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sábado, 7 de setembro de 2013

Os Evangelhos Apócrifos: Um estudo historiográfico.




            O presente texto não tem por objetivo diminuir de forma alguma a autoridade dos quatro Evangelhos Canônicos aceito pela maior parte das Igrejas cristãs pelo mundo. Mas, sim mostrar uma visão histórica e como tal uma análise firmada nesta de que estes livros que foram colocados fora do Cânon principal do cristianismo possa nos ensinar mais sobre aqueles que os escreveram e seus objetivos. É com essas bases que apresento aos amigos Construtores um texto que visa ampliar nossa visão sobre essa obra a muito envolvida em confrontos e diversas com bases teóricas.  Não é fácil definir o que são “evangelhos apócrifos”, bem como o que são escritos apócrifos em geral. Para simplificar a tarefa, pode-se dizer: “apócrifos” designa todos os textos que estão reunidos na coleção iniciada por Edgar Hennecke, e depois sob a curadoria de Wilhelm Schneemelcher, intitulada “Neutestamentliche Apokryphen”. Com essa definição do conceito, porém, estaríamos presos num círculo fechado, uma vez que a escolha dos textos para aquela coleção parte de uma determinada pré-compreensão do que seja “apócrifo”.

CHH

“A todas as grandes mentes que deram seu sangue para que a Justiça se cumpra no Universo.”

Maria Helena de Oliveira Tricca

 Nas edições até agora feitas dessa obra de referência, não houve mudança digna de nota quanto a seu conteúdo. Na primeira edição (1904) e na segunda edição (1924) constavam, por exemplo, os Padres Apostólicos: a primeira e a segunda Epístola de Clemente, as Epístolas de Inácio, de Policarpo, de Barnabé, a Didaché, o Pastor Hermas, Também nesse grupo de escritos trata-se de um corpus artificialmente organizado, que deve seu título, “Padres Apostólicos”, a uma edição do texto em 1672. A partir da terceira edição (1959), gradativamente começam a serem considerados entre os “Apócrifos do Novo Testamento” os textos de Nag Hammadi. Alguns textos eram acrescentados e depois tornavam a ser excluídos, tais como a Carta de Diogneto, os Ditos de Sextus (ambos somente na segunda edição) e as Odes de Salomão (na segunda e na terceira edições).

            Christoph Markschies, que iniciou uma reedição da valiosa coleção, sugere que se fale de “apócrifos cristãos antigos”. Com o termo “antigo” assinala-se a restrição à época da Igreja antiga, pois, de fato, a redação dos apócrifos prolongou-se até a Idade Média e a Idade Moderna, enquanto o termo “cristão” deve libertar o conceito de sua fixação ao Novo Testamento. Se com isso todas as dificuldades quanto à terminologia estão removidas, permanece uma questão em aberto. Além do mais, os escritos de Nag Hammadi, entre os quais se encontra o tão considerado Evangelho de Tomé, deverão ser excluídos da obra, para serem reunidos numa tradução própria.

            O termo “apócrifo”, para iniciar, provém do grego (απόκρυφος). Significa literalmente, “oculto”, “escondido”, “secreto”. Aplicado a textos do cristianismo primitivo, seu significado toma duas direções que, apesar de suas oposições, se mantêm inter-relacionadas:

            1) Com o conceito “apócrifo” designam-se revelações secretas, que não constam no conjunto das revelações geralmente aceitas, mas que, para determinados grupos, têm relevância bem maior do que os ensinamentos conhecidos e aceitos no ambiente eclesial. “Apócrifo” tem aqui um tomo positivo, sem reservas; com o mesmo significado, o termo também está presente em Clemente de Alexandria.

            2) Em contrapartida, os seguidores da Igreja Ortodoxa, defendendo um cânone escriturístico claramente delimitado, tomam a designação “apócrifo” como sinônimo de “falsificação”, “não-confiável”. No Decretum Gelasianum, uma lista canônica do século VI, o termo “apócrifo” aparece de maneira estereotipada, em referência a um grande número de escritos, com o significado equivalente a “herético”. Nega-se qualquer base de autoridade ao acervo escriturístico assim denominado.

            Em ambas as avaliações estabelece-se uma relação entre os escritos apócrifos e o cânone do Novo Testamento, que em seus elementos básicos estava estabelecido em fins do século III. Para uma parte dos assim chamados apócrifos, principalmente para os mais tardios, um fator que levou à sua produção poderia ser assim descrito: tomando como medida os escritos neotestamentários, tinha-se a intenção de complementá-los, levar adiante o processo de produção escriturístico e preencher supostas lacunas. Em parte pretendia-se também, diante deles, valorizar interesses teológicos próprios, adaptando-se, por isso mesmo, aos seus grandes gêneros literário: evangelhos, epístolas, atos de apóstolos, apocalipse.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Núbia (TA-SETI), a terra do arco. Parte II: Aspectos Defensivos e econômicos dos Povos Núbios.



Resto da fortaleza em Buhen, na Núbia, mandada erigir por Senusret III. Imagem: http://www.touregypt.net/

Desde cedo o Vale do Nilo estimulou o contato do Egito com a Núbia pela sua posição geográfica. Sob o Médio Império, ocupada pelos egípcios por razões econômicas e defensivas. Nossos conhecimentos a respeito da Núbia e do país de Punt baseiam-se unicamente em material arqueológico e epigráfico (desenhos murais em particular), não se tendo encontrado fontes escritas até o presente momento.

Aspectos Defensivos: Proteger a fronteira meridional contra os povos do deserto, a leste. Foram construídas fortalezas sob a XII Dinastia. A ocupação da Núbia foi concluída pelo Faraó Amósis da XVIII Dinastia. Ainda na XVIII Dinastia Tutmés III, ampliou seu domínio até a Quinta Catarata e colocou a região sob a autoridade de um Vice-Rei, “O Filho Real de Cux”. 

No Novo Império Ramsés II da XIX Dinastia inicia intensa atividade construtiva na Núbia. Constrói o Templo de Abu-Símbel.... Fortalece o sistema de Vice-Reino que agora está organizada segundo os padrões egípcios. Montou-se um sistema administrativo egípcio com escribas, sacerdotes, soldados e artesãos. Essa nova ordem resultou na completa egipcianização do país.


Ruínas das Muralhas de Buhen na Núbia. Imagem: http://www.touregypt.net/

Aspectos Econômicos: Garantir a importação dos produtos do Sul (penas de avestruz, peles de leopardo, marfim, ébano [madeira preta e resistente] e a exploração das riquezas minerais da Núbia como o ouro e outros metais preciosos. Ainda em relação aos aspectos econômicos a Núbia e o Egito demonstravam laços estreitos de intercâmbio de produtos. Um exemplo é a Argila Fóssil Amarela Núbia que os egípcios transformavam em Cerâmica Qena.

sexta-feira, 1 de março de 2013

O Período Interbíblico: os acontecimentos entre Malaquias e Mateus.



As Alianças de Deus com os Homens. Imagem: Adv. na Mira da Verdade.

Ao ler as Escrituras Sagradas notei que havia uma falta de informações sobre o Período Interbíblico que vai de Malaquias a Mateus, encontramos um silêncio divino de quatro séculos. Nesse período, chamado “Interbíblico”, por se localizar entre os dois Testamentos, Deus esteve preparando o mundo para o nascimento do Seu filho, para o advento do Cristianismo. Então creio que este tema será esclarecedor para os meus amigos leitores.
Deus preparou o mundo em vários aspectos para a vinda de Jesus; cada povo, no seu tempo, pela providência divina, criou as condições da sociedade em que o cristianismo apareceu realizando as suas primeiras conquistas.

Os babilônicos [1], [2] levaram o povo de Deus para o cativeiro e deram-lhe lições jamais esquecidas. Os persas [1], [2] fizeram-lhe retornar à Jerusalém, edificando o templo e restaurando o ensino da lei. Os gregos [1], [2] influenciaram intelectualmente o mundo, contribuindo ainda com um idioma universal, o “Koinê”. Os romanos [1], [2] contribuíram com a paz universal e o intercâmbio entre os povos unificados sob seu domínio.  Os judeus  [1], [2] contribuíram com a preservação do Antigo Testamento e a esperança messiânica que inocularam nos países por onde andaram, principalmente depois do cativeiro.

Deus, nesses 400 anos não falou por meio de profetas nem pela palavra escrita (nenhum livro inspirado apareceu nesse período), mas podemos dizer que com Sua mão poderosa, dirigiu os povos preparando o mundo para o nascimento de Jesus Cristo [1] [2].

Relato - Descrito profeticamente em Daniel 11 à 12.2.

Duração - De 430 a 5 aC (425 anos) --- De Malaquias ao advento.

Local - Palestina.

Fatos importantes:

Para facilitar o estudo, dividiremos o período interbíblico nos seguintes assuntos:

1- O período Medo-Persa

2- O período Greco macedônio

3- O período Romano

4- A literatura apócrifa

1- O período Medo-Persa

Após Neemias e Malaquias, a Palestina continuou sob os persas por mais quase 100 anos, até 330, quando a Grécia venceu a Pérsia. O centro do império Persa ficava onde hoje é o Irã. Suas capitais foram Babilônia e depois Susa, construída por Cambises ( Neemias 1.1; Ester 1.1; Daniel 8.2). Embora em cativeiro, o povo de Deus obteve os seguintes sucessos [1]:

1- Influência espiritual dobre Nabucodonosor e os  babilônios.

2- Idolatria destruída.

3- A lei de Moises respeitada.

4- Inauguração do culto público.

5- Reverdecimento da esperança messiânica.

6- Nacionalismo pronunciado.

No período interbíblico, os persas só dominaram no mundo por cerca de 100 anos. Em 330, Dario Condomano (Dario III) foi derrotado por Alexandre “O Grande” da Grécia na famosa batalha de Arbela. Não confundir esse Dario com o Dario II ( Nothus) de Neemias 12.22. O “Jadua” aí, também não é o mesmo sumo-sacerdote que recebeu Alexandre em Jerusalém, conforme descrição de Josefo em “Antiguidades”.

2- O período Greco macedônio

Busto de Alexandre o Grande Imperador da Macedônia (356-323 a.C.).

Alexandre “O Grande”, 336 a.C, com a idade de 20 anos assumiu o comando do exército grego e, à maneira de meteoro, investiu para o oriente, sobre as terras que estiveram sob o domínio do Egito, Assíria, Babilônia e Pérsia. Em 331 a.C, o mundo inteiro jazia aos seus pés. Invadindo a Palestina em 332 a.C, mostrou muita consideração pelos judeus, poupando Jerusalém e oferecendo-lhes imunidades para se estabelecerem em Alexandria. Esse período durou de 331 a 167 a.C [2].

Em 323 Alexandre “O Grande” morre na Babilônia aos 33 anos de idade. Após sua morte, seu império foi dividido entre quatro dos seus famosos generais, da seguinte maneira:

Seleuco I, Nicator - Ficou com a Síria, Ásia Menor e Babilônia. Capital, Antioquia da Síria.

Ptolomeu I, Sóter I, Ptolomeu Lagos - Aparece na História com esses nomes. Ficou com o Egito, capital Alexandria.

Cassandro - Ficou com a Macedônia e Grécia. Capitais Pella e Atenas.

Lisímaco - Ficou com a Trácia, atual Romênia.

Durante a época dos Ptolomeus e Selêucidas, a língua grega foi implantada na Palestina. O poder civil passou a ser exercido pelo sumo-sacerdote, que exercia também o religioso. A divisão política da Palestina contava com 5 províncias ou distritos: Judéia, Samaria, Galileia, Traconites e Peréia. Nessa fase surgiram as seguintes seitas religiosas:

Os fariseus: (heb. “separados”). Inicialmente primavam pela pureza religiosa, depois tornaram se secos, ritualistas e hipócritas. Eram nacionalistas [1].

Os saduceus: (heb. “justos”). Eram os aristocratas da época. Eram adeptos do que chamamos hoje racionalismo. Confira Atos 5.17; 23.8. Eram Helenistas (partidários dos gregos) [1].

Os essênios: Uma ordem monástica que praticava o ascetismo. A raiz que deriva a palavra “essênio significa “piedoso” [2].

Antioco Epifânio

Antíoco, o Grande, reconquistou a Palestina em 198 aC, que voltou para os reis da Síria, chamados “Selêucidas”. De 175-163 aC, foi violentamente rancoroso com os judeus; fez um esforço titânico e decidiu por exterminá-los e à sua religião. Devastou Jerusalém, em 168 aC; profanou o templo, em cujo altar ofereceu um porco; erigiu um alta à Júpiter; proibiu o culto no templo; impediu circuncisão sob pena de morte; destruiu todas as cópias das Escrituras que foram encontradas, matando a todos quantos foram achados de posse das mesmas; vendeu milhares de famílias judias para o cativeiro e recorreu a toda espécie imaginável de tortura para forçar os judeus a renunciar sua religião. Isso deu ocasião à revolta dos Macabeus, uma das mais heróicas façanhas da história [2].

O Perído Macabeu ou Hasmoneano. 

Matatias, sacerdote, de intenso patriotismo e imensa coragem, furioso com a tentativa de Antíoco Epifânio, reuniu um bando de leais compatriotas e desfraldou a bandeira da revolta. Tinha cinco filhos heróis e guerreiros: Judas, Jônatas ,Simão, João e Eleazar. Matatias faleceu em 166 aC. Seu manto caiu sobre seu filho Judas, guerreiro de admirável gênio militar. Ganhou batalha após batalha em condições de inferioridade incríveis e impossíveis. Reconquistou Jerusalém em 165 aC, purificou e reedificou o Templo. Foi esta a origem da Festa da Dedicação (João 10.22-23). Judas uniu em si a autoridade sacerdotal e civil e assim estabeleceu a linguagem dos sacerdotes-governadores Hasmoneanos, que pelos seguintes 100 anos governaram uma Judéia independente [2]. Foram eles:

Matatias – 167-166 aC.

Judas – 166- 161 aC.

Jônatas – 161- 143 aC.

Simão – 143- 135 aC.

João Hircano I – 135-104 (filho de Jônatas).

Aristóbulo e filhos – 104-63 (indignos do nome do Macabeus).

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Primeiro discurso contra Catilina de Marco Túlio Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), cônsul de Roma, recitado no Templo de Júpiter em 8 de Novembro de 63 a.C., local para onde tinha sido convocado o Senado de Roma.


Marcus Tullius Cicero. Imagem: Arquivo pessoal CHH.

A etimologia da palavra CATILINÁRIA tem a sua origem de uma acusação violenta, como a que Cícero fez a Catilina.

Oh tempos, oh costumes! Uma das mais famosas frases de todos os tempos, foi pronunciada há mais de 2000 anos por Cícero, ao discursar perante o Senado de Roma começando a destruir um tentativa de golpe de estado contra a República. Cícero tinha confirmado os seus dotes oratórios quando sete anos antes, em 70 a.C., tinha conseguido que o corrupto governador da Sicília Caio Verres fosse impugnado (demitido do seu cargo) mas agora enquanto cônsul de Roma o caso era mais grave.
A conspiração contra o Senado dirigida por Lúcio Sérgio Catilina, candidato vencido ao cargo de cônsul nas eleições de Julho de 64 a.C. assim como nas de 63, lugar-tenente de Sila durante a ditadura deste, antigo governador da província de África, amigo de Júlio César e de Crasso, os dois dirigentes do Partido Popular em Roma, tinha começado em Setembro de 63 a.C., após a realização das eleições e já tinha provocado reações de Cícero e do Senado, mas o chefe da conspiração tinha conseguido até aí não ser incriminado. 

Na noite de 6 para 7 de Novembro Catilina reuniu novamente os dirigentes da conspiração para tomarem as últimas decisões antes da nova tentativa de golpe, mas Cícero foi informado da reunião e das decisões aí tomadas e decidiu convocar o Senado para o Templo de Júpiter Estátor para o dia seguinte. Quando o chefe da conjura apareceu na reunião, Cícero ficou tão indignado que se dirigiu diretamente a Catilina, acusando-o violenta e diretamente, no primeiro de quatro célebres discursos - as Catilinárias -, que acabaram por convencer o incrédulo Senado da existência da conspiração e das culpas de Catilina. Mas neste primeiro discurso Cícero sabia que por lei não poderia condenar, nem mesmo mandar desterrar, Catilina e por isso tentou que este saísse voluntariamente da cidade, o que de facto conseguiu. Em meados de Novembro Catilina entrou em revolta aberta e acabou por ser condenado à morte pelo Senado em princípios de Dezembro, após um discurso de Cícero - a quarta Catilinária - mas tendo recusado entregar-se foi morto em Janeiro de 62 a.C. no campo de batalha de Pistóia, o que lhe valeu um elogio de Floro: «Bela morte, assim tivesse tombado pela Pátria.»

Este discurso, o mais famoso de Cícero, foi usado como exercício escolar no ensino da retórica durante séculos, como é exemplo em Portugal a tradução do padre António Joaquim que teve três edições e que tem uma componente pedagógica muito importante.
JÁ NÃO PODES VIVER MAIS TEMPO CONOSCO
I


Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?

Oh tempos, oh costumes! O Senado tem conhecimento destes factos, o cônsul tem-nos diante dos olhos; todavia, este homem continua vivo! Vivo?! Mais ainda, até no Senado ele aparece, toma parte no conselho de Estado, aponta-nos e marca-nos, com o olhar, um a um, para a chacina. E nós, homens valorosos, cuidamos cumprir o nosso dever para com o Estado, se evitamos os dardos da sua loucura. à morte, Catilina, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do cônsul; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós.

Pois não é verdade que uma personagem tão notável. como era Públio Cipião, pontífice máximo. mandou, como simples particular, matar Tibério Graco, que levemente perturbara a constituição do Estado? E Catilina. que anseia por devastar a ferro e fogo a face da terra, haveremos nós, os cônsules, de o suportar toda a vida? E já não falo naqueles casos de outras eras, como o facto de Gaio Servílio Aala ter abatido, por suas próprias mãos, Espúrio Mélio e, que alimentava ideias revolucionárias. Havia, havia outrora nesta República, uma tal disciplina moral que os homens de coragem puniam com mais severos castigos um cidadão perigoso do que o mais implacável dos inimigos. Temos um decreto do Senados contra ti, Catilina, um decreto rigoroso e grave; não é a decisão clara nem a autoridade da Ordem aqui presente que falta à República; nós, digo-o publicamente, nós, os cônsules, é que faltamos.

II

Decidiu um dia o Senado que o cônsul Lúcio Opímio velasse para que a República não sofresse dano algum. Pois nem uma noite passou. Gaio Graco, apesar da sua tão nobre ascendência, de pai, de avô e de seus maiores, foi morto por causa de certas suspeitas de revolta; juntamente com os filhos foi executado Marco Fúlvio, um consular. Com um mesmo decreto do Senado, foi a República confiada aos cônsules Gaio Mário e Lúcio Valério. Acaso adiaram eles mais um dia sequer a pena de morte, por crime de lesa-república, a Lúcio Saturnino, um tribuno da plebe, e a Gaio Servílio, um pretor?
Nós, porém, há já vinte dias que consentimos no enfraquecimento do vigor de decisão destes homens. Temos um destes decretos do Senado, mas está fechado nos arquivos como espada metida em bainha; e, segundo esse decreto senatorial, tu, Catilina, deverias ter sido imediatamente condenado à morte. E eis que continuas vivo, e vivo, não para abdicares da tua audácia, mas para nela te manteres com inteira firmeza. É meu desejo, venerandos senadores, ser clemente; é meu desejo, no meio de tamanhos perigos da República, não parecer indolente; mas já eu próprio de   inacção e moleza me acuso.
Há acampamentos em Itália contra o povo romano. estabelecidos nos desfiladeiros da Etrúria, aumenta em cada dia o número dos inimigos; e, no entanto, o general desses acampamentos e o comandante desses inimigos, eis que o vemos no interior das nossas muralhas e dentro do próprio Senado, urdindo a cada instante algum atentado contra a República. Se. neste momento eu te mandar prender, Catilina, se eu decretar a tua morte, o que sobretudo terei de temer, tenho a certeza, é que todos os bons cidadãos me censurem por ter actuado tarde, e não que haja alguém a dizer que usei de crueldade excessiva.
A mim, porém, aquilo que já há muito deveria ter sido feito, fortes razões me levam a não o fazer ainda. Hás-de ser morto, sim, mas só no momento em que já não for possível encontrar-se ninguém tão perverso, tão depravado, tão igual a ti, que não reconheça a inteira justiça desse acto.
Enquanto houver alguém que ouse defender-te, continuarás a viver, e a viver como agora vives, cercado pelas minhas muitas e fiéis guardas, para não poderes sublevar-te contra o Estado. È até os olhos e os ouvidos de muita gente, sem disso te aperceberes, te hão-de espiar e trazer vigiado como até hoje o têm feito.
III

Que há, pois, ó Catilina, que ainda agora possas esperar, se nem a noite com suas trevas pode manter ocultos os teus criminosos conluios, nem uma casa particular pode conter, com suas paredes, os segredos da tua conspiração, se tudo vem à luz do dia, se tudo irrompe em público? É tempo, acredita-me, de mudares essas disposições; desiste das chacinas e dos incêndios. Estás apanhado por todos os lados. Todos os teus planos são para nós mais claros que a luz do dia, e importa que os recordes comigo nesta hora.
Não te lembras de eu dizer no Senado, no dia 12 antes das Calendas de Novembro, que, em dia determinado, dia esse que havia de ser o sexto antes das Calendas de Novembro , haveria de pegar em armas Gaio Mânlio, um lacaio e instrumento da tua audácia? Enganei-me, porventura, ó Catilina, não só quanto a um acontecimento tão importante, tão horroroso e tão incrível, como também. o que é muito mais para admirar, quanto ao próprio dia? Fui eu ainda que disse no Senado teres tu fixado para o dia 5 antes das Calendas de Novembro a chacina da aristocracia. justamente na altura em que muitas das altas personalidades do Estado fugiram de Roma, não tanto por motivo de segurança pessoal, como para reprimirem as tuas maquinações. Serás capaz de negar que nesse mesmo dia, estando tu cercado pelas minhas guardas e pela minha vigilância, te não pudeste insurgir contra a República, quando tu, perante o afastamento dos restantes, dizias no entanto que a morte de quem tinha ficado, que éramos só nós, bastava para te contentar?
Pois quê? Quando tu, nas próprias Calendas de Novembro, estavas plenamente seguro de que tomarias Preneste num ataque nocturno, não deste conta, porventura, de que tinha sido por ordens minhas que aquela colónia fora guarnecida pelos meus destacamentos, sentinelas e rondas nocturnas? Nada fazes, nada intentas, nada imaginas que eu não só não oiça, mas veja e disso tenha pleno conhecimento.
IV

Recorda comigo, por fim, aquela noite famigerada de anteontem e logo verás que eu velo com mais ardor pela segurança do Estado que tu pela sua ruína. Afirmo que tu, na noite anterior a esta, vieste aos Cuteleiros (não vou falar por meias palavras), a casa de Marco Leca, e que no mesmo local se reuniu grande parte dos cúmplices da mesma criminosa loucura. Ousas, porventura, nega-lo? Porque te calas? Se o negas, eu to provarei, pois que vejo aqui presentes no Senado alguns dos que lá estiveram juntamente contigo.
Oh deuses imortais! Em que país do mundo estamos nós, afinal? Que governo é o nosso? Em que cidade vivemos nós? Estão aqui, aqui dentro do nosso número, venerandos senadores, neste Conselho. mais sagrado e mais respeitável da face da terra, aqueles que meditam a morte de todos nós, aqueles que trazem no pensamento a destruição desta cidade e até a do mundo inteiro. É a estes que eu, como cônsul, tenho na minha frente e lhes peço conselho acerca dos interesses do Estado, a eles, que deveriam ser passados a fio de espada e que eu nem com a palavra atinjo ainda.
Estiveste, pois, Catilina, em casa de Leca nessa noite; procedeste à partilha das regiões da Itália; determinaste para onde gostarias que cada um partisse; escolheste quem deixarias em Roma, quem levarias contigo; designaste os bairros da cidade destinados a incêndio; afirmaste que, por ti, já estavas disposto a partir; disseste que ainda te demorarias, contudo, um pouco, porque eu continuava vivo. Encontraste dois cavaleiros romanos, para te aliviarem" desta preocupação e se comprometerem a assassinar-me no meu próprio leito nessa mesma noite, pouco antes da alvorada.
Tudo isto eu vim a saber mal tinha ainda sido dissolvida a vossa reunião; guarneci e reforcei a minha casa com mais guardas; e àqueles que tu me enviaras pela manhã para me saudarem, tranquei-lhes a porta quando eles chegaram, a esses mesmos cuja intenção de me visitarem àquela hora eu já havia previamente comunicado a muitas e das mais altas personalidades.

V

Sendo assim, prossegue, Catilina, o caminho encetado; sai da cidade de uma vez para sempre; as portas estão abertas; põe-te a caminho. Há muito que te reclamam como general supremo esses teus acampamentos manlianos. Leva também contigo todos os teus; se não todos, pelo menos o maior número possível. Limpa a cidade. Libertar-me-ás de um grande receio quando entre ti e mim um muro se levantar. Já não podes conviver por mais tempo connosco; não o suporto, não o tolero, não o consinto.
Grande deverá ser o nosso reconhecimento para com os deuses imortais, particularmente para com o próprio Júpiter Estátor aqui presente, o mais antigo protector desta cidade, por tantas vezes termos escapado a esta peste tão abominável, tão horrorosa e tão hostil à República. Nunca mais a suprema segurança do Estado deve ser posta em perigo por causa de um homem apenas. De tantas vezes que tu, Catilina, me armaste ciladas quando eu era cônsul designado, não foi com a guarda pública, mas com os meus próprios meios, que eu procurei defender-me. Quando, por ocasião dos últimos comícios consulares, tu pretendeste matar-me no Campo de Marte, a mim que era cônsul e aos teus competidores, reprimi os teus criminosos intentos com a ajuda e recursos dos amigos, sem proclamar oficialmente o estado de sítio; numa palavra, todas as vezes que me atacaste, foi por mim mesmo que te resisti, muito embora eu visse que a minha morte ficaria ligada a uma grande desgraça do Estado.
Mas agora é a toda a República que tu diriges abertamente o teu ataque; são os templos dos deuses imortais, são as casas da cidade, é a vida de todos os cidadãos, é a Itália inteira, é tudo isto que tu arrastas para a ruína e a devastação. E, uma vez que não ouso ainda pôr em prática o que se imporia em primeiro lugar e que é próprio destes poderes" e da tradição dos nossos maiores, tomarei uma posição mais moderada quanto ao rigor, porém mais útil no que toca à salvação comum. É que, se eu te matar, continuará na República o restante bando dos teus conjurados; mas, se tu saíres, como já há muito te estou convidando, a cidade ficará vazia dos teus sectários, dessa profunda sentina que empesta o Estado.
Então, Catilina, que se passa? Hesitas em fazer por minha ordem o que tu já te dispunhas a realizar por tua livre vontade? É a um inimigo público que o cônsul manda sair da cidade. Perguntas-me se para o exílio? Não to ordeno, mas, se pedes o meu parecer, aconselho-to.

VI

Que há, ó Catilina, que ainda te possa causar prazer nesta cidade, em que não há ninguém, fora desta conjuração de homens depravados, que te não tema, ninguém que te não deteste? Que nódoa de escândalos familiares não foi gravada a fogo na tua. vida? Que ignomínia de vida particular não anda ligada à tua reputação? Que sensualidade esteve longe de teus olhos? Que acção infamante deixaram de perpetrar as tuas mãos algum dia? Que torpeza esteve ausente de todo o teu corpo? Que jovem haverá a quem não tenhas ilaqueado nas seduções da tua imoralidade, guiado o ferro na rebeldia ou o archote. na libertinagem?
Pois quê? Há pouco, quando, com a morte da tua primeira mulher, esvaziaste a tua casa com vista a um novo casamento, não acumulaste ainda sobre este delito um outro atentado inacreditável, que eu não refiro e acho melhor deixar passar em silêncio, para que não conste que nesta cidade se verificou a barbaridade de um crime tamanho, ou que este ficou sem castigo? Nem menciono a perda dos teus haveres, que tu verás todos confiscados nos próximos Idos; refiro-me a factos que dizem respeito não à infâmia pessoal dos teus vícios, não à tua penúria doméstica e à tua má fama, mas, sim, aos superiores interesses do Estado e à vida e segurança de todos nós.
Podes tu, Catilina, sentir prazer na luz deste dia ou no ar deste céu que respiras, ao saberes que ninguém dos presentes desconhece que, na véspera das Calendas de Janeiro", durante o consulado de Lépido e Tulo, te apresentaste armado no local dos comícios do povo; que tinhas um grupo de homens preparado para dar a morte aos cônsules e aos principais da cidade e que não foi nenhuma reconsideração da tua parte nem o teu medo, mas, sim, a deusa Fortuna do povo romano que impediu o crime da tua loucura? E já nem conto pois que não são nem desconhecidos nem poucos os delitos cometidos depois quantas vezes, sendo eu cônsul designado, quantas vezes mesmo durante o meu consulado, me tentaste matar! Quantos golpes, vibrados de tal maneira, que parecia impossível escapar-lhes, eu não evitei com um pequeno desvio ou, como costuma dizer-se, só com o corpo! Nada adiantas, nada consegues, e, contudo, não desistes de tentar e de querer.
Quantas vezes já esse punhal de assassino te foi arrancada das mãos! Quantas vezes, por um mero acaso, ele te escapou e caiu aos pés, esse punhal que, sinceramente, não sei em que iniciações mistéricas e a que deus o terás tu consagrado, para julgares necessário cravá-lo no corpo do cônsul.

VII

E agora, que vida é esta que levas? Desejo neste momento falar-te de modo que se veja que não sou movido pelo rancor, que eu te deveria ter, mas por uma compaixão que tu em nada mereces. Entraste há pouco neste Senado. Quem, dentre esta tão vasta assembleia, dentre todos os teus amigos e parentes, te saudou? Se isto, desde que há memória dos homens, a ninguém aconteceu, ainda esperas que te insultem com palavras, quando te encontras esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio? E que dizes ao facto de, à tua chegada, esse lugar ter ficado ao abandono, e ao facto de todos os consulares, que tantas vezes figuraram nos teus planos de assassínio, mal te havias sentado a seu lado, terem deixado deserta e vazia essa zona da bancada? Com que coragem, afinal, julgas tu que hás-de suportar tal afronta?
Se os meus escravos me temessem da maneira que todos os teus concidadãos te receiam, eu, por Hércules!, sentir-me-ia compelido a deixar a minha casa; e tu, a esta cidade, não pensas que é teu dever abandoná-la? E se eu me visse, ainda que injustamente, tão gravemente suspeito e detestado pelos meus concidadãos, preferiria ficar privado da sua vista a ser alvo do olhar hostil de toda a gente; e tu, apesar de reconheceres, pela consciência que tens dos teus crimes, que é justo e de há muito merecido o ódio que todos nutrem por ti, estás a hesitar em fugir da vista e da presença de todos aqueles a quem tu atinges na alma e no coração? Se teus pais te temessem e odiassem e tu não os pudesses apaziguar de modo nenhum, retirar-te-ias, penso eu, do seu olhar para outra qualquer parte. Pois agora é a Pátria, mãe comum de todos nós, que te odeia e teme, e sabe que desde há muito não pensas noutra coisa que não seja o seu parricídio; e tu, nem respeitarás a sua autoridade, nem acatarás as suas decisões, nem te assustarás com o seu poder?
Eis que ela a ti se dirige, ó Catilina, e, no seu silêncio, como que fala:
«Há vários anos já que nenhum crime se viu cometido senão por ti; nenhum escândalo, sem ti; só tu cometeste, sem castigo e com toda a liberdade, o assassínio de muitos cidadãos, a opressão e saque dos nossos aliados; só tu te atreveste não só a desprezar, mas até a subverter e a infringir as leis e os tribunais. Esses crimes de outrora, posto que não devessem ter sido suportados, eu os suportei como pude; mas agora, estar eu toda em sobressalto somente por causa de ti, ser Catilina objecto de medo ao mínimo ruído que surja, não se poder descobrir conjura alguma tramada contra mim em que não esteja implicada a tua intenção criminosa, não, isso é que não devo suportar. Por isso, vai-te daqui e afasta de mim este receio; se ele tem fundamento, para eu não andar oprimida; se é ilusório, para eu, enfim, deixar de uma vez esta vida de medo.»

VIII

Se tais palavras, como disse, a Pátria te pudesse dirigir, não deveria ela conseguir o seu intento, muito embora não pudesse fazer uso da força?
E que dizer do facto de tu próprio te haveres entregado sob guarda provisória e teres dito, a fim de evitares suspeitas, que desejavas ficar em casa de Mânio Lépido? Como este não te recebeu, até a mim tiveste cara de te dirigir e de me pedir que te guardasse em minha casa. E, como também de mim levaste a resposta de que eu não podia de modo nenhum sentir-me seguro contigo dentro das mesmas paredes, porquanto já eu corria grande perigo pelo facto de estarmos metidos dentro das mesmas muralhas, foste a casa do pretor Quinto Metelo. E, repudiado por ele, imigraste para casa do teu comparsa Marco Metelo, esse grande homem de quem pensaste, claro está, que havia de ser o mais cuidadoso em te guardar, o mais esperto para te vigiar e o mais enérgico para te defender. Mas em que medida parece justo estar afastado da prisão e das cadeias quem se julgou, por si mesmo, digno de detenção?
Uma vez que assim é, Catilina, se não és capaz de esperar pela morte de coração resignado. ainda hesitas em partir daqui para outras terras e em entregar ao exílio e à solidão essa vida, subtraindo-a a muitos castigos justos e merecidos?
«Propõe-no ao Senado», dizes tu. É isto, com efeito, o que reclamas, e dizes que, se esta Ordem de senadores vier a decidir que é sua vontade a tua partida para o exílio, estás na disposição de obedecer. Não, não vou propor uma coisa que é contra os meus princípios, mas, sim, farei com que vejas o que estes pensam acerca de ti. Sai de Roma, Catilina; liberta o Estado destas apreensões; parte para o exílio, se é esta a palavra de ordem que esperas. Então? Não vês? Não dás conta do silêncio dos presentes? Se estão calados, é porque consentem. Porque esperas pela autoridade das palavras, quando percebes muito bem pelo seu silêncio o que têm na vontade?
Ora, se eu tivesse dito estas mesmas palavras a um jovem tão cheio de qualidades como Públio Séstio aqui presente, se as tivesse dirigido a Marco Marcelo, varão da mais alta virtude, já o Senado, apesar de eu ser cônsul, teria, com plena justiça, lançado contra mim, neste mesmo templo, a sua força e o seu poder. A teu respeito, porém, Catilina, a sua imobilidade é uma aprovação; o seu consentimento, um decreto; o seu silêncio, um clamor. E não apenas estes aqui presentes, cuja autoridade tens, pelos vistos, em grande estima, mas a vida em vil apreço; também aqueles cavaleiros romanos, homens da maior honestidade e excelência, e os restantes cidadãos tão valorosos que de pé circundam este Senado, e de quem tiveste ensejo, há momentos, de ver não só a afluência, mas até de reconhecer claramente as disposições e ouvir distintamente os clamores. É com dificuldade que desde há muito detenho suas mãos e suas armas aparelhadas contra ti; mas, se abandonares estes sítios que há largo tempo pretendes devastar, é com facilidade que os poderei levar a escoltarem-te até às portas da cidade.

IX

Mas de que servem as minhas palavras? A ti, como pode alguma coisa fazer-te dobrar? Tu, como poderás algum dia corrigir-te? Tu, como tentarás planear alguma fuga? Tu. como podes pensar nalgum exílio? Oxalá os deuses imortais te inspirassem tal propósito, muito embora eu veja que, se tu, apavorado com as minhas palavras, te decidires a partir para o exílio, uma enorme tempestade de ódios ameaça desabar sobre nós, se não no tempo presente, por causa da fresca lembrança dos teus crimes, pelo menos para o futuro. Vale, porém, a pena, desde que essa desgraça seja particular e se não misture com os perigos do Estado. Mas a ti, o que não se deverá exigir é que te afastes dos teus vícios, que alimentes profundo receio dos castigos da lei, que recues perante as conjunturas críticas da República. Nem tu, Caulina, és de molde que a vergonha te afaste da infâmia; ou o medo, do perigo; ou a razão, da loucura.
Por isso mesmo, parte, como já tantas vezes te disse, e, se pretendes, conforme apregoas, atear o ódio público contra mim, teu inimigo, avança já direito ao exílio; se o fizeres, muito me custará suportar a censura dos homens; se partires para o exílio por ordem do cônsul, muito me custará sentir o fardo dessa impopularidade. Se, porém, preferes servir o meu prestígio e a minha glória, sai juntamente com o indesejável bando dos celerados, refugia-te junto de Mânlio, convoca os cidadãos perversos, separa-te dos homens de bem, move guerra contra a Pátria, exulta com uma sacrílega revolta de bandidos, para que se veja que não foste expulso por mim para o meio de estranhos, mas, sim, convidado a partir para junto dos teus.
De resto, para quê convidar-te a isso, uma vez que tenho conhecimento de que tu enviaste homens à frente para te esperarem armados junto do Fórum de Aurélio, e sei que tu combinaste e fixaste a data com Mânlio, e sei que até enviaste à frente aquela famosa águia de prata", uma águia que, assim o espero, há-de tornar-se ruinosa e fatal para ti e para todos os teus, uma águia à qual esteve levantado em tua casa um criminoso santuário? Como é que tu poderás passar mais tempo sem aquela que costumavas adorar ao partir para a carnificina, tu que tantas vezes fizeste passar essa dextra sacrílega, do seu altar para a chacina de cidadãos?

X

Irás, enfim, de uma vez para sempre, para onde há muito tempo te arrastava essa tua paixão desenfreada. e louca, pois não é pesar o que esta partida te causa, mas um estranho e inacreditável prazer. Foi para semelhante loucura que a natureza te gerou, te preparou a vontade, e o destino te guardou. Tu, não só nunca desejaste o tempo de paz, mas nem sequer uma guerra que não fosse criminosa. Topaste uma corja de bandidos formada de gente perversa, enjeitada não só de toda a sorte, mas até de toda a esperança.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Questões acerca do Pelagianismo. Parte IV: Papa Zózimo e o Imperador Honório dão a sentença final sobre o pelagianismo.


O personagem bíblico Jó era considerado pelos pelagianos um herói. Imagem: Arquivo pessoal CHH.

Chegamos à quarta parte de nosso estudo sobre o pelagianismo e sua influência na formação dos principais dogmas Católicos contra heréticos, pois sendo os mesmo uma ameaça que muito trabalho deu aos bispos católicos no século IV e V. No trabalho que se segue veremos a veemência pelagiana de alcançar a perfeição plena e harmônica entre alma e corpo de tal forma que segundo suas crenças poderiam manter-se livres de qualquer desobediência às leis sagradas por seu próprio esforço e dessa maneira deixando o clero católico consternado, pois desse modo os pelagianos excluíam Cristo de sua sociedade. Uma blasfêmia que não seria tolerada pela Igreja Cristã.

Pelágio escolhera bem os seus destinatários e, todos eles, tinham uma notável força de vontade ao romperem por completo com “o mundo”, frente ao opressivo sentimento de família que imperava na sociedade aristocrática do baixo Império Romano. A extraordinária obstinação desses jovens nobres afigurava-se um presságio seguro do futuro progresso na perfeição. Havendo usado sua força de vontade com um efeito tão poderoso, eles poderiam facilmente tornar-se seguidores fervorosos de Pelágio. E teriam dado a esse movimento de reforma a bênção da classe mais influente de leigos cristãos do mundo romano. Isso porque o pelagianismo podia afigurar-se um movimento com um projeto definido.

A Igreja Católica viu-se diante de pessoas que se acreditavam capazes de exortações urgentes, de exercer uma influência imediata no comportamento da sociedade.

Para os pelagianos, o homem não tinha desculpas para seus pecados nem para os males que o cercavam. Se a natureza humana era essencialmente livre e bem criada, e não perseguida por uma misteriosa fraqueza íntima, a razão da miséria geral dos homens devia ser externa, de algum modo, a seu verdadeiro eu; devia estar, em parte, na força restritiva dos hábitos sociais de um passado pagão, Tais hábitos podiam ser reformados. Assim, poucos autores do baixo-império foram tão francos em suas críticas à sociedade romana. Os trechos mais suaves das frias exortações dos pelagianos são os que descrevem o horror das execuções públicas, instando o cristão a:

“sentir a dor alheia como se fosse sua e a se comover até as lágrimas com as tristezas de outros homens.”

Jó era o herói dos pelagianos: ali estava um homem subitamente despojado dos artifícios da sociedade, e capaz de mostrar ao mundo o esqueleto nu de uma individualidade heroica. Não foi por consciência que essas ideias circularam entre homens que desejavam despojar-se de sua vasta riqueza.

Como muitos reformadores os pelagianos depositaram no indivíduo o peso assustador da liberdade completa: ele era responsável por todos os seus atos; portanto, todo pecado só podia ser um ato deliberado de desprezo a Deus.

Depois de 410, entretanto, a África tornou-se uma das únicas províncias em que se podia contar com o status quo. Talvez tenha sido mais do que coincidência o fato de as ideias pelagianas parecerem ter tido o máximo de repercussão justamente nas províncias em que os antigos estilos de vida foram afetados pelas invasões dos bárbaros: na Grã-Bretanha, no Sul da Itália.

As diferenças fundamentais entre Pelagianos e Católicos pode ramificar-se das questões mais abstratas da liberdade e da responsabilidade para o papel efetivo do indivíduo na sociedade do baixo império.  Mas, podemos distinguir fundamentalmente em duas concepções radicalmente diferentes da relação entre o homem e Deus. A Igreja Católica via nos bebês a extensão do desamparo encontrado neles e esta os impressionava. Já os pelagianos, desdenhavam os bebês. “Não há admoestação mais premente do que está: devemos ser chamados filhos de Deus”.

Ser “filho” era tornar-se uma pessoa inteiramente distinta, não mais dependente do pai, porém capaz de seguir por conta própria as boas ações ordenadas por ele. O pelagiano era emancipatus a deo – uma imagem brilhante, extraída da linguagem do direito romano de família: libertos dos direitos abrangentes e claustrofóbicos do pai de uma grande família sobre seus filhos, esse filhos teriam “atingido”. Como no direito romano, da dependência em relação ao pater familias, e podiam enfim lançar-se ao mundo como indivíduos maduros e livres, capazes de defender com feitos heroicos o bom nome de seus ilustres ancestrais: “Sede perfeitos, como perfeito é vosso Pai celestial.”

Pelágio angustiava-se com a hipótese de que sua mensagem austera fosse proscrita, se declarada herege. Os pelagianos achavam que a Igreja precisava de seus serviços: cabia mais a eles tolerar a negligência moral da Igreja católica, cujo populacho sempre rotularia de “heresia” qualquer opinião desagradável.

Para o homem médio, era difícil decidir se a linguagem usada por Pelágio era “herege”. “Heresia” significava erros quanto à natureza da Trindade, como os que haviam provocado à controvérsia ariana e, nesse aspecto, os pelagianos eram irrepreensíveis .

Os pelagianos sempre ameaçaram apelar para as igrejas orientais, com tradições mais liberais e muito diferentes. Vista de fora, a fundatissima fides parecia expressar meramente o rigor tacanho de uma igreja isolada.

Pelágio chegou a Terra Santa em meados de 415 e um sínodo de quatorze bispos se reuniu em Diópolis ficou claro para eles que as acusações deveriam ser descartadas.
Se a aceitação de Pelágio pareceu perfeitamente normal no Oriente, causou grande rebuliço no Ocidente. A misteriosa rede de adeptos de Pelágio certificou-se então de que seu relato do sínodo de Dióspolis chegasse ao mundo latino com espantosa velocidade. A conspiração destinada a prejudicá-lo fora reduzida a confusão; ele ficara com sua “ficha limpa”, e sua opinião de que os homens podiam existir sem pecado fora aprovada por bispos dos Lugares Santos.

Chegou então a vez da Igreja da África mostrar sua contra-demonstração. E está foi impressionante. Dois concílios foram realizados; um em Cartago e outro em Milevs e havia trezentos bispos católicos prontos para concordarem unanimemente com decretos redigidos por especialistas incontestáveis contra os ensinamentos pelagianos.

Assim no final de 416, Inocêncio bispo de Roma recebeu da África uma pilha realmente inusitada de documentos:

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Questões acerca do Pelagianismo. Parte II: A teologia da alma perfeita!



A alma humana! Para os Católicos tende ao pecado desde o nascimento, e para os pelagianos pura desde o nascimento e pode assim permanecer durante toda a vida do fiel pelagiano! Imagem. Getty Imagens.

Pelágio era um homem que se aborrecia com os escritos dos bispos católicos que ensinavam o nascimento em pecado e a necessidade do batismo para arrependimento e salvação. Entrou em choque com bispos por várias vezes, como Paulino de Nola, numa discussão subsequente a uma leitura das ternas passagens do Livro X, das Confissões de Agostinho de Hipona;

“Ordenai o que quiserdes, doai o que ordenardes.”

 Essa frase parecia toldar, por intermédio de atos pessoais de favoritismo, a majestade incorruptível de Deus como Legislador. O sentimento de que a onda da opinião pública estava-se voltando rapidamente contra ele, em favor de uma tolerância do pecado como “extremamente humano”, arrancou-lhe um panfleto enraivecido e sem meias palavras, Sobre a natureza. Tempos, depois esse mesmo texto foi usado como uma valiosíssima prova em sua argumentação contra Pelágio, pelos bispos católicos.

Em 412 d.C, o britânico Pelágio tornou a partir, desta vez para a Terra Santa; ficaria conhecido apenas por seus livros: Sobre a Natureza, e, Carta, que evidentemente os impressionou. Trata-se de uma intrigante imagem dupla: em uma ele era o teólogo otimista de Sobre a natureza; para outros, era o asceta ardoroso que escrevera uma admoestação para as famílias.

Mas foi Celéstio quem provocou a crise na África, não Pelágio. Tão logo chegou a Cartago, ele interveio confiantemente nos debates em curso, que pareciam tocar no mistério perene da origem da alma, e passou aos problemas afins da solidariedade da raça humana no pecado de Adão, pois, por exemplo, como poderia a alma “nova em folha” de um indivíduo ser considerada culpada do ato distante de uma outra pessoa? Essas discussões tocaram na necessidade do batismo infantil. E foi aí que os argumentos pelagianos depararam com seu primeiro obstáculo sério.

Os bispos que haviam passado anos defendendo a necessidade absoluta e a singularidade do batismo conferido por eles na Igreja Católica, e que, na biblioteca dos bispos de Cartago, podiam consultar uma carta de São Cipriano que insistia no batismo dos bebês recém-nascidos, não estavam dispostos a tolerar tais especulações.

Celéstio foi denunciado quando se candidatou ao sacerdócio. As seis proposições condenadas que ele se recusou a retirar viriam a constituir, ao lado de Sobre a Natureza, de Pelágio, a base da argumentação católica contra Pelágio. Para a Igreja, esses eram os capitula capitalia, pois tais proposições bastariam para “enforcar” Pelágio, caso se admitisse que o radicalismo de Celéstio, o discípulo, era apenas a extensão lógica das opiniões secretas de seu mestre.

Para os bispos católicos da África o Pelagianismo sempre foi um conjunto de ideias, de disputationes, “argumentos”. Mas, em Roma no entanto, tais ideias haviam desencadeado um “movimento”. Pelágio tinha um corpo de adeptos tenazes e bem situados. Estes se certificavam de que suas cartas circulassem com surpreendente rapidez e de que ele se mostrasse decidido a buscar um lugar para suas ideias dentro da Igreja Católica. Suprimiam-no de entusiastas que compunham “células” pelagianas em locais tão distantes quanto a Sicília, a Grã-Bretanha e Rodes. Hoje podemos apreciar as motivações desses homens e, portanto, podemos avaliar o papel desempenhado pelo pelagianismo numa das crises mais dramáticas da Igreja Cristã no Ocidente.