamente a todas as tendências no mundo intelectual de sua época, quis que a filosofia tivesse as bases e condições de uma ciência rigorosa. Porém, como dar rigor ao raciocínio filosófico em relação a objetos tão variáveis como as coisas do mundo real?

O êxito do método científico está no estabelecimento de uma "verdade provisória" útil, que será verdade até que um fato novo mostre outra realidade. Para evitar que a verdade filosófica também fosse provisória Husserl propõe que ela deveria referir-se às coisas como se apresentam na experiência de consciência, estudadas em suas essências, em seus verdadeiros significados, de um modo livre de teorias e pressuposições, despidas dos acidentes próprios do mundo real, do mundo empírico objeto da ciência. Buscando restaurar a "lógica pura" e dar rigor à filosofia, argumenta a respeito do principio da contradição na Lógica.

No primeiro volume de “Investigações lógicas” - 1900-01, sob o título Prolegomena, Husserl lança sua crítica contra o Psicologismo. Segundo os psicologistas, o princípio de contradição seria a impossibilidade de o sistema associativo estar a associar e dissociar ao mesmo tempo. Significaria que o homem não pode pensar que A é "A" e ao mesmo tempo pensar que A é "não A". Husserl opõe-se a isto e diz que o sentido do princípio de contradição está em que, se A é "A", não pode ser "não A". Segundo ele, o princípio da contradição não se refere à possibilidade do pensar, mas à verdade daquilo que é pensado. Insistiu em que o princípio da contradição, e assim os demais princípios lógicos, têm validez objetiva, isto é, referem-se a alguma coisa como verdadeira ou falsa, independentemente de como a mente pensa ou o pensamento funciona.

Em seu artigo “Filosofia como ciência rigorosa" -1910-11- Husserl ataca o naturalismo e o historicismo. Objetou que o Historicismo implicava relativismo, e por esse motivo era incapaz de alcançar o rigor requerido por uma ciência genuína.

A redução Fenomenológica

 fenomenologia é o estudo da consciência e dos objetos da consciência. A redução fenomenológica, "epoche", é o processo pelo qual tudo que é informado pelos sentidos é mudado em uma experiência de consciência, em um fenômeno que consiste em se estar consciente de algo. Coisas, imagens, fantasias, atos, relações, pensamentos, eventos, memórias, sentimentos, etc. constituem nossas experiências de consciência.

Husserl propôs que no estudo das nossas vivências, dos nossos estados de consciência, dos objetos ideais, desse fenômeno que é estar consciente de algo, não devemos nos preocupar se ele corresponde ou não a objetos do mundo externo à nossa mente. O interesse para a Fenomenologia não é o mundo que existe, mas sim o modo como o conhecimento do mundo se realiza para cada pessoa. A redução fenomenológica requer a suspensão das atitudes, crenças, teorias, e colocar em suspenso o conhecimento das coisas do mundo exterior a fim de concentrar-se a pessoa exclusivamente na experiência em foco, porque esta é a realidade para ela.

O Noesis é o ato de perceber e o Noema é o objeto da percepção – esses são os dois pólos da experiência. A coisa como fenômeno de consciência (noema) é a coisa que importa, e refere-se à conclamação "às coisas em si mesmas" que fizera Husserl. "Redução fenomenológica" significa, portanto, restringir o conhecimento ao fenômeno da experiência de consciência, desconsiderar o mundo real, colocá-lo "entre parênteses", o que no jargão fenomenológico não quer dizer que o filósofo deva duvidar da existência do mundo como os idealistas radicais duvidam, mas se preocupar com o conhecimento do mundo na forma que se realiza e na visão do mundo que o indivíduo tem.

Consciência e Intencionalidade

Vivência (Erlebnis) é todo o ato psíquico; a Fenomenologia, ao envolver o estudo de todas as vivências, tem que englobar o estudo dos objetos das vivências, porque as vivências são intencionais e é nelas essencial a referência a um objeto. A consciência é caracterizada pela intencionalidade, porque ela é sempre a consciência de alguma coisa. Essa intencionalidade é a essência da consciência que é representada pelo significado, o nome pelo qual a consciência se dirige a cada objeto.

Em “A Psicologia de um ponto de vista empírico"- 1874 - Franz Brentano afirma: "Podemos assim definir os fenômenos psíquicos dizendo que eles são aqueles fenômenos os quais, precisamente por serem intencionais, contêm neles próprios um objeto". Isto equivale afirmar, como Husserl, que os objetos dos fenômenos psíquicos independem da existência de sua réplica exata no mundo real porque contêm o próprio objeto. A descrição de atos mentais, assim, envolve a descrição de seus objetos, mas somente como fenômenos e sem assumir ou afirmar sua existência no mundo empírico. O objeto não precisa de fato existir. Foi um uso novo do termo "intencionalidade" que antes se aplicava apenas ao direcionamento da vontade.

A Redução Eidética

Reconhecido o objeto ideal, o noema, o passo seguinte é sua “redução eidética”, redução à ideia. Consiste na análise do noema para encontrar sua essência. Isto porque não podemos nos livrar da subjetividade e ver as coisas em si mesmas, pois em toda experiência de consciência estão envolvidos o que é informado pelos sentidos e o modo como a mente enfoca aquilo que é informado. Portanto, dando-se conta dos objetos ideais, uma realidade criada na consciência não é suficiente - ao contrário: os vários atos da consciência precisam ser conhecidos nas suas essências, aquelas essências que a experiência de consciência de um indivíduo deverá ter em comum com experiências semelhantes nos outros.

A redução eidética é necessária para que a filosofia preencha os requisitos de uma ciência genuinamente rigorosa de claridade apodítica, a certeza absolutamente transparente e sem ambigüidade - requisitos antes mencionados por Descartes. Os objetos da ciência rigorosa têm que ser essências atemporais, cuja atemporalidade é garantida por sua idealidade, fora do mundo cambiável e transiente da ciência empírica.

Por exemplo, "um triângulo". Posso observar um triângulo maior, outro menor, outro de lados iguais, ou desiguais. Esses detalhes da observação - elementos empíricos - precisam ser deixados de lado a fim de encontrar a essência da ideia de triângulo - do objeto ideal que é o triângulo -, que é tratar-se de uma figura de três lados no mesmo plano. Essa redução à essência, ao triângulo como um objeto ideal, é a redução eidética.

A Intuição do Invariante

Não importa para a Fenomenologia como os sentidos são afetados pelo mundo real. Husserl distingue entre percepção e intuição. Alguém pode perceber e estar consciente de algo, porém sem intuir o seu significado. A intuição eidética é essencial para a redução eidética. Ela é o dar-se conta da essência, do significado do que foi percebido. O modo de apreender a essência, Wesensschau, é a intuição das essências e das estruturas essenciais. De comum, o homem forma uma multiplicidade de variações do que é dado. Porém, enquanto mantém a multiplicidade, o homem pode focalizar sua atenção naquilo que permanece imutável na multiplicidade, a essência - esse algo idêntico que continuamente se mantém durante o processo de variação, e que Husserl chamou "o Invariante".

No exemplo do triângulo, o "Invariante" do triângulo é aquilo que estará em todos os triângulos, e não vai variar de um triângulo para outro. A figura que tiver unicamente três lados em um mesmo plano, não será outra coisa, será um triângulo. Não podemos acreditar cegamente naquilo que o mundo nos oferece. No mundo, as essências estão acrescidas de acidentes enganosos. Por isso, é preciso fazer variar imaginariamente os pontos de vista sobre a essência para fazer aparecer o invariante.

O que importa não é a coisa existir ou não ou como ela existe no mundo, mas a maneira pela qual o conhecimento do mundo acontece como intuição, o ato pelo qual a pessoa apreende imediatamente o conhecimento de alguma coisa com que se depara – que também é um ato primordialmente dado sobre o qual todo o resto é para ser fundado. Husserl definiu a Fenomenologia em termos de um retorno à intuição, Anschauung, e a percepção da essência. Além do mais, a ênfase de Husserl sobre a intuição precisa ser entendida como uma refutação de qualquer abordagem meramente especulativa da filosofia. Sua abordagem é “concreta”, trata do fenômeno dos vários modos de consciência.

A Fenomenologia não restringe seus dados à faixa das experiências sensíveis, pois admite dados não sensíveis (categoriais) como as relações de valor, desde que se apresentem intuitivamente.

Redução Transcendental

Embora tenha trabalhado até o final de sua vida na definição do que chamou Redução Transcendental, Husserl não chegou a uma conclusão clara. Basicamente seria a redução fenomenológica aplicada ao próprio sujeito, que então se vê não como um ser real, empírico, mas como consciência pura, transcendental, geradora de todo significado.

Para o fenomenólogo, a função das palavras não é nomear tudo que nós vemos ou ouvimos, mas salientar os padrões recorrentes em nossa experiência. Identificam nossos dados dos sentidos atuais como sendo do mesmo grupo que outros que já tenhamos registrado antes. Uma palavra não descreve uma única experiência, mas um grupo ou um tipo de experiências; a palavra "mesa" descreve todos os vários dados dos sentidos que nós consultamos normalmente quanto às aparências ou às sensações de "mesa". Assim, tudo que o homem pensa, quer, ama ou teme, é intencional, isto é, refere-se a um desses universais (que são significados e, como tal, são fenômenos da consciência). E por sua vez, o conjunto dos fenômenos, o conjunto das significações, tem um significado maior, que abrange todos os outros, é o que a palavra "Mundo" significa.

Fenomenologia e Fenomenalismo
A fenomenologia não pode ser confundida com o Fenomenalismo, pois este não leva em conta a complexidade da estrutura intencional da consciência que o homem tem dos fenômenos. A Fenomenologia examina a relação entre a consciência e o Ser. Para o Fenomenalismo, tudo que existe são as sensações ou possibilidades permanentes de sensações, que é aquilo a que chamam fenômeno. O fenomenólogo, diferentemente do fenomenalista, precisa prestar atenção cuidadosa ao que ocorre nos atos da consciência, que são o que ele chama fenômeno.

Outros Pensadores

Max Scheler - um dos grandes expoentes da fenomenologia

Max Scheler

O mais original e dinâmico dos primeiros associados de Husserl, no entanto, foi Max Scheler (1874-1928), que havia integrado o grupo de Munique quem realizou seu principal trabalho fenomenológico com respeito a problemas do valor e da obrigação. Ampliou a idéia de intuição, colocando, ao lado de uma intuição intelectual, outra de caráter emocional, fundamento da apreensão do valor.

Heidegger

Discípulo de Husserl, Heidegger dedicou a ele sua obra fundamental " Ser e Tempo" -1927, mas logo surgiram diferenças entre ele e o mestre. Discutir e absorver os trabalhos de importantes filósofos na história da Metafísica era, para Heidegger, uma tarefa indispensável, enquanto Husserl repetidamente enfatizou a importância de um começo radicalmente novo para a filosofia, queria colocar "entre parênteses" a história do pensamento filosófico - com poucas exceções como Descartes, Locke, Hume e Kant.

Heidegger tomou seu caminho próprio, preocupado que a fenomenologia se dedicasse ao que está escondido na experiência do dia a dia. Ele tentou em “ Ser e tempo” descrever o que chamou de estrutura do cotidiano, ou "o estar no mundo", com tudo que isto implica quanto a projetos pessoais, relacionamento e papeis sociais, pois que tudo isto também são objetos ideais. Em sua crítica a Husserl, Heidegger salientou que ser lançado no mundo entre coisas e na contingência de realizar projetos é um tipo de intencionalidade muito mais fundamental que a intencionalidade de meramente contemplar ou pensar objetos. E é aquela intencionalidade mais fundamental a causa e a razão desta última.

Merleau-Ponty

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), outro importante representante do Existencialismo na França, foi ao mesmo tempo o mais importante fenomenólogo francês. Suas obras, “A Estrutura do comportamento” (1942) e “Fenomenologia da percepção” (1945), foram os mais originais desenvolvimentos e aplicações posteriores da Fenomenologia produzidos na França.

Em sua tentativa de aplicar a Fenomenologia ao exame da existência humana, como fez Heidegger, Sartre e outros autores franceses desenvolveram uma linguagem sofisticada, recheada de termos que caíram no gosto dos acadêmicos, mas se tornaram um obstáculo ao entendimento da doutrina inclusive entre os próprios intelectuais.

Sartre Jean-Paul Sartre (1905-1980)

Segue estritamente o pensamento de Husserl na análise da consciência em seus primeiros trabalhos, “A Imaginação” (1936) e “O Imaginário: Psicologia fenomenológica da imaginação” (1940), nos quais faz a distinção entre a consciência perceptual e a consciência imaginativa aplicando o conceito de intencionalidade de Husserl.

No seu “A Filosofia do Existencialismo”, de 1965, Sartre declara que "a subjetividade deve ser o ponto de partida" do pensamento existencialista, o que mostra que o existencialista é primeiramente um fenomenólogo. A negação de valores e o convite ao anarquismo implícitos na doutrina atraíram os pensadores de Esquerda e afastaram os conservadores de Direita.

A Fenomenologia e Outras Filosofias

O Empirismo

Galileu (1564-1642), é apontado como um dos fundadores do Empirismo pelo fato de aplicar aos objetos de estudo a experimentação, algo que possui seu limiar na atitude de Galileu em apontar sua luneta para o espaço, descobrindo posteriormente a não-existência das esferas celestes, tal qual determinavam as premissas de Aristóteles. Desta forma, Galileu lançou sua teoria com carência de provas (embora sua teoria fosse consistente e embasada no seu experimento) passando posteriormente por sessões da Inquisição Católica a fim de dirimir as dúvidas em relação ao sistema Aristotélico. A nova atitude naturalista de Galileu de dúvida e observação, inspirou Francis Bacon (1561-1626) a criar tábuas para o controle da experimentação e o estabelecimento de leis científicas, o que levou rapidamente o homem a novos conhecimentos no campo da astronomia, da química e da física. A mesma atitude de observação e interpretação natural levada ao estudo da mente e do conhecimento, deu origem à Corrente Empirista, que haveria de afetar profundamente a filosofia e criar o Positivismo, ou seja, o tratamento científico de todos os fatos e fenômenos, inclusive em Política.

John Locke

O filósofo empirista procurou no seu Essay Concerning Human Understanding (1690) demonstrar que todas as idéias são registros de impressões sensíveis (ou são derivadas de combinações, de associações entre essas idéias de origem sensível), e criticou o pensamento de Descartes (1596-1650) de que existiriam algumas idéias que seriam inatas - que o homem teria no espírito ao nascer -, como, por exemplo, a idéia de perfeição. Segundo John Locke, alguma coisa é enviada pelos objetos e é captada por nossos sentidos e dão causa à formação das idéias. Este pensamento é a base da teoria corpuscular da luz.

David Hume

Ainda mais contundente que seu predecessor, Locke, Hume negou o valor do raciocínio dedutivo e denunciou que a relação de causa e efeito não é suficiente como conhecimento, pois nada encontramos entre causa e efeito senão que um acidente costumeiramente se segue a outro. Estamos habituados a chamar o primeiro acidente de causa apenas porque ele sempre acontece antes do segundo que chamamos de efeito. Ou seja, um efeito não remonta necessariamente a sempre uma mesma causa. "O Sol nasce todos os dias", logo "O Sol nascerá amanhã". Segundo Hume, nada nos garante que NECESSARIAMENTE o sol nascerá amanhã. Entretanto, através do hábito, tomamos uma crença (belief) de que isso acontecerá.

Vozes na Tempestade (1931)



Plínio Salgado
Publicado originalmente no Portal A Quarta Humanidade.

A que misterioso ritmo obedece esse estranho rumor, a princípio vago e indistinto, já agora nítido e altissonante, que perpassa pela superfície da terra, dando a volta ao seu meridiano?

Que sentido profundo traz essa agitação geral dos povos, a tragédia surda dos espíritos, a angústia dos oprimidos e o sobressalto dos opressores?

As cidades cresceram para os céus. Os mares coalharam-se de naves de aço. O homem percorre a amplidão com asas de águia. A terra multiplicou as suas messes, as indústrias multiplicaram seus benefícios. Todos os confortos imagináveis se tornaram realidades banais. Todos os sonhos de beleza e de magnificência foram ultrapassados. E nunca o homem dominou mais os elementos, nunca imperou melhor sobre a natureza.

Rufam no espaço os motores; gritam as locomotivas; berram os automóveis; uivam os apitos das fábricas; estrondam as usinas; mugem os navios; sibilam polés; estridulam guindastes; cantam os rádios... É a sinfonia planetária...

O esplendor do homem

Todas as ambicionadas farturas a que a Antiguidade poderia ter aspirado centuplicaram-se de uma maneira assombrosa.

Os celeiros do velho Faraó, refertos para socorrer as populações da África e da Ásia, durante os sete anos de penúria, são ridículos em face dos "stocks" internacionais de trigo, de vinho, de café, de todas as mercadorias, capazes de abastecer duas vezes a Terra.


Acima desenho de H. Celi, em preto e braco, de 1935 (Fonte Arquivo Público do Paraná - PR).

O ouro de todos os impérios antigos não se compara ao ouro que a Civilização carregou para as arcas dos Bancos, dos recessos da América Meridional, das entranhas do Alasca e dos Estados Unidos, do subsolo da Ásia e da África.

A força dos animais e dos escravos, que arrastava colunas monolíticas e impelia no mar os quinhentos remos das galeras romanas, é hoje uma minúscula energia de formigas, comparada à potência das locomotivas e dos transatlânticos, dos dínamos propulsores das usinas.

A rapidez de raio das quadrigas do corso, não passa de um lerdo movimento de caranguejos, em proporção à velocidade da canção do Broadway, que se escuta no mesmo instante, no orbe inteiro, ou da luz com que Marconi ilumina do seu iate, em Gênova, a cidade antípoda de Sidnei, na Austrália.

As máquinas produzem por milhares de homens. A Civilização esplende nas suas grandes Metrópoles. Nunca a humanidade foi tão rica, nunca o gênero humano conheceu maior fartura.

A própria terra, rejuvenescida pelos adubos químicos, revolvida pelos tratores ágeis, plantada com a nova e milagrosa técnica, decuplica o volume das suas safras, mãe carinhosa dos homens, transformada em escrava de sua indústria.

O boneco de carne

E, entretanto, nunca houve desespero maior, nunca o ser humano mergulhou em confusão tão grande, tão desnorteadora.

Nas grandes babilônias cresce a legião dos desocupados; os vagabundos disputam um pedaço de pão; há criaturas sem teto, que dormem ao relento, ou na promiscuidade dos albergues; e o próprio trabalho já não é um prazer, mas um triste manobrar de manivelas e de alavancas, onde toda a iniciativa do espírito desapareceu.

Outrora, o trabalho tinha qualquer cousa de fino, de sutil, feito de amor e de entusiasmo, de esperança e de alegria íntima, criadora; e, agora, o homem sente-se, cada vez mais, submetido a um ritmo mecânico, que o vai transformando, dia a dia, numa peça do grande maquinismo da Produção.

Não amando mais o trabalho (e só se ama aquilo onde se realiza a fusão do espírito com as necessidades da matéria); vendo a "arte" ser substituída pela "técnica"; a feição individual anulada pela feição estandardizada; a tendência das vocações contrariada pelas possibilidades das colocações, — o homem moderno vai se tornando um autômato, um boneco de carne e osso, que será possivelmente substituído por um outro boneco de aço e ferro, quando o barateamento do custo da produção e a racionalização do trabalho, levada aos extremos que a técnica sugere, determinar que assim seja.

O animal do “oitavo dia”

A máquina moderna, criação do homem, para produzir confortos ao homem, torna-se uma concorrente deste.
Vede um tear, uma linotipo, uma rotativa, um motor, um calculador mecânico. Que estranhos seres! Parece que pensam, que raciocinam, que respondem numa linguagem que não é de palavras, mas de ação.

A máquina é um ente que tem, sobre o homem, a vantagem de não fazer greves, de não ter coração para amar nem boca para falar. E em se tratando de mercadorias similares (e tão similares que a Economia Clássica os submete às mesmas leis da oferta e da procura), é sempre preferível a que importunar menos e produzir mais, melhor e mais barato.

Nestas condições, o monstro de aço conquistou, mais do que a igualdade, a superioridade social sobre o homem.

A máquina não tem pais nem gera filhos; não vibra de afetos; não alimenta aspirações; não cultiva preconceitos. É, portanto, muito mais conveniente ao capitalismo universal.

E é por isso que esse capitalismo quer arrancar do homem os últimos resíduos espirituais, para que a massa proletária se transforme também num sistema de maquinismo...

O monstro de aço! Quando ele trabalha, suas rodas dentadas, suas engrenagens, suas serras parecem rir da criatura de Deus. E os apitos das fábricas parecem um grito dominador dizendo ao homem, quando rompe a aurora: "Levanta-te, peça de máquina!”.

Esse grito domina o panorama das cidades tentaculares, onde o homem sofre, esmagado pela própria civilização que ele criou.

Humanidade mecânica

O instinto da máquina vai avassalando tudo.

As casas mesmo começam a mecanização do homem, na forma rudimentar do “cortiço”, para depois se fixarem em expressões mais técnicas das vilas proletárias e dos arranha-céus de apartamentos.

É olhar uma casa e ver todas. Submetidas à mesma planta, à mesma fisionomia, elas impõem a cada ser humano um ritmo idêntico de movimentos, anulando a personalidade, para que triunfe a coletividade. Pois é sobre a coletividade que a máquina domina mais soberanamente. E ela exige que se modelem coletividades de formas geométricas precisas e cadências uniformes.

Essas coletividades devem ser estereotipadas à fome. Devem cristalizar-se nos fornos de todas as necessidades, de todas as angústias, que irão obrigando cada tipo isolado a se acomoda ao grande ritmo dos tipos comuns, cuja finalidade é o próprio ritmo, cujo sentido é a mecanização total da existência.

A redução ao inanimado. A racionalização desracionalizante. O homem-tipo, como a máquina-tipo. O trabalho mercadoria, como o quilowatt-hora. O índice de calorias dos combustíveis. O trabalho como finalidade do trabalho. A morte total do espírito.

A besta do Apocalipse

Todo esse inferno contemporâneo é presidido pela soma do trabalho acumulado pelos latrocínios, na tradução metálica das barras de ouro e na versão social do papel moeda, concentrados nas mãos de poucos. É o capital.

Tudo gira em tomo desse ídolo muito mais terrível do que o Moloch de Cartago, que exigia menor número de vítimas para as suas entranhas de fogo.


Por que sofre tanto a humanidade?

É o Capital, que marcha para a sua feição mais simples; que ensaia a sua tirania na forma dos grandes trustes, dos monopólios, dos grupos financeiros, das organizações bancárias, e que se dirige para o capitalismo do Estado, numa velocidade cada vez maior e mais enervadora.

É a besta apocalíptica.

Que se assenhoreou do poder dos reis e dos impérios; que proclamou sua tirania sobre todas as nações, sobre todos os grupos sociais e sobre todos os homens.

É o espirito da mentira e da crueldade. O dragão que devora os povos.

Ele ergueu-se, na face da terra, para enfrentar e negar Deus, como negou pela vez primeira quando rolou para as trevas eternas; que se levantou para esmagar o Homem, arrastando-o a todas as abjeções, para finalmente  arrancar-lhe o coração e deixar-lhe, apenas, os movimentos mecânicos da máquina.

Condenados e oprimidos

Cresce, por todo o Universo, o estranho rumor.

É o clamor do Homem que sofre, nas colônias remotas da Ásia e da África; na estepe da Sibéria, nos Urais e no Cáucaso, tangido por algozes; nas entranhas do Ruhr, de Cardiff, negro de hulha; nas profundezas das minas de diamantes do Transvaal, das cavernas de ouro do Morro Velho, da Califórnia; nos sertões do Brasil, nas salitreiras do Chile, nas galés das Guianas, nos bairros proletários das grandes metrópoles resplandecentes como Babilônias multiplicadas, por toda a superfície do planeta, e nos porões dos transatlânticos e das naves de guerra, armadas para os morticínios...

É o gemido do Homem, que já não tem trabalho porque a máquina o expulsou das fábricas; que não tem pão, porque, na fartura imensa, já não há necessidade do esforço do pária, e as leis vigorantes determinam que se tome a mercadoria-trabalho quando se precise, e se deixe morrer o trabalhador, quando não se necessitar dele.

O útero metálico da máquina

O Homem, vencido pela máquina, pensa, então, em criar o regime político que agrade à máquina. Pensa em viver em razão da máquina.

De há muito que a Democracia renegou os governos éticos, concebendo o Poder como uma expressão do "Homem Cívico", portanto, do Homem mutilado, do Homem sem alma. De há muito que se desprezou a teocracia.

Mas o Homem hoje volta-se para uma forma imprevista de teocracia. Quer ser governado pelos Sumos Sacerdotes do Ateísmo. Aceita a grande razão da técnica e do capital. Aceita desaparecer como gota de água no oceano do coletivismo, onde toda a personalidade se destrói.

É a mais moderna expressão mística.

O misticismo que nega uma face da metafísica, para proclamar o valor da outra face.

E que subordina o Homem a uma divindade infernal, que não se funda no amor, mas na ausência do amor. E nega ao Homem o direito de se interessar pelas outras criaturas, pois só deve cogitar de si.

De si, não como personalidade irradiante, e sim como fração de um grande Todo.

O Homem renega o amor, para aceitar o egoísmo.

O amor impunha-lhe deveres; o egoísmo subordina-o à escravidão dos instintos.

A vida do instinto é o primeiro passo para a transformação do ser humano em máquina.

Essa transformação é dolorosa, porque o espírito reage.

O Homem inventou a máquina. A máquina, agora, quer fabricar homens. E se um dia saírem homens das usinas, também os úteros das mulheres gerarão homens-máquinas, sem coração, sem afeto, meros aparelhos de produção...