Poucos percebem o quanto a relação entre ricos e pobres é de causa e efeito.
É triste, mas qualquer cidade brasileira ilustra a disparidade social característica do nosso continente. Apesar do evidente abismo entre as classes, pouco se questiona sobre a origem dessa realidade, usualmente atribuída apenas à herança histórica do Brasil. Mas enquanto a responsabilidade se restringe aos ombros do passado, nossas elites mantêm, discretamente, uma estrutura de poder secular.
A partir da tese de que a concentração de renda é uma grave causa da situação mundial, especialmente no caso brasileiro, foi realizado em novembro o Seminário Latino-americano
Riqueza e Desigualdade na América Latina. A atividade, organizada pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da UFRGS, integrou a programação da 55.ª Feira do Livro de Porto Alegre.
Injusta miséria – Antonio Cattani, professor do PPGS, foi o principal organizador do evento. De acordo com ele, a América Latina tem o pior quadro de desigualdade social do mundo. “Muito além do que a África apresenta. Lá os países são mais pobres como um todo, mas as diferenças não são tão acentuadas quanto aqui. Nosso continente é o mais desigual porque a concentração de renda é maior. Todos os índices da ONU e de várias organizações internacionais confirmam isso”, afirma.
Diferentemente do território africano, o Brasil possui inúmeros recursos naturais, cuja renda nunca foi distribuída. “Todos os ciclos econômicos brasileiros (pau-brasil, cana-de-açúcar,
borracha, café, etc.) geraram muita riqueza e poderiam ter beneficiado o conjunto da população. Mas apenas reforçaram as desigualdades existentes e as consolidaram ao longo dos séculos”, avalia o professor do PPGS. Para Ricardo de Oliveira, sociólogo e professor da UFPR, o Brasil já nasceu desigual. “O momento fundador da classe dominante tradicional foi a
distribuição das sesmarias, quando as bases iniciais da estrutura agrária se formaram. A posse da terra e as extensas propriedades rurais representam as primeiras grandes genealogias do poder no Brasil”, garante.
Esse modelo de apropriação das riquezas pelos já ricos, segundo Antonio Cattani, mantém-se intacto. “Hoje, há o ciclo da soja, que acompanha a lógica de todos os outros: geração fantástica de renda, depredação dos recursos naturais e pouquíssimos beneficiados, que são, principalmente, os grandes proprietários e exportadores. O mesmo acontece com o eucalipto.
Apresentado como a salvação da metade sul do nosso estado, acredito que ele será responsável por um desastre ecológico, não criando muitos empregos e beneficiando poucas pessoas ligadas à exportação e à produção de celulose.”
A concentração de poder e riqueza observada em nosso país, para Cattani, é absolutamente nefasta. “Há um quadro que expõe o ciclo concentrador: de 1970 a 2006, 1 a 10% da população controlou cerca de 50% da riqueza nacional. Ou seja, de forma estável, em 36 anos não mudou quase nada. Passando por Regime Militar, Nova República, etc., só agora está havendo uma pequena melhora”, aponta.
Fernando Ferrari Filho, professor do Departamento de Economia da UFRGS, vê o presente com mais otimismo. Para ele, houve melhorias em relação à distribuição de renda nos últimos anos que não podem ser ignoradas. “O índice de Gini (que mede a desigualdade) melhorou, se reduziu o grau de miséria absoluta, houve uma evolução significativa, em termos reais, do salário mínimo e se incluíram agentes até então marginalizados. Eu não seria cético a esse ponto; diria que houve melhoras, mas tímidas.”
O capital governa – A aliança e a codependência entre os agentes políticos e os econômicos explicam nossa dura realidade. Para Ricardo de Oliveira, o poder financeiro estrutura relações privilegiadas entre o Estado e o capital. “Amplas redes políticas de interesses entre empresários e políticos garantem vantagens e relações privilegiadas para a reprodução das grandes fortunas. Ninguém pode ser grande empresário sem estar muito bem amparado nos cargos e nas políticas do Estado”, afirma.
Um modo de reverter esse ciclo de concentração, segundo Ferrari, seria adotar medidas que influíssem nas rendas e ganhos dos mais abastados. “É necessário mais do que crescimento
e estabilidade da economia. Políticas macroeconômicas [fiscal, cambial e monetária] ativas são fundamentais. Por exemplo, em termos de política fiscal, deveria haver alíquotas de imposto de renda maiores para quem ganha muito, deveria se tributar as grandes fortunas e o capital especulativo, bem como teria de haver mais programas de cunho social e investimentos públicos. Os recursos resultantes dessas taxações deveriam ser revertidos em políticas públicas e sociais”, pondera.
Antonio Cattani, porém, considera mais grave o contexto: “A pobreza continua sendo produzida atualmente. Ela não é apenas um resquício histórico que será saldado com políticas públicas dirigidas aos pobres. Ações voltadas às populações mais vulneráveis são necessárias, pois podem tirar milhares de pessoas que estão abaixo da linha de pobreza. Mas sai uma e o sistema põe dez de volta. O modelo econômico produz mais pobreza do que as políticas públicas conseguem retirar”.
Porém, raros governantes sugerem restrições às elites. “É difícil propor uma agenda cujo objetivo seja a distribuição de renda por meio de medidas macroeconômicas, usando mais do que a lógica de crescimento da economia. Nas eleições, a maioria das alianças é feita com representantes do capital em detrimento das bases populares. E os beneficiados com o modelo atual não endossam propostas para uma agenda econômica alternativa”, assinala Fernando Ferrari.
Não por acaso, os ricos seguem atuando fortemente no cenário político. De acordo com Cattani, “dos cerca de 500 deputados federais que o Brasil tem, mais de 70 estão ligados ao setor financeiro. Soma-se a eles a bancada dos grandes ruralistas, das escolas particulares, etc. No final, de 60 a 70% do nosso Congresso está diretamente ligado às engrenagens desse macropoder”, alerta o pesquisador.
Você quer saber mais?
http://www.ufrgs.br/comunicacaosocial/jornaldauniversidade/
A partir da tese de que a concentração de renda é uma grave causa da situação mundial, especialmente no caso brasileiro, foi realizado em novembro o Seminário Latino-americano
Riqueza e Desigualdade na América Latina. A atividade, organizada pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da UFRGS, integrou a programação da 55.ª Feira do Livro de Porto Alegre.
Injusta miséria – Antonio Cattani, professor do PPGS, foi o principal organizador do evento. De acordo com ele, a América Latina tem o pior quadro de desigualdade social do mundo. “Muito além do que a África apresenta. Lá os países são mais pobres como um todo, mas as diferenças não são tão acentuadas quanto aqui. Nosso continente é o mais desigual porque a concentração de renda é maior. Todos os índices da ONU e de várias organizações internacionais confirmam isso”, afirma.
Diferentemente do território africano, o Brasil possui inúmeros recursos naturais, cuja renda nunca foi distribuída. “Todos os ciclos econômicos brasileiros (pau-brasil, cana-de-açúcar,
borracha, café, etc.) geraram muita riqueza e poderiam ter beneficiado o conjunto da população. Mas apenas reforçaram as desigualdades existentes e as consolidaram ao longo dos séculos”, avalia o professor do PPGS. Para Ricardo de Oliveira, sociólogo e professor da UFPR, o Brasil já nasceu desigual. “O momento fundador da classe dominante tradicional foi a
distribuição das sesmarias, quando as bases iniciais da estrutura agrária se formaram. A posse da terra e as extensas propriedades rurais representam as primeiras grandes genealogias do poder no Brasil”, garante.
Esse modelo de apropriação das riquezas pelos já ricos, segundo Antonio Cattani, mantém-se intacto. “Hoje, há o ciclo da soja, que acompanha a lógica de todos os outros: geração fantástica de renda, depredação dos recursos naturais e pouquíssimos beneficiados, que são, principalmente, os grandes proprietários e exportadores. O mesmo acontece com o eucalipto.
Apresentado como a salvação da metade sul do nosso estado, acredito que ele será responsável por um desastre ecológico, não criando muitos empregos e beneficiando poucas pessoas ligadas à exportação e à produção de celulose.”
A concentração de poder e riqueza observada em nosso país, para Cattani, é absolutamente nefasta. “Há um quadro que expõe o ciclo concentrador: de 1970 a 2006, 1 a 10% da população controlou cerca de 50% da riqueza nacional. Ou seja, de forma estável, em 36 anos não mudou quase nada. Passando por Regime Militar, Nova República, etc., só agora está havendo uma pequena melhora”, aponta.
Fernando Ferrari Filho, professor do Departamento de Economia da UFRGS, vê o presente com mais otimismo. Para ele, houve melhorias em relação à distribuição de renda nos últimos anos que não podem ser ignoradas. “O índice de Gini (que mede a desigualdade) melhorou, se reduziu o grau de miséria absoluta, houve uma evolução significativa, em termos reais, do salário mínimo e se incluíram agentes até então marginalizados. Eu não seria cético a esse ponto; diria que houve melhoras, mas tímidas.”
O capital governa – A aliança e a codependência entre os agentes políticos e os econômicos explicam nossa dura realidade. Para Ricardo de Oliveira, o poder financeiro estrutura relações privilegiadas entre o Estado e o capital. “Amplas redes políticas de interesses entre empresários e políticos garantem vantagens e relações privilegiadas para a reprodução das grandes fortunas. Ninguém pode ser grande empresário sem estar muito bem amparado nos cargos e nas políticas do Estado”, afirma.
Um modo de reverter esse ciclo de concentração, segundo Ferrari, seria adotar medidas que influíssem nas rendas e ganhos dos mais abastados. “É necessário mais do que crescimento
e estabilidade da economia. Políticas macroeconômicas [fiscal, cambial e monetária] ativas são fundamentais. Por exemplo, em termos de política fiscal, deveria haver alíquotas de imposto de renda maiores para quem ganha muito, deveria se tributar as grandes fortunas e o capital especulativo, bem como teria de haver mais programas de cunho social e investimentos públicos. Os recursos resultantes dessas taxações deveriam ser revertidos em políticas públicas e sociais”, pondera.
Antonio Cattani, porém, considera mais grave o contexto: “A pobreza continua sendo produzida atualmente. Ela não é apenas um resquício histórico que será saldado com políticas públicas dirigidas aos pobres. Ações voltadas às populações mais vulneráveis são necessárias, pois podem tirar milhares de pessoas que estão abaixo da linha de pobreza. Mas sai uma e o sistema põe dez de volta. O modelo econômico produz mais pobreza do que as políticas públicas conseguem retirar”.
O professor Oliveira entende que há uma relação entre os ricos e poderosos e a produção de desigualdades e pobreza no Brasil. Assim, as carências de muitos refletem os luxos de poucos.
Ele acredita que “a tributação de grandes fortunas, a distribuição de renda e os mecanismos de democratização das decisões, para serem efetivos, precisariam conhecer as formas de riqueza e de poder em uma sociedade”.
Porém, raros governantes sugerem restrições às elites. “É difícil propor uma agenda cujo objetivo seja a distribuição de renda por meio de medidas macroeconômicas, usando mais do que a lógica de crescimento da economia. Nas eleições, a maioria das alianças é feita com representantes do capital em detrimento das bases populares. E os beneficiados com o modelo atual não endossam propostas para uma agenda econômica alternativa”, assinala Fernando Ferrari.
Não por acaso, os ricos seguem atuando fortemente no cenário político. De acordo com Cattani, “dos cerca de 500 deputados federais que o Brasil tem, mais de 70 estão ligados ao setor financeiro. Soma-se a eles a bancada dos grandes ruralistas, das escolas particulares, etc. No final, de 60 a 70% do nosso Congresso está diretamente ligado às engrenagens desse macropoder”, alerta o pesquisador.
Você quer saber mais?
http://www.ufrgs.br/comunicacaosocial/jornaldauniversidade/
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