Antes da glória de
Grécia e Roma, e até mesmo antes das primeiras cidades da
Mesopotâmia ou dos templos ao longo do Nilo, havia no vale do Baixo
Danúbio e ao pé das montanhas dos Bálcãs um povo à frente de seu
tempo na arte, tecnologia e no comércio de longa distância.
Por 1,5 mil anos,
começando antes de 5000 a.C., eles cultivaram e construíram cidades
de tamanho considerável, algumas com até duas mil residências.
Eles dominavam a fundição de cobre em larga escala, a nova
tecnologia da era. Em seus túmulos foram encontrados uma gama
impressionante de adereços de cabeça e colares e, em um cemitério,
a mais antiga grande coleção de artefatos de ouro do mundo.
Os desenhos marcantes de
sua cerâmica revelam o refinamento da linguagem visual da cultura.
Até descobertas recentes, os artefatos mais intrigantes eram figuras
onipresentes de "deusas" de terracota, originalmente
interpretadas como evidência do poder espiritual e político das
mulheres da sociedade.
Segundo arqueólogos e
historiadores, a nova pesquisa ampliou a compreensão dessa cultura
há muito tempo ignorada, e que parece ter se aproximado do limiar do
status de "civilização". A escrita ainda não havia sido
inventada e ninguém sabe como o povo se chamava. Para alguns
acadêmicos, o povo e a região são simplesmente a Velha Europa.
A cultura pouco
conhecida está sendo resgatada da obscuridade em uma exposição, "O
Mundo Perdido da Velha Europa: o vale do Danúbio, 5000-3500 a.C.",
que foi inaugurada no mês passado no Instituto para o Estudo do
Mundo Antigo da Universidade de Nova York. Mais de 250 artefatos de
museus da Bulgária, Moldávia e Romênia estão expostos pela
primeira vez nos Estados Unidos. A mostra fica aberta até 25 de
abril.
Em seu auge, em torno de
4500 a.C., disse David W. Anthony, curador convidado da exposição,
"a Velha Europa estava entre os lugares mais sofisticados e
tecnologicamente avançados do mundo" e desenvolveu "muitos
sinais políticos, tecnológicos e ideológicos de civilização".
Anthony é professor de
antropologia da Hartwick College, em Oneonta, Nova York, e autor de
"The Horse, the Wheel, and Language: How Bronze-Age Riders from
the Eurasian Steppes Shaped the Modern World" (o cavalo, a roda
e a linguagem: como os cavaleiros da era do bronze das estepes
eurasianas moldaram o mundo moderno, em tradução livre).
Historiadores sugerem que a chegada de povos das estepes ao sudeste
da Europa pode ter contribuído para o colapso da cultura da Velha
Europa por volta de 3500 a.C.
Na pré-abertura da
exposição, Roger S. Bagnall, diretor do instituto, confessou que
até agora "muitos arqueólogos não haviam ouvido falar dessas
culturas da Velha Europa". Admirando a cerâmica colorida,
Bagnall, especialista em arqueologia egípcia, comentou que na época
"os egípcios com certeza não faziam cerâmica assim".
O catálogo da mostra,
publicado pela Princeton University Press, é o primeiro compêndio
em inglês da pesquisa sobre as descobertas da Velha Europa. O livro,
editado por Anthony, com Jennifer Y. Chi, diretora-associada para
exposições, inclui ensaios de especialistas da Grã-Bretanha,
França, Alemanha, Estados Unidos e dos países onde a cultura
existiu.
Chi disse que a
exposição reflete o interesse do instituto em estudar as relações
entre as culturas conhecidas e as "subapreciadas".
Embora escavações ao
longo do último século tenham descoberto vestígios de antigos
assentamentos e estátuas de deusas, foi apenas em 1972, quando
arqueólogos locais descobriram um grande cemitério do quinto
milênio a.C. em Varna, Bulgária, que eles começaram a suspeitar
que aquelas não eram pessoas pobres vivendo em sociedades
igualitárias não estruturadas. Mesmo então, isolados pela Guerra
Fria com a Cortina de Ferro, os búlgaros e romenos foram incapazes
de transmitir seu conhecimento ao Ocidente.
A história que agora
surge é que agricultores pioneiros após aproximadamente 6200 a.C.
se mudaram para o norte em direção à Velha Europa, vindos da
Grécia e da Macedônia e levando trigo, sementes de cevada e sua
criação de gado e ovelhas. Eles estabeleceram colônias ao longo do
Mar Negro e nas planícies e colinas do rio, que evoluíram em
culturas relacionadas, mas um tanto distintas, descobriram os
arqueólogos. Os assentamentos mantinham contato próximo através de
redes de comércio de cobre e ouro e também compartilhavam padrões
de cerâmica.
A concha Spondylus do
Mar Egeu era um item especial de comércio. Talvez as conchas, usadas
em pingentes e pulseiras, fossem símbolos de seus ancestrais egeus.
Outros acadêmicos veem essas aquisições de longa distância como
motivadas em parte pela ideologia de que os produtos não eram bens
no sentido moderno, mas sim "valores", símbolos de status
e reconhecimento.
Notando a difusão
dessas conchas naquela época, Michel Louis Seferiades, antropólogo
do Centro Nacional para Pesquisa Científica, na França, suspeita
"que os objetos eram parte de um círculo de mistérios, um
conjunto de crenças e mitos".
De qualquer forma,
Seferiades escreveu no catálogo da exposição que a predominância
das conchas sugere que a cultura possuía ligações com "uma
rede de rotas de acesso e elaborados sistemas sociais de trocas -
incluindo o escambo, a troca de presentes e a reciprocidade".
Ao longo de uma ampla
área que hoje é a Bulgária e a Romênia, o povo se assentou em
vilarejos de casas de um ou múltiplos recintos, comprimidas dentro
de fortificações. As casas, algumas com dois pisos, tinham suportes
de madeira, paredes rebocadas com barro e chão de terra batida. Por
alguma razão, as pessoas gostavam de fazer modelos de barro de
residências com múltiplos pisos, exemplos dos quais estão em
exposição.
Algumas cidades do povo
cucuteni, uma cultura posterior e aparentemente robusta no norte da
Velha Europa, cresceram ao longo de mais de 320 hectares, o que os
arqueólogos consideram maior do que qualquer assentamento humano da
época. Mas as escavações ainda precisam encontrar evidências
definitivas de palácios, templos ou grandes edifícios cívicos. Os
arqueólogos concluíram que os rituais religiosos pareciam ser
praticados nos lares, onde artefatos de culto foram encontrados.
A cerâmica caseira
decorada em estilos diversos e complexos sugere a prática de
refeições ritualísticas nas residências. Travessas enormes em
prateleiras eram típicas da "apresentação socializante do
alimento" da cultura, Chi disse.
À primeira vista, a
falta de uma arquitetura de elite levou os acadêmicos a presumir que
a Velha Europa possuía pouca ou nenhuma estrutura hierárquica de
poder. Isso foi descartado pelos túmulos do cemitério de Varna. Nas
duas décadas seguintes a 1972, os arqueólogos encontraram 310
túmulos datados de aproximadamente 4500 a.C.. Anthony disse que isso
foi "a melhor prova da existência de uma posição social e
política superior claramente distinta".
Vladimir Slavchev,
curador do Museu Regional de História de Varna, disse que "a
riqueza e variedade dos presentes nos túmulos de Varna foi uma
surpresa", mesmo para o arqueólogo búlgaro Ivan Ivanov, que
liderou as descobertas. "Varna é o cemitério mais antigo já
encontrado em que humanos foram enterrados com ornamentos de ouro",
Slavchev disse.
Mais de três mil peças
de ouro foram encontradas em 62 túmulos, junto de armas e
instrumentos de cobre, ornamentos, colares e pulseiras das apreciadas
conchas do Egeu. "A concentração de objetos de prestígio
importados em uma distinta minoria de túmulos sugere que posições
superiores institucionalizadas existiam", observam os curadores
da exposição em um painel que acompanha o ouro de Varna.
Contudo, é intrigante
que a elite não parecesse usufruir de uma vida privada de excessos.
"As pessoas que quando vivas vestiam trajes de ouro para eventos
públicos", Anthony escreveu, "voltavam para casas bastante
comuns".
O cobre, não o ouro,
pode ter sido a principal fonte do sucesso econômico da Velha
Europa, afirma Anthony. Como a fundição do cobre foi desenvolvida
por volta de 5400 a.C., as culturas da Velha Europa exploraram os
minérios da Bulgária e do que hoje é a Sérvia e aprenderam a
técnica de alto aquecimento para extrair cobre metálico puro.
O cobre fundido, usado em
machados, lâminas de faca e em pulseiras, se tornou uma exportação
valiosa. As peças de cobre da Velha Europa foram encontradas em
túmulos ao longo do Rio Volga, 1,9 mil km a leste da Bulgária. Os
arqueólogos recuperaram mais de cinco toneladas de peças de locais
da Velha Europa.
Uma galeria inteira é
dedicada às estatuetas, as mais familiares e provocantes peças dos
tesouros da cultura. Elas foram encontradas em praticamente toda
cultura da Velha Europa em vários contextos: em túmulos, santuários
e outros prováveis "espaços religiosos".
Uma das mais conhecidas
é a figura em argila de um homem sentado, com os ombros curvados e
as mãos no rosto em aparente contemplação. Chamada de "Pensador",
essa peça e outra figura feminina comparável foram encontradas em
um cemitério da cultura hamangia, na Romênia. Será que eles
estavam pensativos ou de luto?
Muitas das figuras
representam mulheres em uma abstração estilizada, com corpos
truncados ou alongados, de seios fartos e quadris largos. A
sexualidade explícita dessas figuras convida interpretações
relacionadas à fertilidade terrena e humana.
Um grupo notável de 21
figuras femininas, sentadas em um círculo, foi encontrado no local
de um vilarejo anterior aos cucutenis no nordeste da Romênia. "Não
é difícil imaginar", disse Douglass W. Bailey da Universidade
Estadual de São Francisco, o povo da Velha Europa "arrumando as
figuras sentadas em um ou vários grupos de atividades em miniatura,
talvez com figuras menores aos seus pés ou até mesmo no colo das
figuras sentadas maiores".
Outros imaginam as
figuras como o "Conselho das Deusas". Em seus influentes
livros de três décadas atrás, Marija Gimbutas, antropóloga da
Universidade da Califórnia, em Los Angeles, ofereceu a hipótese de
que essa e outras das chamadas figuras de Vênus eram representantes
de divindades em cultos a uma Deusa Mãe que predominavam na Europa
pré-histórica.
Embora a teoria de
Gimbutas ainda tenha seguidores ardorosos, muitos acadêmicos se
conformam com explicações mais conservadoras e não-divinas. O
poder dos objetos, afirma Bailey, não estava em qualquer referência
específica ao divino, mas em "um entendimento compartilhado de
identidade de grupo".
Como Bailey escreveu no
catálogo da exposição, as figuras talvez devessem ser definidas
apenas em termos de sua aparência real: retratos representativos em
miniatura da forma humana. Assim, "presumo (como é justificado
por nosso conhecimento da evolução humana) que a habilidade de
fazer, usar e entender objetos simbólicos como tais estatuetas é
uma habilidade compartilhada por todos os humanos modernos e,
portanto, uma capacidade que conecta você, eu, o homem, a mulher e a
criança do Neolítico e os pintores paleolíticos das cavernas".