Gravura do Lobisomem atacando uma mulher. Imagem: Legio Victrix.
por Gwendolyn Toynton
O simbolismo
lupino é considerado como um dos pontos definidores das Tradições
Indo-Europeias, e de fato é difícil mencionar uma civilização indo-europeia na
qual o lobo não ocupasse um papel de proeminência; do nascimento de Rômulo e
Remo e da fundação de Roma até os tempos modernos o lobo sempre ocupou uma
posição eminente de privilégio na mente do indo-europeu. Isso é até evidente
hoje - mesmo Hollywood não pode ignorar a figura solitária do lobo à noite,
pois o lobisomem sobreviveu no mito popular até hoje. Um número de divindades
importantes, indo de Odin ao grego Apollo, podem ser encontrados com um lobo ao
seu lado. Que o lobo, e ocasionalmente, seu primo canino o cão, foram
importantes animais rituais não se pode duvidar; em tempos ainda que o papel importante
desses animais tivessem cruzado do mundo natural dos ermos ao mundo civilizado
do homem, onde as fronteiras entre humano e animal se tornaram embaçadas. Um
desses ocupantes desse espaço transicional é o lobisomem; outra figura é a do
berserker nórdico ou teutônico. Ainda mais velho, há o relato do vratya,
datando dos elementos mais arcaicos da sociedade védica, quase completamente
enterrado pelo passado. O berserker e o vratya juntos constituem o que é talvez
uma das tradições mais antigas, pois ambos partilham de um número de
características significativas em comum, que podem ser encontradas dispersas
entre outros povos indo-europeus também; fraternidades marciais existiram entre
os (indo-europeus) gregos, citas, persas, dácios, celtas e germânicos onde
iniciados magicamente assumiam traços lupinos. [1] Conhecidos parcialmente por
sua fúria em combate, parcialmente pelo uso de meios mágicos de subjugar o
inimigo, esses mitos persistem hoje no mito popular do lobisomem. Ainda que a
interpretação literal do berserker seja "guerreiros com camisas (sekr) de
urso", também se considerava os berserkers capazes de mudar sua forma
naquela de um lobo. [2] Para o propósito desse escrito nós nos concentraremos
somente no simbolismo do lobo.
O fato de que o
berserker estava fortemente ligado a lobos além de possuir a já mencionada
associação com ursos é ilustrada pelo uso de seu título alternativo
"casaco-de-lobo". [3] É provável que esse nome fosse usado em conexão
com o uso de algum símbolo do lobo tal como um cinto de pele de lobo, pois a
tradição popular na Noruega recorda que "transmorfos", eram homens
que se transformavam em feras à noite, e cingiriam um cinto de pele de lobo
antes de deixar a casa. [4] O traje tradicional do casaco de lobo é também
atestado pelo Hrafnsmál, um poema composto por volta de 900 d.C., no qual os
berserkers são descritos como os guerreiros privilegiados de Harald Fairhair de
Vesthold na Noruega; eles são descritos como recebendo ricos presentes do rei
por causa de suas ferozes qualidades combativas, e também referidos como
"casacos-de-lobo": [5]
Casacos-de-lobo
eles são chamados, aqueles que portam espadas
Manchadas com
sangue na batalha.
Eles avermelham
lanças quando vem à matança,
Agindo juntos
como um. [6]
A conexão entre
o berserker e o simbolismo lupino/canino também pode ser vista nos Eddas
islandeses que nomeiam Hundingr como o rei de Hundland, "Terra do
Cão". [7] Similarmente, o Widsith anglo-saxão pré-século X menciona os
hundingar como um povo com cabeças de cão; enquanto os as fraternidades
militares de "lobisomens" (ulfhednar) das tribos germânicas lutaram
junto a "meio-cães" (halfhundingas). [8]
Um dos papéis
primários do berserker estava obviamente predominantemente conectado à guerra,
na qual eles são lembrados como oponentes terríveis na batalha, não lutando
como homem ou animal, mas como uma criatura que possuía características de
ambas. O Ynglingasaga descreve o berserker como segue: "Eles seguiram sem
escudos, e eram loucos como cães ou lobos, e mordiam seus escudos, e eram
fortes como ursos ou touros; homens eles matavam, e nem fogo ou aço podia
detê-los; e a isso se chamava a fúria do berserker". [9] Isso também é
referido como "entrar em berserk" (berserkgangr). [10] Não há dúvida
quanto ao fato de que o berserker era um adversário feroz e assustador - a
dúvida permanece na significância do lobo em si, e na natureza da transformação
- seria isso simplesmente um artifício tático para chocar o inimigo, ou haveria
um raciocínio mais profundo por trás dessa transformação que beirava a ser de
essência espiritual? Georges Dumézil vê o processo como uma fusão entre as duas
coisas, tanto tática como espiritual.
"O texto
da Ynglingasaga acima diz muito, mas não o bastante: a conexão que o berserker
de Odin tinha com lobos, ursos, etc., era não somente uma semelhança em
questões de força e ferocidade; em um certo sentido eles próprios eram animais.
Seu furor exteriorizava um segundo ser que vivia dentro deles mesmos. Os
artifícios de de trajes (cf. a tincta corpora dos harii), os disfarces aos
quais o nome berserker e seu paralelo ulf hednar ("homens com pele de
lobo") parecem aludir, servem somente para auxiliar, para afirmar essa
metamorfose, para imprimi-la sobre amigos e inimigos assustados (novamente, cf.
Tácito, Germânia, 38.4, em conexão com os esforços dos suevos em inspirar
terror)". [11]
Outro aspecto
do berserker, aqui nomeado como harji e descrito por Tácito, fornece mais uma
citação em apoio ao uso tático para aterrorizar o inimigo.
"Eles
pintam seus escudos e corpos de negro, e escolhem noites escuras para suas
batalhas. A horripilante sombra de tal exército diabólico inspira um pânico
mortal, pois nenhum inimigo pode resistir a uma visão tão estranha e
demoníaca". [12]
Não só isso
pinta uma visão terrível, mas também atesta à visão de um ataque mágico ou
demônico, que ocorre à noite. A noite, é claro, é um tempo de feitiçaria e
magia, que também é parte do imaginário do berserker. Os usos de motivos
animais são um traço comum de tradições xamânicas, com as quais a tradição
nórdica partilha um certo número de traços. Em tal sociedade, era considerado
problemático atribuir mais do que uma "alma" a uma pessoa. A
"forma exterior", porém, era considerada o traço mais distintivo da
personalidade. [13] Dumézil elabora isso examinando a linguística da raiz
"hamr" e examinando seu uso contextual no imaginário do berserker.
"Uma
palavra nórdica - com equivalentes em inglês antigo e alemão antigo -
imediatamente introduz o essencial nessas representações: hamr designa (1) uma
veste; (2) a "forma exterior"; (3) (mais comumente o derivativo
hamingja) "um espírito ligado a um indivíduo" (na verdade uma de suas
almas; cf. hamingja "acaso"). Há alguns homens, pouco notáveis, que
são declarados como einhamr: eles possuem somente um único hamr; então alguns,
além de seu heim-hamr ("seu próprio exterior fundamental"), podem
assumir outro hamr através de uma ação designada pelo verbo reflexivo hama-sk;
eles são capazes de se transformar (ham-hleypa). Agora, o berserker é o eigi einhamr
exemplar, "o homem que não é de um único hamr". [14]
O sentido aqui
é claro - duas almas habitam o mesmo corpo. Um é o espírito de um humano, o
outro de um lobo. O berserker, assim, não é totalmente humano nem animal - como
seu descendente o lobisomem ele é uma criatura liminar que existe em um mundo
crepuscular onde as fronteiras entre homem e fera estão mal definidas - e ainda
assim ambos caminhos estão fechados para ele, pois o berserker jamais pode
pertencer verdadeiramente a qualquer reino. Como o deus patrono do berserker,
Odin, eles são criaturas xamânicas associadas com as extremidades de modos
normais de comportamento, criando estados mentais alterados. Esse aspecto do
deus Odin é retratado pelas origens de seu próprio nome, pois o germânico
Wodanaz vem da raiz indo-europeia "wat-". [15] Não só é Odin
associado com os modos mais cerebrais de xamanismo, o deus é descrito no
Ynglingasaga como possuindo a arte de metamorfose. [16] Odin é aqui descrito
como possuindo o poder de mudar de aparência e forma à vontade. [17] Ainda que
essa perícia seja encontrada em grau menor na representação do berserker,
parece que eles ganharam a habilidade de possuir duas almas no mesmo corpo, e
consequentemente a habilidade de flutuar entre elas, como reflexo de sua
associação com Odin que é o deus patrono do berserker. O berserker nórdico
antigo se situa claramente em uma antiga tradição de guerreiros que eram
transmorfos, capazes de se transformarem em lobos raivosos em batalha. [18]
Tem sido
previamente deduzido por autores que o berserker é único às tradições nórdica e
germânica. Isso, porém, é uma suposição incorreta pois um análogo cognato à
figura do berserker pode ser encontrado em um componente extremamente arcaico
da religião védica. Essa entidade obscura, da qual muitas facetas de seus
rituais e existência permanecem desconhecidos, é chamado pelo título de vratya.
Até tempos recentes muito pouco era sabido da história do vratya que se supunha
que eles fossem pouco mais do que uma coleção de sem-castas da cultura
bramânica, habitando nas florestas e às margens da sociedade aceitável, e que
eles fossem ao mesmo tempo reverenciados e abominados. Foi até mesmo assumido
uma vez que os vratya fossem não-indo-europeus em origem. Ainda que essa
afirmação possa agora ser presumida como falsa, é certamente verdadeiro que
tanto elementos do tantrismo como do yoga podem ser encontrados nas práticas do
vratya, que bem pode ter representado uma contingência xamânica ou
proto-yoguica da casta ksatriya. Evidência de uma conexão entre as práticas do
vraya e aquelas encontradas no tantrismo e no yoga podem ser vistas no fato de
que um livro inteiro do Atharva Veda (XV) é devotado a eles, e dentro dele
podem ser encontradas afirmações dizendo que os vratya eram praticantes de
ascetismo, estavam familiarizados com uma disciplina de respirações e
costumavam homologizar seus corpos com o macrocosmo. [19] Eliade chega tão
longe a ponto de dizer que é permissível supor que os vratyas representavam uma
fraternidade misteriosa pertencendo à guarda avançada dos invasores arianos.
[20] Em 1962 novas evidências também foram trazidas à luz por Jan Heesterman
descrevendo o vratya como um componente extremamente arcaico da sociedade
sacrificial védica cujo papel foi gradualmente suprimido com a ascensão da
varna brâmane como especialistas sacrificiais. [21] Nesse artigo Heesterman
apresenta a hipótese de que os vratyas foram então degradados na literatura
posterior em um molde antinômico e antibramânico, com seus ritos sattra
sobrevivendo nos ritos de iniciação védica e em certos períodos na vrata, ou
voto do brahmacarin, o estudante védico. [22] Similarmente no Indra Sunahsakha
há uma referência aos vratyas, que reivindica que seu status sócio-religiosos
foi outrora tão elevado quanto o dos brahmins. [23] Com a ascensão da casta
brâmane, o papel dos vratyas no ritual foi reduzido, eventualmente a tal ponto
que o próprio termo se tornou degradado e os próprios vratyas foram julgados
como ritualmente impuros. Esse declínio é atestado pelo fato de que há um
ritual que é especificamente realizado para restaurar os membros dos vratyas de
volta à sociedade bramânica, removendo a impureza de suas ações passadas.
Como os
berserkers, os vratyas são às vezes referidos como cães em um certo número de
passagens. A mais notável dessas é uma passagem no Chandogya Upanisad... A
passagem é chamada o "Cântico [Samavédico] dos Cães". [24] Os vratyas
não são somente fortemente associados com a imagem canina (os textos
repetidamente se referem a eles como "Cães") eles são também
fortemente conectados com o deus védico Rudra, que age não só como deus da
floresta, mas também é uma divindade conectada com o xamanismo e a tempestade -
tanto quanto o seu equivalente nórdico Odin. Falk dá um passo a mais na comparação
das duas divindades, afirmando que os sacrifícios de doze dias dos vratyas
védicos eram o cognato ritual de outros fenômenos indo-europeus, incluindo a
Lupercalia romana e as doze noites de Natal, na qual o caçador selvagem
Wode-Wodin vagava pelas florestas do norte da Europa. [25] Ademais, quando os
vratyas sacrificam uma vaca em nome de Rudra, se diz que eles são seus
"cães" ou "lobos", e simbolismo lupino ou canino é quase
tão abundante no caso védico de Rudra quanto no de Indra. [26] Paralelos entre
os cultos de Rudra, o caçador selvagem da floresta, e aqueles do Odin/Wodin
germânico, bem como do iraniano Aesma e um número de outros deuses
indo-europeus associados com as doze noites do solstício de inverno, são também
significativos aqui. [27]
Há elemento
comum no simbolismo do que examinamos até agora - o berserker, o vratya são
ambos um tipo de pessoa que não se encaixam nos papeis de civis normais. Tanto
o berserker como o vratya eram simultaneamente temidos e reverenciados pela
comunidade. Como figuras fortes peritas em magia e guerra, o público os
admirava; mas havia também um sentimento de medo despertado por essas figuras.
Primeiramente eles eram temidos por seu poder, que nem sempre esteve
completamente sob o controle do berserker. Sempre houve perigo em se associar a
eles, pois sua natureza animal, como a do lobo é imprevisível, e diferente de
seu primo canino, o lobo não foi domesticado. Ele é, portanto, perigoso. Essa
atitude de ambiguidade em relação ao berserker e o vratya também se estendeu a
outras áreas - parece que ambas figuras existiam em uma linha de fronteira
entre papéis de casta claramente definidos. Eles são uma síntese entre membros
da casta guerreira e a casta sacerdotal, tanto nos sistemas de casta hindu e
nórdico. Dado que o vratya é uma figura particularmente arcaica, isso sugere
que o legado original tanto do vratya como do berserker podem ter suas raízes
em um tempo anterior ao da separação (e consequente antagonismo) das duas
castas primárias. Eles pareciam operar sob um papel dual de serem guerreiros
que eram também magos - isso é especialmente claro no mito nórdico em que os
berserker são retratados como os camaradas de Odin, e no caso dos vratya também
é claramente afirmado por Heesterman que eles foram figuras primitivas do
sacerdócio védico que veio a ser substituído pela ascensão da casta brâmane.
Também, no símbolo do hamr ou veste exterior, nós vemos um simbolismo dual
assumindo lugar - duas almas habitam um corpo, um lobo, um humano. O vratya e o
berserker são corretamente classificados como jamais sendo um ou o outro, mas
uma síntese perigosa dos dois. Todas as três dessas questões podem ser
exprimidas por um simples conceito - o simbolismo do vratya e do berserker é
sempre liminar. A palavra liminar significa um "estado intermediário"
e foi cunhada por Arnold van Gennep para explicar estados que são
"intermediários" ou ambíguos.
"Os
atributos da liminaridade ou da persona liminar ("pessoas de limiar")
são necessariamente ambíguos, já que essa condição e essas pessoas evitam ou
ultrapassam pela rede de classificações que normalmente localizam estados e
posições em um espaço cultural. Entidades liminares não estão nem aqui nem lá;
elas estão em meio a e entre posições designadas e ordenadas por lei, costume,
convenção e cerimonial". [28]
Tais estados,
ademais, não são somente amplamente característicos do caráter de indivíduos; a
liminariedade pode ser vista em termos de tempos e eventos. Qualquer coisa
transitória pode ser um momento liminar - exemplos disso podem ser os períodos
de transição do dia para a noite (amanhecer e/ou anoitecer) ou especificamente
no caso do vratya e do berserker durante os tempos em que é indistinguível em
relação a serem humanos ou lupinos em natureza. Um exemplo tal da transição
entre dia e noite sendo conectadas com a metamorfose do berserker pode ser
visto na Saga de Egil que recorda a vida de um berserker "aposentado"
chamado Úlfr:
"Após
muitas gloriosas campanhas ele se casou, ampliou sua riqueza, se manteve
ocupado com seus campos, seus animais, suas oficinas, e conquistou ampla estima
pelo bom conselho que ele distribuía com tanta liberalidade. "Mas às vezes
quando a noite caía, ele se tornava carrancudo (styggr) e poucos homens podiam
conversar com ele então; ele cochilava à tarde (var hann kveldsvaefr); o rumor
se espalhou de que ele estava hamrammr (isto é, que ele se metamorfoseava e
vagava pela noite); ele recebeu o nome de Kveldulfr, Lobo do Anoitecer".
[29]
Nesse trecho é
amplamente ilustrado que o berserker era perigoso mesmo quando ele não mais
ocupava o papel de ser um berserker; mesmo "aposentado" o berserker
permanece em um papel liminar, separado dos modos normais de civilização. A
própria transformação, sendo do período do dia para a noite pode ter também
ecos com os vratya cujos rituais secretos na floresta eram réplicas do ano
solar, realizados no inverno para restaurar o poder do sol. No trecho acima,
porém, uma diferença clara entre o berserker e o vratya pode ser vista - o
berserker, ainda que "aposentado" não retornou completamente à
sociedade normal, enquanto um antigo membro dos vratya é cerimonialmente
restaurado e purificado antes de reentrar na sociedade bramânica. É a natureza
liminar de seu ser que os torna perigosos; paradoxalmente é também a natureza
liminar de seu ser que lhes dá poder. Outra ilustração de um período liminar
pode ser visto em estados psicológicos - por exemplo, um iniciado antes da
performance de um ritual de iniciação é considerado uma pessoa normal, após o
ritual uma mudança de algum tipo se presume ocorrer na psiquê do iniciado.
Ainda que se
saiba pouco das práticas iniciáticas dos vratya, a Saga Volsunga descreve o que
Eliade crê ser um processo de iniciação para o berserker.
"Os temas
iniciáticos aqui são óbvios: o teste de coragem, resistência a sofrimento
físico, seguido por transformação mágica em lobo. Mas o compilador da Saga
Volsunga não estava mais consciente do significado original da transformação.
Sigmund e Sinfjotli encontram as peles por acaso e não sabem como retirá-las. Agora,
a transformação em lobo - isso é, o ritual de trajar uma pele de lobo -
constituía o momento essencial da iniciação em uma sociedade secreta de homens.
Ao se por a pele, o iniciado se assemelhava ao comportamento de um lobo; em
outras palavras, ele se tornava um guerreiro selvagem, irresistível e
invulnerável. 'Lobo' era o apelido dos membros das sociedades militares
indo-europeias". [30]
O evento aqui
ao qual Eliade está se referindo, e consequentemente percebendo como um rito
iniciatório ocorre logo cedo na Saga, e pode ser encontrado no conto no qual
Sigmund e Sinfjotli se vestem com pele de lobo.
"Uma vez,
eles foram novamente para a floresta para conseguir para si algumas riquezas, e
eles encontraram uma casa. Dentro dela estavam dois homens adormecidos, com
grossos anéis de ouro. Um feitiço havia sido lançado sobre eles: peles de lobo
estavam penduradas sobre eles na casa e apenas a cada dez dias eles podiam
trocá-las. Eles eram os filhos de reis. Sigmund e Sinfjotli colocaram as peles
e não conseguiam tirá-las. E o estranho poder estava lá como antes: eles
uivavam como lobos, ambos compreendendo os sonhos". [31]
O fato de que a
transformação não é puramente física é aludido pelo fato de que uma vez que
eles vestiam as peles de lobo, eles não mais se comunicavam como homens, mas ao
invés "uivavam como lobos". Ademais, eles compreendiam o sentido por
trás dos sons, o que significa que não era simples mímica do uivo dos lobos;
ele estava sendo usado como forma de comunicação. Isso indica que durante o
processo Sigmund e Sinfjotli não estavam somente imitando a forma do lobo - uma
mudança psicológica também havia se dado, permitindo a eles pensarem como lobo.
O fato de que os dois homens descritos dormindo aqui possuírem grossos anéis de
ouro também pode ser significativo - porém a tradução da Saga Volsunga citada
não descreve a localização dos dois anéis. Em outra descrição do berserker, nós
encontramos uma clara menção dos anéis, não de ouro mas de ferro, e eles também
estavam conectados com os ritos iniciáticos do berserker. Em uma passagem sobre
os chatti, uma tribo germânica descrita por Tácito no século I, a seguinte
citação pode ser encontrada.
"Eles
usavam anéis de ferro ao redor dos pescoços, e só podiam descartar esses após
terem matado um inimigo. Alguns de fato escolhiam usá-las por toda sua vida,
desde que eles pudessem seguir lutando, e 'para tais velhos guerreiros sempre
resta começar a batalha'". [32]
Assim os anéis
ao redor dos pescoços dos que dormiam podem não ser puramente ornamentais, mas
ao invés uma indicação de status. Como a tradução consultada não menciona o
local dos anéis, porém, nada de definitivo pode ser concluído. Não é
especificado no texto se esses anéis na Saga Volsunga eram usados ao redor do
pescoço ou sobre a mão. Parece provável porém, que no contexto da Saga, essas
seriam anéis de pescoço, que são usados pelos berserker para mostrar seu elo ao
deus Odon. Sem uma descrição do local dos anéis, porém, nada de definido pode
ser concluído nesse sentido.
O perigo das peles
de lobo e seu papel ambíguo na sociedade é também relatado no conto de
Sinfjotli e Sigmund. A natureza animal do lobo não está sempre plenamente sob
controle, e isso pode ser visto no trecho da Saga Volsunga em que Sigmund ataca
Sinfjotli.
"'Você aceitou
ajudar a matar sete homens. Em sou uma criança em idade perto de você, mas eu
não pedi ajuda para matar onze homens'. Sigmund saltou sobre ele tão ferozmente
que Sinfjotli cambaleou e caiu. Sigmund o mordeu na jugular. Naquele dia eles
não foram capazes de sair das peles de lobo. Sigmund colocou Sinfjotli sobre
seu ombro, o levou para a cabana, e sentou sobre ele. Ele amaldiçoou as peles
de lobo, implorando aos trolls que as levassem embora". [33]
A natureza do
homem está em certos momentos, em contraste em oposição a em harmonia, com a
natureza do lobo. A natureza do lobo, em combate, é extremamente valiosa, ela é
um grande poder. Se ela não for totalmente controlada, porém, ela pode se
tornar uma grande maldição, como visto do conto de Úlfr, o berserker
aposentado. Aqui nós também vemos as peles de lobo sendo amaldiçoadas, e de
fato, uma vez que Sinfjotli e Sigmund conseguem remover as peles de lobo, eles
as queimam no fogo.
"Então
eles foram para o lar subterrâneo e ficaram lá até que tivessem que tirar as
peles de lobo. Eles pegaram as peles e as queimaram no fogo, esperando que
esses objetos não os causariam mais dano". [34]
Para concluir,
parece haver pouco espaço para dúvida de que há um caso justificado para
comparação entre o berserker e a figura do vratya - ambos ocupam um papel dual
similar, como guerreiro e sacerdote ou xamã. Ambos eram não somente respeitados
pela população em geral, mas também temidos por ela. Eles também partilham do
simbolismo canino e/ou lupino, e ambos são associados a divindades similares,
pois Rudra e Odin também partilham um certo número de traços comuns. Talvez a
principal diferença entre as duas figuras esteja no contraste entre seus papéis
por um longo período de tempo (tendo em mente que os vratya existiam ao nível
mais básico do substrato védico, fazendo deles extremamente arcaicos). O
berserker não sofria do mesmo estigma social que a figura do Vratya. Um
berserker aposentado era temido, por ele poder continuar a se transformar
contra sua vontade, mas ele não era considerado como um objeto de
"impureza" como os vratya vieram a ser considerados. O vratya, talvez
graças à natureza de alguns de seus rituais, provavelmente conflitaram
diretamente com a ascensão da casta brâmane, pois algumas referências textuais
antigas atribuem ao vratya um status social extremamente elevado - em textos
subsequentes o período védico posterior, o vratya é considerado como quase
totalmente impuro e não muito melhor considerado do que o sem-casta médio da
sociedade. O berserker parece ter sido poupado dessa degradação em relação a
sua posição social. Em termos de comparação direta entre os dois, o fator mais
importante, além da ligação óbvia com o lobo, é a natureza liminar de seu
papel. Como previamente afirmado, eles antecedem à separação védica das castas
primárias e assim ocupam uma posição que não é nem de sacerdote, nem de
guerreiro. Similarmente o berserker contém duas almas; uma lupina e uma humana
- novamente sua natureza é liminar, pois não se pode dizer que ele seja nem completamente
fera, nem completamente homem. Ainda que não possa ser dito nesse ponto se os
vratya também usavam uma forma de metamorfose em batalha ou não, eles também
são lembrados como lobos ou cães, e utilizavam o ermo da floresta para
performance ritual. Assim que essa forma de liminariedade não possa ser
verificada com segurança, o que é certo é que eles também ocupam um papel
dualista, sendo tanto puros como impuros. Assim também se pode dizer que eles
ocupam um papel liminar, de uma ambiguidade perigosa e imprevisível.
[1] White, D.G., Myths of the Dog-Man, University of Chicago Press, Chicago, 1999, 27
[2]Eliade, M., Essential Sacred Writings From Around the World, New York, HarperSanFrancisco, 1992, 294
[3] Ellis Davidson, H.R , Myths and Symbols in Pagan Europe: Early Scandinavian and Celtic Religions, Syracuse : SyracuseUniversity Press, 1988, 79
[4] Ibid, 79
[5] Ibid, 79
[6] Ibid. 79
[7] White, D.G., Myths of the Dog-Man, University of Chicago Press, Chicago, 1991 61
[8] Ibid. 61
[9] Eliade, M., Essential Sacred Writings From Around the World, New York, HarperSanFrancisco, 1992, 294.
[10] Ellis Davidson, H.R , Myths and Symbols in Pagan Europe: Early Scandinavian and Celtic Religions , Syracuse : SyracuseUniversity Press, 1988,80
[11] Dumézil, G., The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, 141
[12] Ellis Davidson, H.R., Gods and Myths of Northern Europe, Penguin Books, Middlesex, 1964. 67
[13] Dumézil, G., The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, 141
[14] Ibid. 141-142
[15] Gerstein, M.R., The Germanic Warg: The Outlaw as Werewolf, Myth in Indo-European Antiquity, Larson, G.J., ed., University of California Press,California, 1974.143
[16] Dumézil, G., The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, 142
[17] Ibid. 143
[18] Gerstein, M.R., The Germanic Warg: The Outlaw as Werewolf, Myth in Indo-European Antiquity, Larson, G.J., ed., University of California Press,California, 1974 156
[19]Eliade, M, Trask, W.R, trans , Yoga: Immortality and Freedom, New Jersey, Princeton University Press, 1990, 103
[20] Ibid. 105
[21] White, D.G., Myths of the Dog-Man, University of Chicago Press, Chicago, 1991 96
[22] Ibid. 96
[23] Ibid. 100
[24] Ibid. 96
[25] Ibid. 98
[26] Ibid. 101
[27] Ibid. 101
[28] Turner, V. W., The Ritual Process, Aldine Publishing Company, Chicago, 1995, 95
[29] Dumézil, G., The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, 142
[30] Eliade, M., Essential Sacred Writings From Around the World, New York, Harper San Francisco, 1992, 296
[31] Byock, L. J., Trans., The Saga of the Volsungs, Penguin Books, London, 1990, 44
[32] Ellis Davidson, H.R, Gods and Myths of Northern Europe, Penguin Books, Middlesex, 1964, 66
[33] Byock, L. J., Trans., The Saga of the Volsungs, Penguin Books, London, 1990, 45
[34] Ibid. 45
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