O medo do homem à máquina
O assalto às lavouras experimentais
de transgênicos que se processam no Brasil de hoje e os protestos dos
ambientalistas à engenharia genética em outras partes da mundo, particularmente
na Europa, nos faz lembrar dos luditas, um movimento popular que surgiu na
Grã-Bretanha entre 1811-1818, dedicado à destruição das máquinas e protestos
contra a tecnologia.
Ludd ataca
"Sua
obra de destruição não se atém a método nenhum/ O fogo e a água serve-lhe para
destruir/ pois os elementos ajudam no seu designo.../ ele destruirá tudo de dia
ou à noite/ e nada poderá escapar da sua sentença."
General
Ludd's Triumph, 1812
Certa vez, no ano de 1812, há quase
dois séculos atrás, Mr. Smith, um dono de uma tecelagem no distrito de
Huddersfild, no leste da Inglaterra, recebeu uma estranha carta assinada por um
tal de "general Ludd". Continha pesadas ameaças. A sua fábrica em
breve seria invadida e as máquinas destruídas caso ele não se desfizesse delas.
Um incêndio devoraria o edifício e até a sua casa, se ele tentasse reagir. O
nome Ludd era conhecido nos meios fabris desde que um maluco chamado Ned Ludd,
uns trinta anos antes, em 1779, invadira uma oficina para desengonçar as
máquinas a marteladas. A missiva não era brincadeira.
A chegada das máquinas
Uns meses antes, nos finais de 1811,
uma onda de assaltos aos estabelecimentos mecânicos espalhara-se pela região de
Nottingamshire, uma antiga área ligada à criação de ovelhas e que desde o
século 17 vira crescer por lá, espalhadas, pequenas empresas de fiação e
tecelagem. A revolução industrial, com a rápida disseminação da máquina a
vapor, como era de esperar, provocou ali uma radical mutação socio-econômica.
Por todo lado novos teares e máquinas tricotadeiras embaladas pela nova
tecnologia da energia à vapor, substituíram os antigos procedimentos das rocas
de fiar. As reações não demoraram.
A Carta do General Ludd
"Possuímos
informações de que você é um dos proprietários que têm um desses detestáveis
teares mecânicos e meus homens me encarregaram de escrever-lhe, fazendo um
advertência para que você se desfaça deles... atente para que se eles não forem
despachados até o final da próxima semana enviarei um dos meus lugar-tenentes
com uns 300 homens para destruí-los, e, além disso, tome nota de que se você nos
causar problemas, aumentaremos o seu infortúnio queimando o seu edifício,
reduzindo-o a cinzas; se você tiver o atrevimento de disparar contra os meus
homens, eles têm ordem de assassiná-lo e de queimar a sua casa. Assim você terá
a bondade de informar aos seus vizinhos de que esperem o mesmo destino se os
seus tricotadores não sejam rapidamente desativados.."
Ass.:
General Ludd, março de 1812
Outras Destruições
Atacar e destruir máquinas é uma atividade
bem mais antiga do que se supõe. Bem antes do desencadeamento do Movimento
Ludita registraram-se, no princípio do século XVIII, ações depedradoras na
periferia de Londres contra uma serra movida a água, como também contra uma
tosquiadeira automática, inventada por um tal de Everet em 1758. O próprio Marx
assinala (no cap. XIII, 5, d'O Capital) as rebeliões ocorridas em certas partes
da Europa provocadas pela introdução de moinho de fazer fitas e galões. O que
levava aquele gente humilde, geralmente cordata, a cometer tais atos
desesperados? Medo e insegurança. Assustavam-se com a possibilidade das
máquinas estreitarem ou suprimirem com o trabalho deles, além do receito
sobrenatural ao novo tão comum entre as gentes.
O Movimento Ludita
"E
noite trás noite, quando tudo está tranqüilo/ e a lua se esconde por detrás da
colina/ Nós marchamos para executar a nossa vontade/ Com acha, lança ou fuzil/ Oh
meus valentes cortadores/ Os que com um só forte golpe/ rompem com as máquinas
cortadeiras/O grande Enoch dirigirá a nossa vanguarda/ Quem se atreverá a
detê-lo?/ Adiante sempre todos homens valentes/ Com acha, lança e fuzil/ Oh
meus valentes cortadores..."
-
Canção ludita –
As modernas tecelagens, alvo
dos luditas
Os Luditas, porém, foram mais além
dos quebra-quebras. Se bem que no seu princípio houve incursões antimáquinas
espontâneas, tal como se deu em março de 1811, em Arnold, um lugarejo de
Nottingham, onde um bando devastou 60 teares sob o aplauso de um multidão de
desempregados, em Yorkshire, Leicestershire e em Derbyshire, regiões vizinhas,
não se tratava mais de explosões irracionais, esparsas e desordenadas. Nos
momentos seguintes, nunca tendo um líder só, foram pequenos grupos organizados
e disciplinados, atuando segundo um plano, quem entraram em atividade.
Estima-se que o seu número oscilou de três a oito mil integrantes, dependendo
do distrito.
Os Esquadrões Luditas
Liderados pelos assim apontados
"homens de maus desígnios", usando máscaras ou escurecendo o rosto,
os esquadrões luditas, armados com martelos, achas, lanças e pistolas, aproveitando-se
para deslocarem-se à noite, vagavam de um distrito ao outro demolindo tudo o
que encontravam, apavorando os donos das fábricas. O comandante da operação
chamava-se de "General Ludd", com poder de vida e morte sobre os
companheiros Em Nottingham revelou-se um tipo enorme, Enoch Taylor, um ferreiro
que levava ao ombro uma poderosa maça de ferro batizada com o seu nome mesmo:
Enoch. Bastava uma martelada daquelas para que a porta do estabelecimento
viesse abaixo, enquanto que mais uma outra aplicada num engenho qualquer
reduzia-o a um monte de ferro inútil.
Um Quadro Insurrecional
O pano de fundo em que o ludismo
emergiu formou-se pelas dificuldades sofridas pelas exportações britânicas,
decorrentes do bloqueio continental imposto em 1806 por Napoleão Bonaparte, e,
em seguida, pelos problemas enfrentados com a obtenção do algodão para a as
tecelagens, visto que em 1812 os ingleses estavam em guerra contra os Estados
Unidos (o seu principal fornecedor). Naquele mesmo ano, no dia 11 de maio, algo
raro na história política inglesa ocorreu: o assassinato do seu primeiro
ministro Perceval, em plena Câmara dos Comuns, vítima de um malucão. O clima,
pois, era de generalizada revolta em larga parte da Inglaterra, sendo que E.P.
Thompson - um dos maiores historiadores da classe operária britânica - acredita
que o movimento extrapolou seu objetivos originais, como assegurou um
testemunho da época, ambicionando "derrubar o sistema de governo pondo em
revolução o país inteiro". Esta foi a razão do Parlamento ter aprovado em
Londres em 1812, apesar da eloqüente oposição de Lord Byron, a Frame Braking
Act, que estabeleceu a pena de morte para quem destruísse as máquinas.
O Massacre de Peterloo
Uns sete anos depois dos
amotinamentos luditas, por volta de 1818-9, as coisas voltaram a se acalmar. A
insurgência sofreria um rude golpe com a mobilização do exército e dos corpos
auxiliares e com os enforcamentos coletivos que as autoridades submeteram os
insurretos, como deu-se em York onde um dos líderes, George Mellor, subiu ao
patíbulo com 13 companheiros. Repressão que atingiu sua culminância nos
Massacres de Perterloo (uma paródia jocosa de Waterloo, porque deu-se no comando-geral
do generalíssimo Duque de Wellington, o vencedor de Napoleão), quando 15
manifestantes foram mortos pelas tropas nas redondezas de Manchester. No dia 16
de agosto de 1819, no parque de Saint-Peter, uma multidão de umas 50 mil
pessoas, reunidas num protesto, foi exposta a uma brutal carga de cavalaria que
chocou a Grã-Bretanha inteira.
Marxismo e Ludismo
A literatura marxista a respeito do ludismo
(E.P.Taylor, E.Hobsbawn, e o próprio Marx) procurou retirar a pecha de
analfabetos ignorantes que o restante da população inglesa havia lançado sobre
os inimigos das máquinas (tornando desde então o termo ludita algo pejorativo).
Entenderam-no, o movimento, como um proto-sindicalismo, uma reação desculpável
e natural contra algo que provocava o desemprego e o rebaixamento salarial.
Além, claro, de ser uma contestação ao capitalismo, ainda que no quadro da
grande transformação operada na transição do trabalho manual para o trabalho
automatizado. Mesmo assim, não conseguiram evitar as óbvias associações do
ludismo com o obscurantismo medieval, tão comuns a certos setores das classes
populares. Marx, socorrendo-se de um tal de Andrew Ure (The Philosophy of the
Manufactures, 1835), um teórico, defendeu a tese de que graças às ameaças dos
trabalhadores é que os capitalistas, para reduzirem as pressões e as rebeldias,
aceleravam as implementações tecnológicas, concluindo que a máquina era
estruturalmente uma "potência hostil ao trabalhador" (O Capital, vol.
I, cap. XIII, 5).
Estranheza ao Mundo da
Técnica
Ocorre que, como é sabido, toda a
inovação tecnológica realmente profunda excita inevitáveis efeitos fóbicos de
toda a ordem. Ainda que tendente à razão, o homem é um animal conservador,
rotineiro e assustadiço. Na história, até bem pouco tempo, eram minorias
insignificantes que viviam em cidades, e um número reduzidíssimo de pessoas é
ligado diretamente às coisas da técnica e da mecânica. Grande parte da
humanidade, como ainda hoje no Terceiro Mundo, vive perto ou à beira dos matos,
sofrendo-lhe a inevitável influência psicológica.
Opiniões Controversas
Lord Byron, o poeta, viu no ludismo
a transgressão das normas. Algo assim como uma espécie de reforma religiosa -
um luteranismo aplicado às fábricas. William Blake, outro poeta, entendeu-os
como os instrumentos de uma revolta sagrada contra os dark Satanic Mills, os
tenebrosos moinhos satânicos (o clima geral dentro das fábricas daquela época),
nos quais as mulheres e crianças inglesas eram obrigadas a trabalhar em
condições deprimentes. A romancista Charlote Brontë, no seu livro Shirley, de
1849, entretanto, não devotou-lhes simpatia. Além de assegurar a um master (um
patrão), de nome Cartwright (nome de um inventor) o papel de herói resistente,
frente a uma assalto de uma turba armada, disse que os chefes luditas "não
vinham das classes operosas", vendo-os como gente "fracassada,
decaída, um bando de endividados e desocupados, muitos deles entregues à
bebida". Mas o pavor às máquinas não partiu só de gente iletrada.
A máquina como desumanização
O filósofo Martin Heidegger, o mais
significativo pensador alemão deste século, oriundo da Floresta Negra,
irmanou-se a eles na sua tecnofobia, denunciando a mecanização como vil,
interesseira, inclinada ao lucro e, pior, desumanizante. Aliou-se aos nazistas
em 1933 na expectativa de que Hitler cumprisse o programa Blut und Boden, o do
sangue e solo, um reacionário projeto de ruralização de desmecanização da
Alemanha (nos quadros de Baumgartner, Wisser e Janesh, Junghanns, pintores
nazistas, o campo aparece sem uma máquina sequer, toda a lavoura é orgânica). O
pensador via a tecnologia como pertinente ao mundo moderno, levando-o à
devastação da natureza, à massificação sufocadora da criatividade, à
estandardização do comportamento e da cultura, à banalização da existência,
provocando-lhe por fim uma doença quase que incurável.
Neoluditismo
Logo não é de se estranhar a
ocorrência de periódicos assaltos em vários cantos do mundo contra laboratórios
que fazem experiências biogenéticas, nem às lavouras transgênicas. Da mesma
forma que os luditas ingleses atacaram nos começos do século XIX as máquinas, a
tecnologia e o capitalismo laissez-faire então nascente, hoje, na transição do
milênio, é um neoluditismo globalizado quem encabeça a vanguarda das ações
antiliberais e anticientíficas.
Em
"A
revolução que vem", Ted Kaczynski esboçou o que ele via como os novos
"Luddists" novos valores que irão libertá-los do jugo do actual
sistema technoindustrial ":
Rejeição
de toda a tecnologia moderna - "Este é logicamente necessário, porque a
tecnologia moderna é um todo em que todas as partes estão interligadas, você
não pode se livrar das partes ruins, sem dar igualmente até aquelas partes que
parecem boas."
Rejeição
do materialismo e sua substituição por uma concepção de vida que valoriza a
moderação e auto-suficiência enquanto depreciativo a aquisição de bens ou de
status.
Amor
e reverência para com a natureza, ou até mesmo a adoração da natureza.
Exaltação
da liberdade.
Punição
dos responsáveis pela atual situação. "Os cientistas, engenheiros,
executivos de corporações, políticos, e assim por diante ..."
Em 1990, Chellis Glendinning publicou suas "Notas em
direção a um manifesto neo-ludita" no Utne Leitor , recuperando o termo
ludita '. De acordo com Glendinning, neoluditas são "cidadãos do século 20
- ativistas, trabalhadores, vizinhos, críticos sociais e acadêmicos - que
questionam a visão de mundo moderna predominante, que prega que a tecnologia
desenfreada representa progresso ". Glendinning propõe destruir as
seguintes tecnologias : tecnologias eletromagnéticas (isso inclui comunicações,
computadores, eletrodomésticos e refrigeração), tecnologias químicas (isso
inclui materiais sintéticos e medicina), tecnologias nucleares (isso inclui
armas e energia, bem como o tratamento do câncer, esterilização e detecção de
fumaça), engenharia genética (isso inclui as culturas, bem como a produção de
insulina). Ela argumenta em favor da "busca de novas formas
tecnológicas" que são locais em escala e promover a liberdade social e
política. Glendinning então propõe os seguintes princípios para Neo-ludismo: