Simon Schwartzman
(termos de referência de
pesquisa, não publicado, janeiro de 1979)
O problema geral
O relacionamento entre
pesquisa acadêmica, pesquisa básica e pesquisa aplicada é uma das questões
fundamentais de política científica e tecnológica em todas as áreas de
conhecimento. Essencialmente, esta questão tem a ver com as motivações do
pesquisador e com o destino, ou a apropriação social dos frutos de seu
trabalho. Para efeito desta pesquisa, entenderemos por "pesquisa
acadêmica" aquela que tem por motivação a descoberta de fenômenos
empíricos importantes, que possam avançar o conhecimento em determinado campo,
de acordo com o consenso da comunidade de especialistas. Por "pesquisa
aplicada" entenderemos aquela que tem um resultado prático visível em
termos econômicos ou de outra utilidade que não seja o próprio conhecimento; e
por "pesquisa básica" aquela que acumula conhecimentos e informações
que podem eventualmente levar a resultados acadêmicos ou aplicados importantes,
mas sem fazê-lo diretamente.
A questão do relacionamento
entre as diversas formas de pesquisa científica tende a ser colocada usualmente
de forma abstrata, como oposição entre dois modelos alternativos de entender e
justificar o trabalho científico. O primeiro modelo privilegia a pesquisa
acadêmica, como aquela mais capaz de levar ao desenvolvimento intelectual e à
criatividade dos cientistas, o que levaria ao desenvolvimento dá pesquisa
aplicada como sub-produto; o segundo privilegia a pesquisa aplicada, vendo nela
a forma de vincular o trabalho científico com as necessidades econômicas e
sociais e entendendo a pesquisa mais acadêmica como simples investimento
necessário ao melhor encaminhamento dos trabalhos aplicados.
A confrontação abstrata
entre estes dois modelos tende a ignorar a realidade com a qual trabalham os
cientistas, que é sempre o resultado de uma combinação entre demandas,
expectativas e aspirações nem sempre coincidentes ou convergentes. Cientistas
são chamados a fazer pesquisas acadêmicas, a dar aulas em cursos de graduação e
pós-graduação, se preocupam em contribuir para atividades socialmente
relevantes, zelam por suas carreiras profissionais, e buscam trabalhos que lhes
dêem rendimentos satisfatórios. Nem todas estás atividades são necessariamente
convergentes: dar aulas tira tempo de pesquisa, a pesquisa acadêmica pode
favorecer o reconhecimento profissional do cientista (e, por conseguinte, sua
carreira a longo prazo) mas afastá-lo de trabalhos socialmente mais relevantes
e melhor remunerados, e assim por diante.
O reconhecimento desta
complexidade, diversidade e diferenciação da atividade científica não deve levar
ao abandono dos esforços por entender e explicar o que ocorre a partir de um
contexto conceitual mais sistemático e ordenado. A estratégia que utilizaremos
para isto será a de considerar os dois modelos indicados acima como dois
"tipos ideais" que possam servir de parâmetros para a análise; a eles
acrescentaremos um terceiro, menos freqüente na literatura de sociologia da
ciência, mas bastante importante, que é o modelo da ciência como atividade
tecno-burocrática.
Teoria: Três modelos de
ação.
Os modos alternativos de
pensar a questão acima estão relacionados com dois "modelos ideais" ,
ou tipos ideais, a respeito da natureza do trabalho científico. Tipos ou
modelos ideais, como sabemos, são " construtos" teóricos ou conceituais
que tratam de reconstruir a lógica da ação humana em determinado campo de
atividade a partir de seus valores e objetivos explícitos, que são depois
levados a suas ultimas conseqüências lógicas. Os tipos ideais não descrevem a
realidade empírica, mas permitem que sejam estabelecidos padrões de comparação
e avaliação entre situações concretas e estes modelos. Mais ainda, ao partir de
valores e objetivos explícitos, eles permitem entender o sentido da ação, a
partir da qual situações historicamente concretas podem ser avaliadas.
I - O modelo ideal mais
comumente difundido na sociologia da ciência é o da "Republica da
Ciência", ou da "cidade" científica. Neste modelo, a atividade
científica e essencialmente uma atividade voltada para a busca do conhecimento,
com um sistema de prêmios, recompensas e punições baseado no maior ou menor
sucesso nesta busca. As razões pelas quais as pessoas buscam o conhecimento são
irrelevantes para o modelo: o que importa é que o conhecimento seja algo cuja
posse seja considerada importante em si mesmo, e não para outros fins. A
aferição da qualidade e propriedade deste conhecimento exige existência de um
grupo de pessoas que tenha condição de avaliar a correção e a relevância dos
conhecimentos adquiridos. Estas pessoas formam uma comunidade científica que
funciona como uma corporação em suas relações com o resto dá sociedade: elas
definem as regras de acesso e exclusão à comunidade e desenvolvem sua
hierarquia interna de valores, prestígio e autoridade. Elas controlam suas
próprias instituições - centros de pesquisa, revistas especializadas,
institutos - e distribuem internamente seus recursos.
Internamente, estas
comunidades são uma república meritocrática; todo o sistema de estratificação
interna e distribuição de recursos é baseado em critérios de mérito
intelectual, e para que isto possa ser feito existe um amplo mercado de
circulação de informações. É pela disseminação dos resultados de seu trabalho
que o cientista se apropria do prestígio e das demais recompensas a ele
associadas que seu trabalho possa merecer. Para que este mercado possa
funcionar, é necessário que exista um certo consenso dentro da comunidade a
respeito do que é um trabalho científico importante ou não, e de quais são os
critérios de aferição de qualidade e veracidade. Este consenso é muitas vezes
referido na literatura como "paradigma", que tem sido utilizado na
literatura especializada para caracterizar o conjunto de conhecimentos,
metodologia, padrões dê trabalho, critérios de qualidade e supostos básicos que
caracterizam uma área de conhecimento científico determinada. Dentro desta
visão, um paradigma não é simplesmente uma teoria científica (como à física
eisteniana, por exemplo), mas implica também um conjunto de pessoas reais
trabalhando a partir de seus supostos mais gerais.
A questão sobre os
diferentes tipos e modalidades de paradigmas não nos interessa neste contexto.
O que e importante é a idéia de que pessoas que se dedicam à atividade
científica se vinculam a comunidades relativamente reduzidas de colegas, dentro
das quais são conhecidas, aonde estabelecem seu reconhecimento como
profissionais, aonde aprendem o que sabem e formam novos especialistas. São
estas comunidades que dão consistência e continuidade às tradições científicas,
sem as quais a atividade de pesquisa não pode se desenvolver. Sociólogos da
ciência tem se referido a estas comunidades como "colégios
invisíveis" que, ainda que não estabelecidos formalmente, são a base para
a organização e continuidade do trabalho científico.
O teorema fundamental que
decorre deste modelo ideal é que a atividade científica é necessariamente uma
atividade livre e auto-regulada, e que qualquer interferência em sua liberdade
e mecanismos de auto-regulação significa necessariamente um prejuízo para a
qualidade do trabalho científico. As conseqüências deste tipo de teorema para a
área de política científica são fáceis de imaginar.
II - O segundo modelo ideal
pode ser denominado de "modelo do progresso técnico". O principal
axioma deste modelo e que a atividade científica, como qualquer outra forma de
conhecimento humano, tem por objetivo resolver problemas práticos e utilitários
vividos pelas sociedades em suas diversas etapas ou formas de desenvolvimento.
A dissociação que historicamente possa ocorrer entre a pesquisa científica e a
tecnologia deve ser entendida, nesta perspectiva, como processos de alienação
que pode no máximo mascarar, mas não eliminar, o relacionamento necessário
entre conhecimento e sua utilização social. Assim, o modelo da "República
da Cincia" não seria senão uma manifestação ideológica da dissociação
entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, que seria uma das
características das sociedades classistas. A sociologia do conhecimento
deveria, de acordo com este modelo, ter condições de estabelecer as vinculações
causais entre o conhecimento gerado por uma sociedade e suas características de
organização social e econômica
Na medida em que o aspecto
"mascarado' e encoberto da dissociação entre a ciência e a tecnologia, por
um lado, e o desenvolvimento econômico e o progresso técnico, por outro, seja
explicitado, esta dissociação perde sua razão de ser. O pesquisador escolherá
sua área e seu tema de pesquisa em função de sua utilidade social, e esta
utilidade determinará sua recompensa. Esta recompensa, ou remuneração, pode
consistir tanto em prestígio e poder social quanto em remuneração financeira em
função da utilidade do produto do conhecimento. O produto do conhecimento tem,
por definição, um valor de mercado que pode ser estimado e que transcende seu
mero "valor de uso" como conhecimento em si. Ele pode, assim, ser
trocado por outros valores - na forma de licença, royaltíes, ou exploração
monopolística de seus produtos. A relação do cientista com seu produto depende,
essencialmente, da organização mais geral do sistema produtivo. Em sociedades
pouco industrializada, o pesquisador pode explorar seu trabalho como empresário
individual, beneficiando-se de suas invenções ou patentes individuais. Em
sociedades capitalistas mais complexas, o pesquisador é como um trabalhador
assalariado, cujo produto é apropriado por sua empresa.
Em resumo, o tipo ideal do
"progresso técnico" vê o trabalho científico como parte da atividade
econômica e produtiva mais geral. As implicações da adoção deste modelo para a
determinação de uma política científica, e para a organização do trabalho de
pesquisa, são também fáceis de antever.
III - O terceiro modelo,
finalmente, vê a atividade científica essencialmente como parte das atividades
complexas das grandes organizações contemporâneas. Sua referencia histórica não
é a ciência artesanal, indívidualizada, nem a tecnologia do inventor isolado,
mas as grandes organizações técnico-científicas contemporâneas. Segundo esta
concepção, a atividade científica moderna se dá cada vez mais no contexto de
uma complexidade técnica crescente, com uma divisão do trabalho que se
aproximaria , em muitos casos, a que ocorreu na indústria com a passagem da
produção artesanal à produção em série. A vinculação necessária do cientista ou
pesquisador a grandes sistemas organizacionais teria feito com que os dois
modelos anteriores se tornassem obsoletos. No contexto contemporâneo da big
science, o cientista deixaria de ser um agente isolado, e passaria a se
comportar de forma semelhante à dos que participam dás grandes organizações
complexas contemporâneas. O axioma fundamental deste modelo é a concepção de
Galbraith a respeito dás tecno-estruturas das grandes organizações modernas,
que tende a ser adotado por todos os que se dedicam à teoria das organizações:
a idéia que ás organizações tendem normalmente a crescer e a se fortalecer,
estabelecendo para isto o máximo controle possível das variáveis exógenas que
possam afetá-las.
Nestas organizações, a
motivação do trabalho do pesquisador não seria condicionada nem pelas
expectativas de seu grupo de iguais, a comunidade, nem pela lucratividade e
potencialidade prática de seu trabalho, mas pela apreciação que a própria
organização possa fazer deste trabalho. Ora isto depende, essencialmente, dos
objetivos da organização. Instituições voltadas para a produção industrial, por
exemplo, tenderiam a sancionar trabalhos mais aproximados ao modelo de
progresso técnico, enquanto que instituições mais especificamente de pesquisa
tenderiam a valorizar trabalhos mais próximos ao modelo acadêmico. Grandes
instituições governamentais de orientação tecnológica, no entanto - ás chamadas
tecno-burocracias - são ás que tipificam melhor este modelo. Institutos de
energia atômica, centros de pesquisa espacial, institutos nacionais de pesquisa
agro-pecuária, institutos de pesquisa médica, etc., são instituições que tendem
a surgir em quase todos os países, financiadas pelos respectivos governos,
mantidas à parte dos sistemas universitários e industriais, e nas quais a
grande ciência se desenvolve com toda sua pujança. Estas instituições são o
ambiente mais propício ao desenvolvimento da chamada "ciência
básica", ainda que este não seja, evidentemente, a única forma de trabalho
científico que permitem.
Duas comunidades científicas
O trabalho empírico
principal da pesquisa consistirá no estudo de duas comunidades científicas
contemporâneas no Brasil, a de genética e a de física de estado sólido. O
problema da delimitação da amostra a ser pesquisada está intimamente
relacionado com os três modelos de organização da atividade científica
discutidos acima.
Essencialmente, o problema
consiste em definir qual o sistema maior que integra os cientistas isolados em
uma unidade social mais ampla. O modelo acadêmico postula que este sistema
maior e a comunidade científica, ou seja, a rede informal de conhecimentos,
troca de informações e apreciações mútuas que une e estrutura os cientistas de
determinada especialidade. O modelo do progresso técnico postula que a unidade
mais significativa é a unidade produtiva, que se subdivide de acordo com as
normas da divisão social do trabalho, dentro da qual sê dá a atividade
científica. O modelo técnico-burocrático postula que a unidade de análise mais
importante é a organização.
O que a pesquisa procura
determinar é exatamente em que medida estes três modelos ideais existem e funcionam
de fato ou não. Para isto, a estratégia de pesquisa consistirá em supor a
existência de uma comunidade científica definida a partir de um procedimento
operacional qualquer, que delimite com clareza um conjunto de pessoas que
trabalhem em diversos institutos, universidades, centros de pesquisa, más que
mantenham certos vínculos e contatos institucionais e intelectuais informais.
Uma vez definidos os grupos, a pesquisa tratará de determinar em que medida
elas realmente se adaptam ao modelo acadêmico de estruturação, ou se aproximam
aos outros dois. (Em princípio, qualquer um dos três princípios organizativos
poderia ser tomado como ponto de partida).
Genética e Física do Estado
Sólido parecem duas áreas de pesquisa científica especialmente adequadas para
este tipo de estudo. Ambas são áreas cientificamente avançadas, e exigem dos
pesquisadores uma formação científica sólida e um trabalho acadêmico de
qualidade. Ao mesmo tempo, são áreas de aplicabilidade potencial muito grande.
A genética, na produção de variedades, no controle de doenças transmissíveis, e
mais recentemente, com o desvendamento do código genético, na própria criação
de novas espécies economicamente relevantes. A Física do Estado Sólido e uma
área de grandes aplicações na área de eletrônica, computação, e tantas outras.
Finalmente, ambas são áreas que tem no Brasil grupos científicos bem
constituídos e dinâmicos.
A diversidade entre estás
duas áreas não impede que elas sejam estudadas com o mesmo enfoque, de tal
maneira que seja possível examinar como cada uma destas comunidades se
constitui, e de que maneira elas lidam com a questão do relacionamento entre o
trabalho aplicado o trabalho acadêmico e a pesquisa básica, em seus diversos
contextos institucionais.