por Marcelos de Carvalho Caldeira e Jacqueline de Cassia Pinheiro Lima
Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas, intitulada Entre a Utopia e a Realidade: A Arquitetura Moderna e a Era Vargas (1930-1945). Professor Marcelo de Carvalho Caldeira é Mestrando em Letras e Ciências Humanas da UNIGRANRIO; Diretor e Professor de História do Colégio Pedro II – Unidade Escolar Descentralizada Niterói. Jacqueline de Cassia Pinheiro Lima é Doutora em Ciências Sociais: Sociologia pelo IUPERJ; Mestre em História Social da Cultura, pela PUC-Rio. Coordenadora e Professora do Programa de Pós Graduação em Letras e Ciências Humanas da UNIGRANRIO.
Nossa intenção neste artigo é discutir a relação entre arquitetura, monumentalidade e autoritarismo durante a Era Vargas (1930-1945), especialmente no período do Estado Novo (1937-1945).
Naqueles anos ocorreu uma intensa disputa entre as correntes do pensamento arquitetônico: de um lado a arquitetura moderna, representando o novo em ascensão; de outro, a arquitetura acadêmica e neocolonial, representando o conservadorismo. Tudo isso em meio a um mercado crescente de obras públicas decorrente de uma intervenção estatal cada maior na economia.
Além disso, mostraremos como a influência positivista no pensamento de Getúlio Vargas influenciou não só suas ações nas esferas econômica e social, mas também nas escolhas dos projetos para os novos prédios públicos erguidos durante o período. O Estado patrocinava as obras, mas definia de forma autoritária o estilo que seria utilizado: a arquitetura moderna apresentava-se mais adequada aos monumentos que representariam o PROGRESSO, enquanto os outros estilos, especialmente o Art-Déco, mostravam-se mais adequados à mensagem da ORDEM.
OS MONUMENTOS DO PROGRESSO
O Ministério da Educação e Saúde
Vitoriosa a revolução de 1930, Getúlio Vargas organizou o novo governo e tomou uma série de medidas que apontavam seus grandes objetivos a longo prazo: tornar o Brasil um país moderno e industrializado, constituindo um capitalismo com forte componente nacionalista.
No entanto, para tal finalidade, o governo entendeu que duas pré-condições eram fundamentais. Em primeiro lugar, na ausência de capital privado forte o suficiente para levar à frente esse projeto, o Estado assumiria o papel de principal indutor do desenvolvimento. Para isso, o Estado deveria ser reinventado de forma que rompesse com os vícios do passado e administração pública passasse a ser norteada pela qualidade e eficiência tanto na sua estrutura como nos seus quadros funcionais.
Em segundo lugar, essa busca pela modernização deveria incluir a classe trabalhadora como agente e beneficiária desse processo. O governo entendeu que operários saudáveis, tecnicamente preparados e, seguros quanto ao futuro, com o amparo da legislação trabalhista, iriam aderir com entusiasmo às mudanças pelas quais o país passaria. Não por acaso, ainda em novembro de 1930, logo no início do governo, foram criados dois emblemáticos ministérios: o do Trabalho e o da Educação e Saúde (MES).
O trabalho e a indústria se complementariam representando o presente, o ponto de partida para o Brasil moderno. Porém, para esse projeto ter continuidade, era necessário cuidar da educação e da saúde das gerações futuras. Portanto, a educação e a saúde projetariam o futuro, a garantia da caminhada do progresso do país. Não por acaso, em seu discurso de posse no MES Francisco Campos afirmava “sanear e educar – eis o primeiro dever da Revolução”.
Inicialmente dirigido por Francisco Campos (1930-1932), o MES sem dúvida viveu sua fase mais ativa durante a gestão de Gustavo Capanema (1934-1945). A vinculação da educação com o progresso e o futuro, bem como a preocupação com o novo homem brasileiro que o Estado pretendia moldar fica explícita quando, em carta ao Presidente Vargas, Capanema afirma que “o Ministério da Educação e Saúde se destina a preparar, a compor, a aperfeiçoar o homem do Brasil. Ele é verdadeiramente o Ministério do Homem”.
Desde o início da Era Vargas, tanto o governo como alguns representantes da elite intelectual do país preocupavam-se com uma suposta inexistência de um sentimento de nacionalidade entre os brasileiros. Especialmente durante o Estado Novo, o governo empenhou-se em forjá-lo, acreditando que essa ação era parte integrante do projeto de desenvolvimento em curso no país. Além disso, o desenvolvimento econômico deveria caminhar ao lado do desenvolvimento intelectual do povo brasileiro. Portanto, o MES naqueles anos adquiria uma atenção e importância estratégica para o governo, atuando como “civilizador” da sociedade.
Se a tarefa educativa visava, mais do que a transmissão de conhecimentos, a formação de mentalidades, era natural que as atividades do ministério se ramificassem por muitas outras esferas, além da simples reforma do sistema escolar. Era necessário desenvolver a alta cultura do país, sua arte, sua música, suas letras; era necessário ter uma ação sobre os jovens e sobre as mulheres que garantisse o compromisso dos primeiros com os valores da nação que se construía, e o lugar das segundas na preservação de suas instituições básicas; era preciso, finalmente, impedir que a nacionalidade, ainda em fase tão incipiente de construção, fosse ameaçada por agentes abertos ou ocultos de outras culturas, outras ideologias e nações .
Ao entender o MES como instrumento fundamental para a formação do homem e da nacionalidade, da renovação e da vanguarda, Gustavo Capanema durante a sua gestão apoiou uma série de ações pedagógicas através da música, da educação física, cinema, rádio e habitação. Para isso, convidou para colaborar com órgãos do ministério intelectuais importantes que se projetavam naquele período, muitos deles claramente identificados com o modernismo.
Porém, para atingir objetivos tão ambiciosos, o ministério necessitava de uma nova sede, ampla o suficiente para centralizar todos os órgãos que estavam sob sua direção. O ministério, dessa forma, reproduziria a concepção de administração pública implantada durante a Era Vargas, especialmente após a instituição do Estado Novo: a centralização como instrumento da racionalidade, da eficiência e da modernização.
Inicialmente, a escolha do projeto seria feita através de concurso, cujo edital foi publicado em 23 de abril de 1935 no Diário Oficial da União e nos principais jornais da capital.
O concurso foi realizado em duas etapas. A primeira levaria em conta a adequação dos projetos às posturas municipais. As limitações impostas por elas levaram à desclassificação de 33 projetos, restando apenas três para a segunda e última etapa.
Em 1º de outubro de 1935 foi realizada a reunião para a escolha dos premiados no concurso. Ao final, o projeto vitorioso foi o de Archimedes Memória, planejando uma “sede misturando estilo neoclássico e elementos decorativos alusivos a uma fictícia civilização marajoara que teria existido durante a Antiguidade, na região norte do Brasil”.
Archimedes Memória era diretor da ENBA e membro da Câmara dos Quarenta, órgão máximo da Ação Integralista Brasileira. Seu projeto “marajoara” guardava coerência com o nacionalismo radical que constava dos princípios fundamentais daquela agremiação política.
Para Capanema, que desejava um prédio que representasse uma ação voltada para o futuro e a formação do novo homem brasileiro, o projeto vitorioso representava exatamente o contrário.
Ainda durante o concurso, ele já demonstrava sua insatisfação com os rumos que as escolhas caminhavam. Prova disso foi que, na penúltima reunião do júri, quando seriam classificados para a última etapa os anteprojetos que recebessem votação igual ou superior a três votos, foi devido ao voto de Capanema que o projeto de Gérson Pinheiro, único dos concorrentes que possuía - ainda que tímidas -, feições modernas, conseguiu ser classificado. Ao final, esse projeto ficou em terceiro lugar.
Decepcionado com resultado final, em 11 de fevereiro de 1936 Capanema enviou carta ao Presidente Vargas expondo sua opinião acerca da inadequação do projeto vitorioso e propondo a contratação de Lúcio Costa para a realização de um novo projeto.
Para conquistar o aval político, Capanema buscou argumentações técnicas para rejeitar o projeto vencedor, solicitando pareceres ao embaixador Maurício Nabuco, ao engenheiro Saturnino de Brito e ao inspetor de engenharia sanitária do MES, Domingos da Silva Cunha. Todos condenaram o projeto. Este último, em seu despacho, foi categórico:
Penso que o edifício projetado não deverá ser concluído se o governo quer, realmente, além de satisfazer perfeitamente às suas necessidades de administração, possuir uma notável obra de arquitetura, digna de nossa cultura artística.
Tanto Capanema como Domingos Cunha justificam suas opiniões com argumentando as necessidades administrativas, mas também a preocupação com a monumentalidade - “bela obra arquitetônica”; “notável obra de arquitetura”.
Todos os argumentos acabaram por convencer o presidente. Em 25 de março de 1936, Capanema convidou oficialmente Lúcio Costa para elaborar o novo projeto. Em seguida, este procede à formação de uma equipe composta por alguns dos representantes mais importantes da arquitetura moderna naquele tempo: Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcelos e Oscar Niemeyer.
Ao receber a notícia de que seu projeto não seria executado, Archimedes Memória reagiu de forma veemente através de uma carta enviada diretamente ao Presidente Getúlio Vargas. Destituído de qualquer embasamento técnico, Memória ataca a equipe convidada apelando com argumentos repletos de preconceitos:
O que acabamos de narrar tem, no presente momento, gravidade não pequena, em se sabendo que esse arquiteto é sócio do arquiteto Gregori Warchavchik, judeu russo de atitudes suspeitas ... Não ignora o Sr. ministro da Educação as atividades do arquiteto Lucio Costa, pois pessoalmente já mencionamos a S. Excia. vários nomes dos filiados ostensivos à corrente modernista que tem como centro o Club de Arte Moderna, célula comunista cujos principais objetivos são a agitação no meio artístico e a anulação de valores reais que não comungam no seu credo. Esses elementos deletérios se desenvolvem justamente à sombra do Ministério da Educação, onde têm como patrono e intransigente defensor o Sr. Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do ministro. Expondo aos olhos de V. Excia. esses fatos, esperamos que V. Excia., defendendo o Tesouro Nacional e a honorabilidade de vosso governo do país, alente a arte nacional que ora atravessa uma crise dolorosíssima, próxima do desfalecimento.
Em maio de 1936, Lucio Costa apresentou o primeiro resultado do trabalho ao ministro e sugere o convite ao arquiteto franco-suíço Le Corbusier para prestar consultoria ao grupo. Provavelmente acreditava que sua participação no projeto daria maior legitimidade trabalho. Capanema, então, convidou Lucio Costa para uma audiência com o Presidente da República para encaminharem a sugestão. Ao final da reunião, Vargas concordou com os argumentos e autorizou a contratação de Le Corbusier.
Após ser contactado e examinar o projeto, Corbusier aceitou com entusiasmo o convite, não só pela admiração que o trabalho lhe causou, mas também por encontrar nele uma oportunidade que era cada vez mais limitada na França durante o período entre - guerras, onde o campo da arquitetura era dominado pela tradicional Escola de Belas Artes, refratária à arquitetura moderna.
A consultoria de Le Corbusier, aliada à sólida formação técnica e intelectual do grupo, propiciou aos modernos a vitória em um longo embate iniciado em 1935, ano da realização do concurso de projetos para a nova sede do MES, e concluído em 1945, data da inauguração no prédio. A sede do MES havia se transformado em uma das principais arenas da disputa entre neocoloniais e modernos. Afinal, “tratava-se obra monumental, da sede do ministério encarregado de traçar as diretrizes ‘culturais’ da nação; o aval estético governamental é, portanto, disputado palmo a palmo”.
O debate girava em torno de três elementos: passado, vínculo com o Brasil e futuro. Cada corrente reivindicava para si a primazia sobre eles. Ao contrário dos modernos, os neocoloniais cultuavam a tradição colonial, de onde brotaria o futuro, que para eles é basicamente restaurador (e não inovador), como defendia José Marianno Filho:
A única estrada que nos conduzirá à verdade é a estrada do passado... A volta ao espírito tradicional da arte brasileira não significa uma homenagem fetichista ao passado esquecido, mas a volta ao bom senso... Qualquer monumento colonial representa um esforço muito maior do que as arapucas do cimento armado, diante das quais nos extasiamos.
Os modernos, pelo contrário, alegavam que a leitura neocolonial do passado era superficial, enquanto a arquitetura moderna estabelecia fortes ligações com os princípios estruturais da arquitetura colonial. Uma arquitetura que projetava o futuro, conciliando a tradição com a modernidade.
Apontavam semelhanças estruturais entre as casas “tradicionais” sobre estacas e o pilotis, a estrutura em madeira das casas coloniais era comparada ao esqueleto de concreto armado e relacionavam-se as grandes extensões caiadas da arquitetura “tradicional” à pureza do novo modo de construir. Dessa forma a arquitetura moderna brasileira, embora característica de condições técnicas e sociais novas, se proporia a reinterpretar, através de uma leitura estrutural e de técnicas de seu tempo, a tradição construtiva brasileira.
Os modernos venceram a disputa do MES, etapa fundamental para sua supremacia no campo arquitetônico, apresentando o argumento de que suas construções eram ao mesmo tempo inovadoras, nacionais e estruturalmente ligadas ao passado.
Após a vitória no campo das idéias, restava aos modernos provarem a funcionalidade do projeto, bem como a adequação de sua monumentalidade à imagem que o ministério deveria transmitir à população.
Em artigo publicado em 1935 na Revista da Diretoria de Engenharia, editada pelo Ministério da Educação e Saúde, Affonso Eduardo Reidy demonstra como as novas técnicas proporcionariam ao mesmo tempo funcionalidade e versatilidade:
Uma das maiores conquistas da técnica construtiva moderna é a estrutura livre, isto é, independente das paredes do edifício. A estrutura livre permite a standartização dos elementos estruturais e flexibilidade quanto à utilização dos espaços, de forma a que em qualquer época possam ser modificadas as divisões internas do edifício sem prejuízo para as boas condições de estabilidade e aspecto da edificação.
Testemunho importante dessa preocupação com a funcionalidade foi o de Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do Ministro, ao registrar seu primeiro dia de trabalho (22/07/1944) no gabinete da sede recém construída.
Dias de adaptação à luz intensa, natural, que substitui as lâmpadas acesas durante o dia; às divisões baixas de madeira, em lugar de paredes; aos móveis padronizados (antes obedeciam às fantasias dos diretores ou ao acaso dos fornecimentos). Novos hábitos são ensaiados...
Portanto, a luz natural, intensa em uma cidade tropical como o Rio de Janeiro, propiciaria a economia de energia. O mobiliário padronizado, sem luxos (fantasias) despersonalizaria a administração pública.
A monumentalidade foi preocupação dominante no projeto da sede do MES. A produção da obra monumental começa na própria ocupação do prédio, criando enorme praça com amplo espaço de circulação no centro do Rio de Janeiro, de forma a abrir espaço para a contemplação da obra. Tal efeito é obtido com a verticalização do prédio em 14 pavimentos e a utilização de amplo pilotis. O bloco do auditório, portaria e sala atravessa por baixo da estrutura vertical, fazendo com que o espaço entre as colunas, embaixo desse grande bloco, funcione como parte aberta do jardim público, utilizando espécimes da flora nacional, criado pelo paisagista Burle Marx. Os dois blocos transmitem uma representação de leveza, idealizados para parecerem desprovidos de peso ao sustentarem-se sobre o pilotis.
Mais uma vez podemos constatar a influência de Corbusier sobre a equipe brasileira, quando observamos a plena aplicação dos Cinco pontos da Nova Arquitetura, propostos pelo arquiteto franco-suíço no início de sua carreira em 1926.
1.Pilotis, liberando o edifício do solo e tornando público o uso deste espaço antes ocupado, permitindo inclusive a circulação de automóveis;
2.Terraço jardim, transformando as coberturas em terraços habitáveis, em contraposição aos telhados inclinados das construções tradicionais;
3.Planta livre, resultado direto da independência entre estruturas e vedações, possibilitando maior diversidade dos espaços internos, bem como mais flexibilidade na sua articulação;
4.Fachada livre, também permitida pela separação entre estrutura e vedação, possibilitando a máxima abertura das paredes externas em vidro, em contraposição às maciças alvenarias que outrora recebiam todos os esforços estruturais dos edifícios;
5.A janela em fita, ou fenêtre en longueur, também conseqüência da independência entre estrutura e vedações, se trata de aberturas longilíneas que cortam toda a extensão do edifício, permitindo iluminação mais uniforme e vistas panorâmicas do exterior.
Os objetivos da equipe dos arquitetos que projetaram o MES, vislumbrando um futuro otimista de progresso aliado à justiça social ficam evidentes na carta enviada por Lucio Costa a Gustavo Capanema, em outubro de 1945, ao ver a obra concluída. Segundo ele, foi efetivamente naquele edifício, onde:
... pela primeira vez, se conseguiu dar corpo, em obra de tamanho vulto, levada a cabo com esmero de acabamento e pureza integral de concepção, às idéias mestras porque, já faz um quarto de século, o gênio criador de Le Corbusier se vem batendo com a paixão, o destemor e a fé de um verdadeiro cruzado (...) Neste oásis circundado de pesados casarões de aspecto uniforme e enfadonho, viceja agora, irreal na sua limpidez cristalina, tão linda e pura flor - flor do espírito, prenúncio certo de que o mundo para o qual caminhamos inelutavelmente, poderá vir a ser, apesar das previsões agourentas do saudosismo reacionário, não somente mais humano e socialmente mais justo, senão, também, mais belo.
A Avenida Presidente Vargas
Quando iniciativas municipais relacionam-se a necessidades denunciadas pela população e a propostas discutidas, há muitas influências, muitos motivos, inclusive motivos acidentais. Mas quando a câmara municipal não representa a vontade popular (como em Paris, entre 1831 e 1871), como não pôr em primeiro plano as idéias de estética, de higiene, de estratégia urbana, de prática social de um indivíduo ou de poucos indivíduos no poder? Desse ponto de vista, a configuração atual de uma grande cidade será como a superposição da obra de certos partidos, de certas personalidades, de certos soberanos; assim, planos diversos se sobrepuseram, se misturaram, se ignoraram...
O projeto de abertura de uma grande avenida ligando a Ponte dos Marinheiros[22] ao Cais dos Mineiros já existia há muito tempo. Segundo LIMA (1992), a primeira idéia foi de Grandjean de Montigny, ainda no século XIX. Porém, apenas com a decretação do Estado Novo em 1937 e a nomeação de Henrique Dodsworth para o cargo de interventor na capital, o projeto finalmente foi executado.
Observando o contexto político e econômico podemos identificar dois fatores que contribuíram para a execução da obra.
Em primeiro lugar, a economia brasileira já se encontrava em plena expansão após se recuperar da crise decorrente da quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Para superá-la, na década de 1930 o Estado realizou uma intervenção crescente na economia, promovendo o desenvolvimento da indústria nacional. Dessa forma, sendo o Estado o grande agente investidor naquele modelo econômico, tornava-se necessária a criação e a expansão de diversos órgãos e repartições públicas, especialmente na capital. Por isso o centro da cidade do necessitavam se adequar à nova conjuntura vivida no país. Paralelamente, também se abriam novas oportunidades de negócios ao capital privado, especialmente no setor de serviços.
Em segundo lugar, com a decretação do Estado Novo, o governo não apenas aprofundaria a intervenção na economia, mas também teria plenos poderes para controlar a sociedade, especialmente os movimentos sociais e os meios de comunicação. Portanto, qualquer manifestação contra os atos do governo poderia ser abafada pela repressão, pela censura e pela propaganda oficial.
Iniciativas desse tipo, articulando desenvolvimento econômico e controle social, já tinham sido implementadas em outros países capitalistas desenvolvidos, e de certa forma, serviram de referências para outras intervenções no espaço urbano em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil.
É o que podemos constatar a partir da análise de Richard Sennettsobre a revolução urbana passada nas metrópoles de Londres e Paris na segunda metade do século XIX.
Segundo ele, a profunda reforma implantada nas duas cidades foi um dos reflexos do triunfo do capitalismo em sua fase monopolista, quando a Inglaterra e a França comandavam a corrida imperialista, impondo seu domínio sobre uma grande parte da África e da Ásia.
As intervenções na estrutura e na organização nas duas cidades fizeram com que o espaço urbano fosse recortado em grandes corredores, onde o deslocamento das pessoas da residência para o trabalho e vice-versa seria feito com rapidez crescente, atendendo não só as necessidades das atividades capitalistas em expansão – rendimento e produtividade -, mas também ao interesse do Estado em desarticular grupos sociais “ameaçadores à ordem”, mantendo-os sob controle e vigilância, lembrando que no mesmo período, o movimento operário mostrava-se melhor articulado para lutar por suas reivindicações, além de estar influenciado por ideologias que defendiam abertamente o fim do capitalismo, como o socialismo marxista e o anarquismo.
Uma das consequências da revolução urbana foi a desconexão entre as pessoas e o espaço. Assim, os indivíduos, cada vez mais dispersos e isolados, atentos apenas à rapidez do ir e vir teriam cada vez menos contato entre si, o que dificultaria a ação de grupos organizados ou a sua formação.
No Brasil, pensamento semelhante influenciou a elaboração do projeto de abertura da Avenida Central na gestão do prefeito Pereira Passos e mais ainda da Avenida Presidente Vargas, um dos objetos de nosso estudo.
Em 1938, o projeto foi apresentado com a denominação Avenida Dez de Novembro - aludindo à data do golpe que instituiu o Estado Novo – prevendo a eliminação de quadras inteiras para a sua realização.
A expectativa quanto às oportunidades de negócios pode ser observada quando foi decidido que o gabarito liberado para a construção de prédios era de 22 andares até a Rua da Quitanda. Dali até o mar o gabarito seria de 12 andares, prevendo nesse trecho uma grande praça em torno da Igreja Nossa Senhora da Candelária, o que aponta o interesse do governo em não encontrar oposição por parte da Igreja Católica.
A monumentalidade da obra e seu papel didático junto à população podem ser observados através do discurso enaltecedor a Getúlio Vargas realizado pelo prefeito Henrique Dodsworth durante a cerimônia de inauguração do primeiro trecho da avenida, não por acaso no dia 10 de novembro de 1941:
“Exmo. Sr. Presidente da República: É de tradição que os presidentes atravessem os eixos das avenidas rasgadas em benefício do progresso da cidade. Esta tradição esteve interrompida por mais de duas décadas e hoje V. Exa, retoma-a, percorrendo trecho inicial da avenida que menos um decreto do que a aclamação dos seus compatriotas denominou Av. Presidente Vargas.
Permita que V. Exa, que eu guarde desta cerimônia apenas lembranças de nela ter tido a honra de ser o intérprete do governo de V. Exa nos agradecimentos e louvores devidos aos operários de todas as categorias e ofícios dessa obra, que enaltece o valor da engenharia brasileira e do trabalhador nacional.
Exceção feita da maquinaria, tudo que aqui nos rodeia é brasileiro. Os projetos da nova urbanização da cidade são da autoria dessa maravilhosa floração de engenheiros que trabalham na Prefeitura e que alvorecem para as responsabilidades dos largos públicos, técnicos, escritórios, capital e mão-de-obra brasileiros.
Depois de quatro anos ininterruptos de atividades de restauração administrativa e financeira, a Prefeitura do Distrito Federal deu início a esse empreendimento. Não se trata de um espetáculo de aformosamento da cidade, mas de realização de um programa que procura resolver problemas econômicos de tráfego e do saneamento da cidade.
Convidando V. Exa Sr. Presidente, a percorrer o trecho inicial da avenida, solicito que V. Exa incorpore estas obras que, resolvendo os problemas apontados irão por igual transformar a Cidade Maravilhosa na Cidade das Maravilhas.”
Nota-se no discurso a preocupação do prefeito em destacar o nacionalismo, um dos principais traços da política econômica getulista, e em enaltecer os trabalhadores que participaram da obra, em sintonia com a ideologia trabalhista.
Ao mesmo tempo ele equipara em importância a obra com as reformas executadas durante a administração de Pereira Passos, afirmando que estava retomando uma tradição progressista interrompida por mais de duas décadas.
A construção da avenida representava, portanto, o progresso e o desenvolvimento, propiciando maior eficiência e dinamismo nas atividades econômicas praticadas no Centro da cidade, maior rapidez nos meios de transporte e na circulação das mercadorias.
Ao observarmos os prédios construídos ao longo da avenida, fica evidente a influência da arquitetura moderna. Edificações funcionais, sem grandes preocupações estéticas, onde os extensos pilotis se projetavam sobre as largas calçadas, facilitando o rápido deslocamento dos trabalhadores e dificultando as aglomerações, que na visão das autoridades, era um estímulo à “desordem”. Portanto, a avenida propiciava ao mesmo tempo melhor aproveitamento da força de trabalho, que perderia menos tempo para começar seu ofício, como também criava obstáculos para manifestações.
Cumpre ainda destacar que a avenida também traduzia outro aspecto importante do modelo político-econômico vigente. Da mesma forma que o Estado não tinha limites institucionais para intervir na economia e controlar a sociedade, também não haveria nenhum obstáculo ao progresso que não pudesse ser transposto por ele. Assim, diversos marcos importantes do contexto urbano-arquitetônico carioca foram sumariamente eliminados – o Paço Municipal e as Igrejas de São Pedro dos Clérigos, do Bom Jesus do Calvário, de São Domingos e de N. Sra. da Conceição - ou drasticamente alterados – Campo de Santana e Praça Onze.
Como assinala Evelyn Furquim Werneck Lima:
É típico dos governos autoritários o processo de demolição dos centros históricos, as inchações dos bairros periféricos, geralmente com o prejuízo das camadas sociais de menor poder aquisitivo, que perdem sua moradia e seu habitat natural. Isto ocorreu na Paris de Napoleão III, na Itália, na Alemanha, na Rússia na década de 1930 e acabou também ocorrendo no Rio de Janeiro durante o regime de exceção do Estado Novo.
A intervenção na Praça Onze é especialmente simbólica. Área de intenso comércio e grande diversidade social e cultural[28], com a ocorrência das famosas rodas de samba, especialmente as da casa da tia Ciata. Com o fortalecimento das instituições carnavalescas, a cultura da cidade cresceu também em vibração e prestígio popular.
A grande intervenção urbanística projetada na gestão de Henrique Dodsworth promoveu a demolição de quarteirões inteiros da Praça Onze, alterando substancialmente a paisagem local e empurrando seus moradores para outras localidades, como os morros próximos ao Centro ou os bairros do subúrbio, que cresciam às margens da Estrada de Ferro Central do Brasil. Era o símbolo do progresso (a larga avenida) e do trabalho se sobrepondo ao símbolo da cultura popular espontânea, associada pelas autoridades à desordem ou à malandragem.
O governo federal dessa forma realizava uma das mais profundas intervenções na capital, constituindo uma nova linguagem urbanística - de inspiração modernista –, racional, sem preocupações estéticas especiais, cuja monumentalidade buscava transmitir a imagem de um país que avançava em direção ao progresso.
OS MONUMENTOS DA ORDEM
A Avenida Presidente Vargas, como já assinalamos, foi projetada como um monumento ao progresso, associada ao desenvolvimento econômico e industrial que o Brasil passava naquele período da Era Vargas, especialmente o Estado Novo.
Idealizada como uma grande artéria, atravessaria uma região importante do centro do Rio de Janeiro, estabelecendo um entroncamento com outra grande artéria - a Avenida Rio Branco -, abrindo novas oportunidades de negócios e investimentos.
Quem percorre a avenida até os dias de hoje (local de bancos e escritórios públicos e particulares no trecho entre o Campo de Santana e a Candelária) observa o ritmo apressado das pessoas atravessando rapidamente a avenida. A arquitetura não transmite ou estabelece um diálogo com os transeuntes, que, circulando sob os largos pilotis, não têm como observar sequer a fachada dos prédios. A única preocupação é transpassá-la para chegar rapidamente ao trabalho.
Observamos que não existe nesse trecho nenhum ponto que facilite a aglomeração, vista pelas classes dominantes como um instrumento da desordem.
Porém, se nas edificações erguidas ao longo da avenida fica evidente a preocupação em garantir às pessoas o abrigo para um deslocamento rápido ao trabalho, por outro lado, foram criados na avenida alguns importantes símbolos arquiteturais do poder.
São esses símbolos, situados exatamente em um dos poucos pontos possíveis de aglomeração que foram erguidas edificações que, pela sua monumentalidade, transmitiam a quem passasse a mensagem da ordem, da disciplina e da hierarquia. Foi o caso do Palácio Duque de Caxias e o novo prédio da Central do Brasil.
Ao contrário do que ocorreu no edifício do MES, o estilo escolhido para a construção dessas duas obras foi o Art Déco.
Os edifícios projetados pela arquitetura Art Déco utilizavam o concreto armado e possuíam fachadas com rigor geométrico e ritmo linear, com fortes elementos decorativos em granito e mármore. No interior, as esculturas, jóias e móveis também são geometrizados, com ornamentos em bronze, mármore, prata marfim e outros materiais nobres.
Inúmeros projetos neste estilo foram aplicados a partir da década de 1930 no Brasil, como repartições públicas, cinemas, teatros e sedes de emissoras de rádio. Muitos desses edifícios existem até os dias de hoje e fazem parte da paisagem urbana de várias cidades brasileiras.
O Palácio Duque de Caxias
A construção do Palácio Duque de Caxias foi realizada entre 07/09/1937 e 28/08/1941, e sua ocupação definitiva foi concluída em 1944. Portanto, a obra coincidia tanto com o período do Estado Novo como com as obras de abertura da Avenida Presidente Vargas.
O projeto foi de Cristiano Stockler das Neves, arquiteto com escritório em São Paulo e com larga experiência com a construção de prédios em concreto armado, sendo autor do projeto do primeiro arranha-céu da capital paulista, o Edifício Sampaio Moreira, inaugurado em 1924. Designou-se uma comissão composta pelos engenheiros militares Major Raul de Albuquerque e Capitão Rubens Rousado Teixeira para executar a obra. Toda a estrutura de concreto foi calculada pela comissão. Portanto, a construção do edifício ficou todo o tempo supervisionada pelo Exército, que poderia providenciar as modificações ou adaptações que fossem consideradas necessárias.
A construção do edifício foi feita na área afastada vinte metros do antigo quartel, este demolido após a conclusão das obras da nova sede, como podemos observar na figura 26. As alas, respectivamente voltadas para a Praça Cristiano Otonni e para o Palácio Itamaraty, foram, no entanto, conservadas sem alteração.
Em termos de área construída, foi o maior edifício público administrativo de seu tempo, com 86 mil metros quadrados de área e 23 andares, destacando a monumentalidade do projeto. Seu imponente embasamento e pórtico de entrada foram executados em granito vermelho-escuro e preto. Com mármore oriundo do Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais, foram executados os pisos da ala principal.
A obra transmite robustez e estabilidade, impondo a quem passa uma sensação de submissão e obediência diante do monumento. Ela atemoriza quem se aproxima, se apresentando como um espaço hermético, inacessível a quem não faz parte da instituição.
O pavimento térreo, tal como um gigantesco rodapé, revestido em granito vermelho-escuro, aparenta uma barra de proteção, como se fosse uma área de transição entre os pavimentos superiores e os pedestres que circulam abaixo: o poder e o povo. Ao que tudo indica, o projeto também teve a preocupação de transmitir a disciplina do poder militar. A simetria entre o corpo central, destacando as alas laterais, parece associar à imagem de um general comandando suas divisões.
O Novo Prédio da Estrada de Ferro Central do Brasil
O desenvolvimento econômico acelerado na década de 1930 foi acompanhado por uma série de investimentos estatais na infraestrutura do Brasil, incluindo os serviços de transportes.
As ferrovias ainda se constituíam no principal meio de transporte de carga e passageiros do Brasil, embora o transporte rodoviário estivesse se multiplicando. A antiga estação da Estrada de Ferro Central do Brasil mostrava-se insuficiente para atender as necessidades de transporte, além de obsoleta diante de um serviço cuja eletrificação exigia altíssimos investimentos.
O projeto original foi elaborado em 1936 por Roberto Magno de Carvalho, arquiteto formado pela Escola Nacional de Belas Artes em 1921 e funcionário de carreira da Estrada de Ferro Central do Brasil. Porém, no início das obras, verificou-se que ele precisava ser revisto e ampliado. Em primeiro lugar, porque se constatou que ele não se adequava ao terreno proposto. Em segundo lugar, o governo decidiu que o novo prédio deveria abrigar todos os setores da administração da ferrovia, que se achavam dispersos em imóveis alugados em várias partes da cidade. Novamente, aplicava-se a um órgão estatal o modelo centralizador que norteava a administração pública em geral naquele período, visto como instrumento para promover maior racionalidade e eficiência da burocracia.
As modificações no projeto foram feitas pelos arquitetos húngaros Adalberto Szillard e Geza Heller, contratados para substituir Roberto Magno de Carvalho que faleceu em 1937, pouco antes do início efetivo dos trabalhos.
A ditadura do Estado Novo ainda não tinha sido instaurada quando foi lançada a pedra fundamental do prédio, em 28 de março de 1936. Porém, as modificações no projeto original, executado já no período autoritário, demonstram não apenas a preocupação com a funcionalidade, mas também a maior atenção à monumentalidade, adequando-a aos interesses do governo.
A alteração que ganhou mais destaque foi a ampliação da torre, alcançando 135 metros, e do relógio. Historicamente, “a torre, desde as épocas mais remotas sempre representou um signo de poder mítico, em que a verticalidade faz crer que a matéria atinge espíritos superiores, toca o firmamento”.
Inaugurada em 29 de março de 1943, a estação é um dos raros pontos de concentração popular ao longo da Avenida Presidente Vargas. Como as elites tradicionalmente associavam as aglomerações à desordem, era necessário para elas criar mecanismos de controle e disciplina sobre a clase trabalhadora.
Nessa linha, o prédio da Estrada de Ferro Central do Brasil e o Palácio Duque de Caxias, situado à sua frente, formaram um conjunto representando um poder concreto e disciplinador sobre os trabalhadores, que, ao desembarcarem na estação, encontram duas “sentinelas da ordem”, impondo a eles a disciplina e a obediência ao horário de trabalho (relógio) e à subordinação à autoridade (poder militar).
As Colunas do Progresso e as Sentinelas da Ordem – Linguagens Arquitetônicas Durante o Estado Novo (1937-1945)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso artigo mostrou até aqui que Getúlio Vargas, ao chegar ao poder, em 1930, buscou progressivamente implantar um novo modelo de desenvolvimento econômico ao Brasil. Fazia parte dessas mudanças uma ampla reforma na administração pública, capacitando a burocracia para o novo papel que o Estado desempenharia como principal agente indutor do desenvolvimento.
A centralização política e administrativa chegou ao ápice com a decretação do Estado Novo em 1937. Essa articulação entre centralização político-administrativa e intervenção estatal na economia como instrumento que alavancaria o desenvolvimento econômico era uma crença que Getúlio Vargas alimentava desde a juventude, quando sua formação intelectual foi decisivamente influenciada pelo positivismo.
O crescimento do aparelho estatal com a criação ou ampliação de ministérios e órgãos públicos gerou a necessidade de construir edifícios que abrigassem uma burocracia que não parava de crescer. Essas mudanças permitiram que fosse aberto uma espécie de mercado de obras públicas, oferecendo oportunidades aos profissionais da arquitetura, carreira que testemunhou um crescimento notável na década de 1930.
Ao mesmo tempo, toda essa produção arquitetônica teve que obedecer aos interesses do governo que pretendia que os novos prédios fossem, ao mesmo tempo, funcionais e monumentais, transmitindo mensagens de confiança e otimismo, mas também de obediência ao Estado.
Esse programa de obras públicas proporcionou uma disputa entre as principais “escolas” de arquitetura daquele tempo: de um lado, os acadêmicos e os neocoloniais; de outro, os modernos.
Observamos como os modernos aproveitaram melhor as oportunidades, iniciando uma trajetória onde progressivamente foram conquistando a hegemonia no campo da arquitetura. Entre as razões dessa conquista estão a sua melhor fundamentação técnica e intelectual, o apoio que tiveram do Ministro Gustavo Capanema e o controle do SPHAN.
Por outro lado, mesmo com a influência crescente dos modernos, constatamos que a postura do governo Vargas com relação às escolas arquitetônicas, não teve uma orientação monolítica, variando principalmente entre a arquitetura moderna e o Art-Déco, sem excluir outros estilos que, embora em menor grau, também estivessem presentes, como o neoclássico, utilizados nos Ministérios do Trabalho e da Fazenda.
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