O grande gênio das máquinas que poderia ter
adiantado uma Revolução Industrial em 1700 anos
Costuma-se imaginar a Antiguidade Clássica
como uma espécie de estagnação tecnológica. Entre as Guerras Greco-Persas e a
queda do Império Romano, são quase 900 anos em que nada de novo parece ter sido
criado. Por isso, não deixa de ser inquietante descobrir que já existiam coisas
como portas automáticas e motores a vapor. Como isso não levou a uma revolução
industrial 1700 anos adiantada?
Muitas obras de Heron de Alexandria, um dos
maiores engenheiros e matemáticos da época, sobreviveram por intermédio dos árabes
e se tornaram conhecidas no Ocidente na Renascença. "Não sabemos muito
sobre sua vida, e estudos acadêmicos foram poucos e esparsos", diz
Serafina Cuomo, da Universidade de Cambridge. Heron viveu entre cerca dos anos
10 e 75, e provavelmente tinha um cargo no Mouseion, a primeira grande
instituição de ensino do mundo, ligada à Grande Biblioteca de Alexandria.
Precursor de Leonardo da Vinci, Heron
inventou máquinas movidas por pesos, manivelas, água ou fogo. Como o gênio
italiano, também descreveu equipamentos de guerra, mas sua contribuição foi
escassa nesse quesito, pois viveu no auge da Pax Romana, período em que os
conflitos se limitavam a insurreições dos povos dominados. A natureza de suas
invenções explica por que, afinal, não houve uma revolução industrial na
Antiguidade: quase todas são instrumentos para encantar e divertir, e não para
substituir o trabalho manual. "No fundo, é simples: não houve revolução
industrial porque havia escravidão", resume o historiador Pedro Paulo
Funari, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Propor que máquinas
fizessem o trabalho dos prisioneiros implicaria que esses deveriam ser
trucidados. "Na guerra, você mata os inimigos ou os poupa para serem
escravos. Portanto, era considerado um ato de humanidade preservar a vida de
alguém que poderia ter matado você", diz Funari.
ÓRGÃO DE VENTO
Exemplo de pioneirismo na energia eólica, foi
baseado no hidraulis, um órgão de água criado por Ctesíbio no século 3 a.C.
Nele, o líquido, vindo de aquedutos, era usado para impulsionar o ar através
dos tubos, e o músico usava um teclado para controlar as notas. Heron
reimaginou o aparelho para funcionar com um cata-vento que movia um pistão.
Foi, portanto, não apenas o primeiro órgão a ar mas também a primeira máquina a
usar energia eólica. Aparentemente, a tecnologia foi perdida. Os moinhos de
vento só surgiram na Europa no século 12.
MOTOR A VAPOR
Ninguém viu função no invento que fundaria o
mundo moderno, embora a eolípila (“bola de Éolo”, deus do vento) tenha sido ao
mesmo tempo o primeiro motor a vapor e a jato da história. Seu princípio é
usado hoje nas turbinas que movem reatores nucleares, usinas termoelétricas e
navios. Consistia numa caldeira ligada por tubos a uma esfera. Esta, com dois
canos de escape para o vapor, girava rapidamente quando a água fervia. Heron
menciona “figuras dançantes”, provavelmente um brinquedo ou decoração de templo
movido pela máquina. Fora isso, nem o inventor nem ninguém em sua época parece
ter se interessado pelo potencial de transformar calor em movimento, alcançado
pela primeira vez na história e a partir do qual seria fundado o mundo
industrial, 1700 anos depois.
TEATRO DE
AUTÔMATOS
Um dos brinquedos mais impressionantes
descritos pelo engenheiro foram os diversos “teatros de autômatos”, plataformas
nas quais pequenas figuras, movidas a água, vapor ou pêndulos, executavam ações
inspiradas em peças de teatro. Eram como robozinhos encenando uma peça inteira.
Em uma dessas engenhocas, Hércules atacava com uma clava um dragão que cuspia água
ao ser atingido. O mais complexo era uma coluna que se movia para a esquerda e
a direita, com personagens que giravam, espirravam líquido e andavam,
representando Nauplius, uma tragédia passada após a Guerra de Troia. O objeto,
movido por um peso que afundava lentamente em uma coluna de grãos, tinha até
trilha sonora, tocando pequenos sinos e tambores ocultos durante seu movimento,
que era programável a partir de mudanças nas cordas internas – novamente, o
primeiro exemplo de algo do gênero.
MÁQUINA DE VENDAS
O Egito da época de Heron tinha uma forma
peculiar de religião, um sincretismo entre divindades gregas e egípcias. Em
ambas as tradições, água benta era usada em rituais de purificação. Assim como
as máquinas de refrigerante atuais, o primeiro mecanismo automático de vendas
dispensava um cálice do líquido abençoado em troca de uma moeda – ela caía numa
plataforma, que abria uma válvula por alguns segundos, até escorregar para um
depósito, fechando-a novamente.
BOMBA DE PRESSÃO
Com ela, bombeiros romanos passaram a contar
com veículos de combate a incêndio. Água encanada já era uma comodidade no
mundo greco-romano, mas todo o sistema era baseado na gravidade, com poucas
partes pressurizadas. Isso queria dizer que a água só se movia para baixo, um
problema grave em cidades como Roma, com edifícios de até 10 andares. Em 64,
durante o reino de Nero, o conhecido Grande Incêndio destruiu dois terços dos
prédios da capital, com os vigiles, membros das brigadas de combate às chamas,
incapazes de atingir os pisos superiores. Foi pensando nisso que Heron inventou
a primeira bomba pressurizada.
SERINGA
PORTA AUTOMÁTICA
Outra criação capaz de converter calor em
movimento, basicamente era uma forma de fazer os visitantes dos templos
acreditarem no poder milagroso dos deuses. Quando o fogo no altar era aceso, o
ar de uma câmara abaixo dele se expandia com a temperatura elevada, forçando a
água de um reservatório a seguir para um balde, cujo peso fazia com que as
portas se abrissem. Esse conjunto diz muito sobre a forma como a tecnologia era
vista na época de Heron: uma espécie de poder sobrenatural, não uma comodidade
para a vida cotidiana. No Mouseion, máquinas eram usadas pelos professores não
só para demonstrar princípios físicos como para convencer seus estudantes do
valor da Filosofia, uma disciplina ainda não separada da Ciência.
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