A religiosidade politeísta dos incas era
marcada pela adoração de vários elementos da natureza, como o sol, a lua, o
raio e a terra. No sistema de valores da religião inca, todos os benefícios
alcançados deveriam ser retribuídos com algum tipo de sacrifício que expressava
a gratidão dos homens. Por esse fato, observamos que os incas organizavam
vários rituais onde os sacrifícios, inclusive de humanos, eram comuns. Imagem: Teia
dos Fatos.
Dois túmulos
com dezenas de ossadas humanas encontrados em uma pirâmide no Peru abalam a
arqueologia latino-americana. Eles revelam que a refinada civilização mochica
fazia sacrifícios humanos para manter o poder e controlar o clima.
Os esqueletos estavam por
toda parte. Brotavam do chão como sinistras flores brancas, reluzindo ao sol do
deserto peruano. Onde quer que se pisasse ou cavasse, havia crânios macerados,
vértebras cortadas, fêmures partidos. “Escavar foi um pesadelo”, lembra-se o
arqueólogo canadense Steve Bourget. Em julho de 1996, depois de dois meses
limpando e catalogando osso a osso, mais de setenta corpos, Bourget descobriu
estar diante da maior evidência de sacrifícios humanos na América do Sul. Uma
vala comum onde os mochicas, que dominaram a costa norte do Peru entre os séculos I e VIII, despejavam
as vítimas de seus rituais – jovens guerreiros capturados em combate e imolados
em grandes cerimônias públicas. Essa violência exemplar, que intimidava a
população e sustentava o poder dos líderes mochicas, também tinha propósito
religioso.
Aquela civilização acreditava que o sangue humano era a
única forma de conter aquilo que agora conhecemos como El Niño, o fenômeno
meteorológico que, de tempos em tempos, enlouquece o clima do planeta.
É justamente ali, no árido litoral peruano, que as águas do Oceano
Pacífico esquentam acima do normal, provocando o El Niño. Nas épocas em que o
fenômeno era muito violento, as cidades mochicas sofriam com chuvas torrenciais
e enchentes. “O sacrifício humano
era uma forma de tentar devolver a ordem ao mundo”, disse Bourget.
Que
a prática fosse corriqueira os arqueólogos já desconfiavam. Cenas de animais
fantásticos como pumas esfaqueando prisioneiros são comuns nas pinturas que
adornam os potes de cerâmica daquele povo. Só que nunca ninguém havia
encontrado os corpos dos sacrificados. “Muita gente pensava que as narrativas
dos martírios fossem pura mitologia”, conta o canadense, que está escrevendo um
livro sobre a descoberta.
Não
fosse Bourget um especialista em arte mochica, o segredo dos supliciados
poderia ter ficado escondido sob o barro. Desde 1986 ele observava pinturas que
mostravam prisioneiros sendo atirados do alto de uma montanha. “Minha hipótese
era de que o morro fosse uma espécie de altar”, diz. Em 1995, ele foi
apresentado à Huaca de la Luna (Pirâmide da Lua, em português), situada a 6
quilômetros ao sul da atual cidade de Trujillo, onde deparou com uma plataforma
rochosa bem parecida com aquelas das pinturas nos vasos. Não deu outra. Era
mesmo o altar.
Codecs Tudela. Imagem: Teia dos Fatos.
A
iconografia mochica também serviu de pista para outro arqueólogo, o peruano
Santiago Uceda, da Universidade Nacional de Trujillo. No ano passado ele
encontrou um segundo fosso sacrificial, que começará a ser escavado em maio
próximo. O que haverá dentro dele? As descobertas tornam a Huaca de la Luna a
mais importante pista de que os estudiosos dispõem para decifrar o mistério dos
assassinatos rituais entre as antigas culturas americanas.
Execuções para ordenar o
mundo
Se
os mochicas tivessem escrita, seus best-sellers falariam das propriedades
milagrosas do sangue humano para resolver qualquer tipo de problema. Havia
sacrifícios para comemorar boas colheitas, para lamentar desastres naturais,
para controlar secas e chuvas e, acima de tudo, para manter o poder sobre a
sociedade.
Eles
não escreviam, mas pintavam. Seu tema favorito eram as batalhas rituais, que
tinham o objetivo de capturar prisioneiros para a imolação. “Os mochicas
fizeram do sacrifício humano um
elemento religioso central”, diz Steve Bourget. Os murais coloridos da Huaca de
la Luna mostram uma figura assustadora, com dentes de felino, que traz um
machado em uma mão e uma cabeça na outra. Seu nome é Ai-Apaec, também
chamado El Degollador em espanhol. O deus-sacrificador é uma figura comum
entre as culturas andinas. Supõe-se que o seu culto tenha começado há mais de 3
000 anos. “Os mochicas elevaram o degolador ao posto de divindade máxima”, diz
Santiago Uceda. Daí o nome. Ai-Apaec significa todo-poderoso na língua deles.
Faraós latinos
A
subida de Ai-Apaec ao poder no mundo espiritual aconteceu por volta do ano 50
da nossa era. Foi quando uma classe de sacerdotes-guerreiros tomou o poder nos
vales da costa norte peruana. Esses homens, conhecidos como lordes mochicas,
criaram uma confederação de cidades-estado que dominou um território de 400
quilômetros de extensão. Transformaram enormes faixas de deserto em terras
cultiváveis, construindo aquedutos tão eficientes quanto os da Roma antiga e
que até hoje são usados pelos camponeses peruanos. Os mochicas também
ergueram algumas das maiores construções da América pré-colombiana, como as
huacas de El Brujo e Del Sol. Esta última tinha mais de 40 metros de altura e
ocupava uma área superior à da famosa Pirâmide de Quéops, a maior do Egito. Sua
principal cidade, no vale do Rio Moche, chegou a ter 15 000 habitantes. Lá,
artesãos e ourives produziram as obras de arte mais espetaculares de toda a
América pré-hispânica.
Escavações no sítio arqueológico no Peru. Imagem: Super Interessante.
“Os
lordes criaram uma estrutura social incrivelmente complexa, baseada no controle
da autoridade religiosa, política e militar”, disse o arqueólogo Walter Alva,
diretor do Museu Brüning de Arte Pré-Colombiana em Lambayeque, Peru. Assim como
os faraós egípcios, eles reivindicavam para si mesmos o status de divindade. Os
cultos sangrentos eram demonstrações públicas intimidadoras. O Estado mochica
usava o terror religioso – com requinte – como instrumento de poder político.
Culto à fertilidade
Também
como os egípcios, os mochicas habitavam um deserto onde a água era o bem mais
precioso. Como viviam da agricultura, dependiam inteiramente dos rios que
descem da Cordilheira dos Andes. O calendário religioso acompanhava o ciclo das
chuvas nas montanhas. Seus momentos mais importantes eram os cultos de
fertilidade, duas vezes por ano, na chegada do verão e do inverno.