King James, a versão protestante mais usada no mundo. Imagine-se na situação de um líder da Sociedade Bíblica num país como a Turquia, com a tarefa de publicar uma nova tradução da Bíblia que possa ser aceita por evangélicos, pela Igreja Católica Romana, e pelas várias igrejas da tradição ortodoxa, entre elas a Igreja Ortodoxa Grega. O que você faria? Como é sabido, esses três grupos de cristãos não publicam a Bíblia com a mesma configuração ou o mesmo número de livros, especialmente no que diz respeito ao Antigo Testamento. Uma saída fácil seria dizer: Publique-se uma Bíblia para cada confissão ou igreja! No entanto, os cristãos são minoria absoluta na Turquia, formando um por cento da população. Três edições diferentes da Bíblia seriam inviáveis, do ponto de vista econômico. O que fazer?
Um consultor de traduções das Sociedades Bíblicas Unidas encontrou uma solução, em diálogo com as igrejas envolvidas e, por fim, com a concordância delas. A primeira decisão foi colocar os livros que os protestantes chamam de apócrifos e que os católicos denominam de deuterocanônicos (Tobias, Sabedoria, Judite etc.) numa seção à parte, entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Tal procedimento, que já havia sido adotado por Martinho Lutero, no século 16, é aceitável à Igreja Católica Romana, em se tratando de edições interconfessionais. Há um documento, assinado conjuntamente pelas Sociedades Bíblicas Unidas e o Vaticano, datado de 1987, que trata dessa questão. Mas o que fazer com aqueles livros a mais, fora da lista dos apócrifos, que são aceitos apenas pelas igrejas ortodoxas? Sim, livros como 3Macabeus, 4Macabeus, e um salmo adicional, o Salmo 151?
A solução encontrada foi colocá-los na mesma seção de livros entre os dois testamentos, só que depois daqueles que são aceitos tanto livros ficou assim: Tobias, Judite, Ester (grego), Sabedoria, Siraque, Baruque, Carta de Jeremias,A oração de Azarias e o Cântico dos três jovens, 3Macabeus, 1Esdras (3Esdras, na Vulgata), 4Esdras, A oração de Manassés, Salmo 151, 4Macabeus. A colocação dos livros apócrifos num bloco à parte é aceitável a (muitos) protestantes; a colocação de livros como Tobias, Judite, Sabedoria, Siraque no topo da lista agrada a católicos-romanos; e a inclusão de outros livros, ainda que ao final, atende aos anseios das igrejas ortodoxas. E, na prática, cada igreja lê os livros que quiser. Claro, tal solução para um problema bem concreto num país de maioria muçulmana e minoria cristã seria totalmente inaceitável para, quem sabe, a maioria dos evangélicos no Brasil. Mas ela coloca diante de nossos olhos a complexa questão do cânone.
A história dos cânones
Em se tratando de cânone, existem duas histórias que precisam ser contadas: a do cânone do Antigo Testamento, e a do cânone do Novo Testamento. O cânone do Novo Testamento é, de modo geral, o mesmo em todas as denominações cristãs: são aqueles 27 livros e ponto final. Mas, no caso do Antigo Testamento, as opiniões se dividem. Num certo sentido, é chocante ver que os cristãos não conseguem concordar quanto à extensão da Bíblia, especialmente do Antigo Testamento. Por que isso é assim? Essencialmente, porque a própria Bíblia não fecha esta questão. Ela não nos dá a extensão do cânone. E porque a Bíblia não define essa questão, quem aceita o princípio do “somente a Escritura” precisa conviver com essa indefinição. Para quem aceita a autoridade de concílios, como é o caso da Igreja Católica Romana, a questão está definida, pelo menos desde o Concílio de Trento, em 1546. Para quem se norteia pela Confissão de Westminster, de 1647, a questão também está resolvida, na medida em que essa confissão cita os livros aceitos como canônicos, e que são os livros que hoje, de modo geral, aparecem em todas as edições protestantes da Bíblia. Outros evangélicos, quando perguntados sobre a extensão do cânone, só podem responder que “os livros canônicos são os livros inspirados por Deus, e que os livros inspirados por Deus são os livros canônicos”. Eles se abstêm de serem mais específicos, porque a Bíblia silencia a respeito dessa questão.
Bíblia do Peregrino, uma versão católica muito usada na atualidade
Se a Bíblia não define a questão, uma alternativa é aceitar o que tem sido a prática das igrejas, ou, então, da igreja em que se é membro. O cânone que se aceita é o cânone usado na igreja. Na realidade, foi isso que aconteceu ao longo da história do povo de Deus. Quando pessoas e concílios se pronunciaram, em geral ratificaram o que vinha sendo a prática da igreja em sua vida de culto. Se a Escritura não delimita o cânone, e os concílios e teólogos não são suficientes para suprir essa “lacuna”, quem Poderia nos auxiliar nessa questão? Em outras palavras, se o cânone não é uma questão de doutrina, o que seria então? Normalmente, afirma-se que o cânone é uma questão histórica. Em outras palavras, olha-se para a história em busca de alguma pista ou orientação. No entanto, ao fazermos uma investigação histórica, temos mais perguntas do que respostas. Temos algumas supostas verdades que não passam de hipóteses. Outras respostas que vêm da história são incompletas ou incertas. Existem fatos que ainda não conhecemos.
Vejamos alguns exemplos. Geralmente se afirma que a canonização do Antigo Testamento se deu conforme as três divisões da Bíblia Hebraica. Em outras palavras, a primeira parte a ser reconhecida como canônica teria sido a Lei ou o Pentateuco, seguida dos Profetas e dos Escritos. Segundo essa teoria, Daniel e Crônicas, que, na Bíblia Hebraica, fazem parte dos Escritos, teriam sido “canonizados” num período mais
recente ou próximo a nós. No entanto, isto não passa de hipótese. Não há nenhum registro histórico de que isso tenha, de fato, acontecido assim. Em busca de uma pista, muitos olham para a comunidade essênia dos arredores de Qumran e para os manuscritos que ali foram descobertos entre 1947 e 1956.
No entanto, aquela comunidade judaica dissidente não nos deixou nenhuma declaração a respeito dos livros que eram considerados sagrados. Entre os manuscritos ou rolos do mar Morto, como vieram a ser conhecidos, foram encontrados fragmentos de Tobias, que é um livro apócrifo ou deuterocanônico, e também dos livros de Enoque e de Jubileus, entre outros, que não fazem parte de nenhum cânone bíblico hoje em dia.Significa isto que esses livros eram, também, vistos como canônicos? Não temos uma resposta, embora tudo indique que os essênios tinham essencialmente o mesmo cânone dos fariseus e saduceus, ou seja, o cânone da Bíblia Hebraica, que é, também, o cânone protestante.
Os livros deuterocanônicos
Por vezes também se afirma ou se dá a entender que os livros apócrifos ou deuterocanônicos, escritos originalmente em grego ou preservados em tradução grega, faziam parte de um cânone dos judeus de Alexandria, que falavam grego. Alexandria, é bom lembrar, foi o contexto em que surgiu a Septuaginta ou tradução grega do Antigo Testamento.
No entanto, não se tem notícia concreta de que os judeus de Alexandria tivessem um cânone mais amplo do que a Bíblia Hebraica. O simples fato de que a Septuaginta acabou tendo um grupo adicional de livros, que não fazem parte da Bíblia Hebraica, não significa que essa já era a situação verificada na comunidade judaica. Filo de Alexandria, um filósofo judeu que viveu mais ou menos na mesma época do apóstolo Paulo, não dá indícios de que aceitasse a autoridade dos livros que denominamos de apócrifos. Às vezes se pensa que os Pais da Igreja eram todos ardorosos defensores dos apócrifos ou deuterocanônicos. É verdade que homens como Orígenes, Atanásio e Jerônimo conheciam os apócrifos. No entanto, também é verdade que faziam distinção entre os canônicos e os apócrifos, mesmo que não fizessem campanha em prol da supressão dos apócrifos. Atanásio pensava que estes livros não faziam parte do cânone, mas que foram indicados, desde os tempos antigos, como leitura para recém-convertidos que, nas palavras de Atanásio, “querem ser instruídos na religião verdadeira”.
Capa de uma versão ortodoxa.
A maioria dos eruditos das igrejas ortodoxas (orientais) segue Atanásio, colocando os livros que a Septuaginta tem a mais em relação à Bíblia Hebraica num nível inferior de autoridade. Jerônimo, que prezava aquilo que chamou de veritas hebraica (“verdade hebraica”), traduziu o Antigo Testamento do original hebraico. No entanto, isto não Significou que ele deu início a uma “cruzada” contra os apócrifos. Entendia que esses livros podiam ser lidos para a edificação do povo, embora não devessem ser usados para estabelecer doutrinas ou dogmas eclesiásticos. Outro dado pouco conhecido é que, durante a Idade Média, mesmo no Ocidente, houve teólogos que sustentavam o ponto de vista de Jerônimo, ou seja, faziam distinção entre livros canônicos e outros livros. Isto significa que Lutero não tirou essa distinção do ar. O cardeal Cajetano, encarregado pelas autoridades de Roma a dialogar com Lutero, pensava exatamente como Jerônimo.
É verdade que Lutero colocou os apócrifos numa seção à parte, depois de Malaquias e antes de Mateus. Mas Lutero não foi o único a fazer isso. A Bíblia de Genebra, de 1560, tradução feita por teólogos reformados que se haviam refugiado em Genebra, era idêntica à Bíblia de Lutero, na questão dos apócrifos. Mas, a exemplo de Lutero, os editores deixaram claro que esses livros não podiam ser usados para confirmar doutrina.
A renomada tradução inglesa conhecida como King James Version, de 1611, incluía os apócrifos. Na época, o arcebispo de Cantuária proibiu a publicação e venda de Bíblias sem os apócrifos. A pena prevista para os infratores era um ano de prisão. Depois, é claro, os apócrifos foram tirados da King James. E que dizer da famosa Bíblia de Mary Jones, a menina galesa que inspirou o movimento das Sociedades Bíblicas? Essa Bíblia que Mary Jones adquiriu com tanto sacrifício foi preservada. E ela traz os apócrifos, pois a assinatura de Mary Jones aparece na última página dos livros de Macabeus. Aliás, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, fundada em 1804, só deixou de publicar Bíblias com os apócrifos em 1826, ou seja, 22 anos depois de sua fundação. Já a Bíblia de Almeida, que teve o Antigo Testamento publicado em 1748 (o Novo Testamento havia sido lançado em 1681), nunca incluía os apócrifos.
Ler para conhecer
Com respeito aos apócrifos, muitos preferem a atitude do “não li e não gostei”. Uma maior disponibilidade e familiaridade com esses livros poderiam ajudar o leitor a avaliar esses textos e, quem sabe, ter uma compreensão mais adequada das questões envolvidas na delimitação do cânone do Antigo Testamento. Nesse sentido, é interessante uma página da vida de John Bunyan, o famoso autor de O Peregrino. Por volta de 1652, num tempo de profunda depressão, Bunyan encontrou consolo num texto que lhe veio à mente: “Pensem nas gerações passadas e reparem bem: Será que alguém que confiou no Senhor ficou desiludido?” Passada a crise, Bunyan não conseguia se lembrar de onde vinha esse texto, não conseguiu localizá-lo em sua Bíblia, e não houve quem pudesse lhe indicar a referência. Um ano depois, ele escreve: “Voltando meus olhos para os apócrifos, encontrei o texto em Siraque (ou Eclesiástico) 2.10.
A princípio, isto me deixou um pouco perplexo, pois não fazia parte dos textos que chamamos de santos e canônicos; entretanto, como essa frase era o resumo e conteúdo de muitas das promessas, era meu dever tirar consolo dela. E eu agradeço a Deus por essa palavra, pois foi boa para mim”. Em conclusão, cabe relembrar que, em se tratando do cânone do Antigo Testamento, a diferença entre católicos e protestantes se explica pelo fato de terem os protestantes, no tempo da Reforma do século 16, entendido que os livros canônicos eram, a rigor, os que estavam na Bíblia Hebraica. Em resposta, a Igreja Católica Romana canonizou livros que tinham aceitação na igreja desde tempos antigos. Esta é a situação que, provavelmente, permanecerá inalterada no futuro próximo. Entretanto, também precisa ser dito que a diferença fundamental entre as confissões religiosas ou igrejas não reside no cânone.
As reais diferenças decorrem de interpretações divergentes de textos que, sem sombra de dúvida, são canônicos, como, por exemplo, Mateus 16.18, as palavras da instituição da ceia do Senhor, e textos que tratam da relação entre fé e obras. Além disso, por mais importante que seja a questão do cânone, a pergunta fundamental ainda é a do próprio Jesus, em Mateus 16.15: “Quem vocês dizem que eu sou?” Esta pergunta não pode ficar sem resposta. As perguntas mais complexas relacionadas com o cânone podem ficar para depois, para o dia em que, como diz Paulo em 1Coríntios 13.12, “veremos face a face” e “conheceremos perfeitamente”.
Vilson Scholz. Consultor de Traduçaõ da Sociedade Bíblica do Brasil, doutor em Novo Testamento, pastor e professor de Teologia Exegética.
Você quer saber mais?
Revista A Bíblia no Brasil, n°229, Dezembro de 2010 - pg. 20,21 e 22, SBB.
Bíblia Protestante online.
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Bíblia Católica online.
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