As doenças - assim como a paixão, a felicidade, o infortúnio e a solidão - influenciam a vida de todo mundo. Mas, quando atingem artistas geniais, elas podem inspirar algumas de suas melhores criações.
Vincent Van Gogh, auto-retrato 1887 Por Sérgio Miranda
Uma crise de apendicite foi responsável pelo surgimento de um dos mestres da pintura. A depressão de um jovem artista ajudou-o a criar um novo movimento artístico. Problemas neurológicos permitiram a outro superar os limites da própria consciência e criar cores impensáveis. A história está cheia de exemplos da relação entre a arte e as doenças que acometeram os artistas. E de como elas ficaram refletidas – e muito mais bonitas – em suas criações.
Embora seja possível que sempre tenha sido assim, só no século 19 filósofos e artistas insatisfeitos com os limites da “arte como imitação” (ou representação) lançaram a teoria da “arte como expressão”. Desse modo, o foco para a compreensão da arte deslocou-se do objeto para o artista, da criação para o criador. É a partir daí que, pelo menos para a crítica de arte, passou a ser importante o que o artista sentia. E, às vezes, como todo mundo, ele sentia dor.
“As doenças influenciam a forma como o indivíduo se relaciona consigo mesmo e com o mundo, e muitas delas podem estimular o potencial de cada um”, diz a professora Leila Cury Tardivo, do departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. “Diante do sofrimento, o artista ganha uma força de sublimação e sua arte pode ajudá-lo a discutir, compreender e conviver com a própria doença.”
Alguns superaram o mal sem que isso aparecesse em sua obra, como Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), conhecido como Aleijadinho, que sofreu de uma doença degenerativa (não se sabe ao certo se sífilis, escorbuto, hanseníase ou reumatismo), sem que isso refletisse em suas esculturas. Outros acusaram o golpe de forma sutil, como o espanhol Francisco Goya (1746-1828), cuja pintura variou de graciosa para trágica depois que o artista perdeu a audição aos 46 anos de idade. O norueguês Edvard Munch (1863-1944) começou a pintar aos 17 anos, depois que sua mãe e uma irmã morreram de tuberculose, e colecionou tragédias (seu pai e um irmão morreram e outra irmã foi internada em um hospital psiquiátrico) antes que completasse 30 anos e pintasse seu quadro mais famoso: O Grito, uma mistura de dor, desespero e tinta a óleo.
Henri e Henry
Na exuberante Paris do final do século 19, o infortúnio atingiu a rica família burguesa do conde Alphonse. No dia 30 de maio de 1878, então com 13 anos de idade, o pequeno Henri tentou pular uma cadeira em seu quarto, tropeçou e quebrou a perna esquerda. A recuperação foi lenta e não tinha terminado quando o menino saiu para uma caminhada e caiu depois de pisar em um buraco: quebrou a direita. Nunca mais ele foi o mesmo. Dono de um talento natural para o desenho, Henri Toulouse-Lautrec chegou à idade adulta com apenas 1,37 metro de altura e nunca esteve à vontade com isso. Superprotegido pela mãe, Adèle, sentia-se humilhado em seu meio social, não tinha amigos nem namoradas. “Por causa do trauma físico, abandonou a doce vida de menino rico e preferiu a companhia de outros excluídos, como jogadores, artistas e prostitutas”, afirma Daisy Peccinini, pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea da USP. Passou a viver (chegou a morar, mesmo) em cabarés que eternizou em suas obras, como o Chat Noir e o Moulin Rouge. Mas a vida boêmia cobrou seu preço. Toulouse-Lautrec morreu aos 47 anos de idade, com a saúde debilitada pelo álcool e pela sífilis.
Numa manhã quente do verão de 1890, na cidade francesa de Le Cateau-Cambrésis, quando Héloise Gérars deixou a loja onde vendia sementes com o marido para visitar o filho acamado depois de uma cirurgia de apendicite, algo no mundo das artes estava para mudar. Com 20 anos, o outro Henri era estudante de direito em Paris, onde dividia seu tempo entre os livros, um escritório de advocacia e visitas ao Louvre.
Dona Héloise levou-lhe um estojo de pintura, tinta guache e alguns pincéis, e a França perdeu um advogado para ganhar um mestre das artes. Henri Matisse largou a faculdade para se dedicar à pintura e à escultura. Quando expôs no Salão de Outono de Paris, em 1905, aos 35 anos de idade, conquistou fama internacional como um dos mais inova-dores – e modernos – artistas de todos os tempos. Matisse morreu em 1954, aos 65 anos, de câncer no intestino.
Jackson e Vicent
Em 1912, enquanto Matisse renovava as cores da arte moderna ocidental, nascia do outro lado do Atlântico um homem que, marcado sobretudo pelo alcoolismo, revolucionaria a arte da expressão. O mais novo de cinco filhos, Jackson teve uma infância conturbada. Aos 10 anos de idade já havia morado em seis estados diferentes e ainda na escola envolveu-se com a bebida. Aos 16 anos começou a estudar arte, primeiro em Riverside, na Califórnia, de onde foi expulso após uma briga, e depois em Nova York.
Aos 25 anos, foi internado pela primeira vez para tratamento psiquiátrico, tentando livrar-se do alcoolismo. Várias internações se seguiram, sem que conseguisse deixar o vício. Reconhecido como um artista realmente original, Jackson Pollock deixou Nova York e, na época, admitiu que as tentativas de desintoxicação passaram a nortear sua produção, cada vez mais expressiva de suas angústias, ansiedades e depressões. “Pollock transformou os conceitos surrealistas com sua rebeldia e seu método de pintar. Ele não tinha paciência para o tradicional e ansiava por descobrir coisas novas”, diz Daisy.
Esse anseio acabou refletindo em sua pintura. Imensas telas eram esticadas no chão e ele deixava a tinta escorrer de latas furadas ou a espalhava usando pedaços de madeira ou escovas de dente. Tudo feito de maneira muito rápida e intuitiva. “Quando me encontro na minha pintura, não tenho consciência do que estou fazendo. Mas apenas quando perco o contato com ela é que o resultado é uma confusão. Do contrário, há pura harmonia”, escreveu o artista em 1947, citado pelo crítico americano Frank O’Hara no livro Jackson Pollock.
Aos 44 anos, Pollock voltava para casa embriagado depois de uma festa quando seu carro chocou-se com uma árvore. A morte foi instantânea.
Distúrbios psicológicos são comumente associados à criatividade, como se fossem indícios de genialidade ou mesmo condições necessárias para a manifestação artística. É possível que Theodore tenha pensado nisso quando encontrou aquele envelope. Impossível não reconhecer a letra do irmão, Vincent. Na carta, ele dizia que decidira instalar-se em Paris. Era 1880 e o holandês Vincent van Gogh acabara de sofrer uma crise nervosa. A ida a Paris era uma decisão importante. Ele deixaria para trás uma carreira religiosa e a família e apostaria tudo na arte. Havia decidido expressar seus sentimentos por meio da pintura.“Preferiria minha loucura à sabedoria dos outros”, escreveu. “Em Paris, seus quadros ganharam cores fortes que foram além da representação da natureza, expressando o estado do artista”, diz Daisy. Mas não parece que tenha conseguido a paz que almejou.
Em 1888, Van Gogh foi para Arles e convidou o amigo e artista francês Paul Gauguin para ir com ele. No mesmo ano, passou a sofrer de epilepsia, o que o deixou extremamente nervoso e sujeito a surtos psicóticos. Durante uma crise, discutiu com Gauguin e, no extremo de sua condição, cortou um pedaço da própria orelha.
Em 1889, foi internado no hospital de Saint-Remy para doentes mentais. Lá pintou paisagens, internos, pátios e médicos. Seus últimos quadros mostram fortes deformações da realidade. Seus trigais estão inquietos, os ciprestes trêmulos, as oliveiras retorcidas. Em 27 de julho de 1890, depois de pintar 70 quadros em poucas semanas, Van Gogh saiu para o campo que havia pintado dias antes com um revólver na mão. Deu um tiro no próprio estômago e, dois dias depois, aos 37 anos de idade, morreu.
Amedeo e Frida
A vida nunca foi fácil para o mais novo dos quatro filhos de Flaminio e Eugenia. A família lutava com muitas dificuldades em Livorno, Itália, e o pequeno Amedeo já ajudava no orçamento dando aulas particulares e fazendo traduções. Apesar da pobreza, seguiam uma tradição de interesses literários e filosóficos. Aos 14 anos, o caçula contraiu febre tifóide e teve que abandonar a escola, passando a dedicar-se ao estudo da arte. Dois anos depois caiu novamente doente, dessa vez com tuberculose.
Mas manteve-se firme no propósito de estudar arte. Foi para Florença e depois Veneza, onde tomou contato com artistas impressionistas e as esculturas de Rodin. Foi em Veneza também que Amedeo Modigliani rendeu-se ao hábito do haxixe. Em 1906, chegou a Paris e aderiu, apesar da saúde débil, à vida sensual e dissoluta dos artistas de Montmartre. Sob efeito da pobreza, consolado pelo vinho e pelas drogas, Modigliani passou a pintar retratos. Pintava pescoços alongados e rostos e olhos mortiços, inteiramente azuis ou cinza.
Em 1919, a tuberculose o atacou de forma aguda e Modigliani pintou seu único auto-retrato, em que aparece vestindo sobretudo e cachecol. As mãos finas e frágeis acompanham o rosto magro de olhos vazados. Poucos meses depois, em 24 de janeiro de 1920, morreu aos 35 anos de idade.
Modigliani talvez pudesse ter cuidado melhor da saúde. Muitos não têm essa chance. A mexicana Frida Khalo teve poliomielite aos 6 anos. Com o pé direito ligeiramente deformado, ela seguiu uma vida normal e ingressou na Escola Nacional Preparatória em 1922. Atraída para as artes pelo maior pintor mexicano, Diego Rivera, conseguiu emprego como aprendiz, em 1925. No mesmo ano, sofreu uma grave lesão na coluna em um acidente de trânsito.
No mês em que ficou no hospital, apesar de amparada em talas de gesso e com os movimentos limitados, fez as primeiras tentativas na pintura. Quando foi para casa, sua mãe providenciou para que a cama fosse adaptada para permitir a ela pintasse.
Em 1930, já casada com Rivera, sofreu um aborto. E outro, em 1932. Em 1934 teve nova gravidez interrompida e os dedos do pé doente amputados.
Apesar das limitações físicas, Frida Khalo continuou participando de exposições e lecionando. Em 1944, pintou A Coluna Partida. Três anos depois teve a coluna vertebral operada e permaneceu meses imobilizada. Em 1950 passou por mais sete cirurgias: mais nove meses no hospital. Em 1953, quando foi organizada sua primeira exposição individual, ela compareceu instalada numa cama, ao lado de suas telas. No mesmo ano teve a perna direita amputada até o joelho.
Ainda em 1953, Frida Khalo tentou o suicídio. No ano seguinte, desafiou os conselhos médicos e, apesar de uma infecção pulmonar, participou das manifestações contrárias à intervenção americana na Guatemala. Morreu logo depois, em julho, aos 47 anos.
Só dói quando eu escrevo
Para alguns escritores, o declínio da saúde pode ter despertadouma nova sensibilidade
Leandro Sarmatz
“O mais prático dos sóis, / o sol de um comprimido de aspirina.” Quem escreveu esses versos não foi um publicitário a soldo da indústria farmacêutica, mas o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Vítima de enxaqueca por décadas, João Cabral tomava o comprimidinho branco como quem chupa dropes de hortelã.
Nem todos tiveram o sangue-frio e a ironia do autor de Morte e Vida Severina. Para grandes nomes da literatura, experimentar a dor e a degradação física significou penetrar em um mundo diferente. Em alguns casos, a provação foi demais. Noutros, a doença os fez descobrir um outro tipo de sensibilidade e talvez tenha até influenciado suas obras. Há estudiosos capazes de jurar que o estilo frondoso de Marcel Proust (1871-1922) nas quase 3 mil páginas de Em Busca do Tempo Perdido seja conseqüên-cia direta da asma. Encerrado num quarto forrado com cortiça durante vários anos, Proust fez o retrato da fina flor parisiense entre crises que o obrigavam a passar longos períodos afastado do mundo. Os críticos dizem que, se não fosse a doença, Proust teria sido apenas mais um esnobe da aristocracia da Cidade Luz.
Pulmões, aliás, parecem ser o calcanhar-de-aquiles de vários autores. Entre a metade do século 19 e o início do 20, a tuberculose ceifou dezenas de poetas e ficcionistas. O bacilo de Koch assombrou a existência de vários autores românticos, inspirando poemas melancólicos, liris-mo saudosista e elegias a granel. A cons-ciência da brevidade da vida forçava escritores mal saídos da adolescência a uma espécie de maturidade forçada. Por volta de 1870, o impacto da doença entre poetas europeus e latino-americanos era devastador. Como os britânicos lorde Byron e John Keats e os brasileiros Castro Alves e Álvares de Azevedo – todos invariavelmente boa-pinta, talentosos e com muito ainda a oferecer para as letras –, que feneceram como flores do jardim das musas.
Mas a ciranda fatal de tosse, fraqueza e catarro escarlate não foi exclusividade da geração “mal do século”. Ainda no século 20, o checo Franz Kafka (1883-1924), autor de A Metamorfose, teve a doença diagnosticada no período mais produtivo de sua carreira. Durante os sete anos entre a descoberta da tuberculose e a morte num sanatório austríaco, Kafka deixou alguns de seus melhores contos e textos biográficos que, por sua lucidez quase sobre-humana, só poderiam ter sido escritos por alguém que estivesse com um pezinho no outro mundo (qualquer que seja!).
Contemporâneo de Kafka, o irlandês James Joyce (1882-1941) presenciou o gradativo ocaso de sua acuidade visual. Vítima de glaucoma (pressão ocular), o autor de Ulysses já não enxergava quando completou Finnegans Wake, talvez o romance mais enigmático da história. Já se aventou a possibilidade de a atmosfera sombria do livro ter estreita relação com a doença de Joyce. Para um escritor, perder a visão pode parecer o mesmo que o Ronaldinho ter a perna amputada. Mas para o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) a cegueira não significou o ocaso da carreira. Dono de uma memória proverbial, Borges compunha textos de cabeça e depois pedia para transcrevê-los no papel. Mas essa forma de “escrever” teve pelo menos uma conseqüência danosa: seus contos tornaram-se simples e até esquemáticos – ao contrário da sofisticação da época em que o autor de O Aleph enxergava.
Cândido
Um dos maiores artistas brasileiros morreu intoxicado pelo amarelo
A dor enfrentada pelo artista pode estar presente em sua obra. Mas, às vezes, é a própria arte o motivo da dor. Um dos mais importantes artistas brasileiros, o filho de imigrantes italianos Cândido Portinari, expressava através da pintura as dores sociais do país e do mundo à sua volta. Desde Despejados, de 1934, ele soube mostrar a força expressiva dos tipos humildes, coti-dianos e verdadeiros. Seu trabalho marcou uma produção nacional independente e rapidamente alcançou reconhecimento internacional. Portinari era apaixonado pela pintura e pela cor.
Em 1954, no entanto, essa dedicação seria colocada à prova. Enquanto realizava os painéis Guerra e Paz – encomenda do governo brasileiro que hoje ocupa a sede da ONU, em Nova York –, Portinari começou a ter crises respiratórias e foi internado para testes e exames. Os médicos detectaram uma intoxicação causada pelo elevado índice de chumbo contido nas tintas que usava, particularmente num tipo de amarelo, e recomendaram que o artista passasse um tempo sem pintar. A biografia do artista publicada pelo Projeto Portinari conta que o artista reclamou à amiga e escritora Dinah Silveira de Queiroz: “Imagine! Não posso mais pintar. Estou proibido de viver!”
Por um tempo, Portinari dedicou-se ao desenho, compôs a série Dom Quixote em 1956, e passou a escrever memórias e poemas. Mas, mesmo em menor escala, continuou a pintar.
Em 1961, o artista sofreu diversas crises e alternou períodos de repouso com outros de trabalho entusiasmado. No ano seguinte, enquanto preparava uma exposição em Milão, descuidou-se da saúde e das recomendações médicas e voltou a usar os amarelos proibidos. O escritor português José Cardoso Pires escreveu sobre esse momento, no livro E Agora, José?: “O veneno das tintas lhe tinha corrompido o sangue, e ele sabia-o. O óxido das cores circulava nele como uma silicose de artesão, era o seu secreto respirar. E indo assim, em irmandade com a morte”. O estado de saúde do artista se agravou na madrugada de 6 de fevereiro de 1962. Portinari morreu no mesmo dia, às 23h40, no Rio de Janeiro.
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