No caminho para a Europa,
havia Natal.
Nunca antes a cidade tinha recebido tantos turistas. Rapazes brancos que em
poucos dias ficavam cor de laranja sob o sol, o que não espantava as moças da
cidade. Elas cercavam os GIs para conhecer as novidades, inéditas na história
do país. Whisky, Coca-Cola, Lucky Strike, foxtrot e bombardeiros de 16
toneladas.
A Segunda Guerra Aqui. Imagem: Felipe
Massafera.
Cotovelo
geográfico
Hoje, quem
anda pela orla em Natal chega a Miami. A praia de Miami, assim batizada graças
a quem a frequentava 70 anos atrás. No auge da Segunda Guerra, tomar sol em
Miami, Rio Grande do Norte, era um dos passatempos dos 10 mil soldados
americanos que, entre 1942 e 1945,
operavam as bases militares mais importantes dos aliados no Hemisfério Sul - o Campo de Parnamirim e a Base Naval de Hidroaviões.
Espécie de
cotovelo entre a América e a África, o Nordeste brasileiro era considerado pelos americanos um dos pontos mais estratégicos do
mundo. Os aviões militares, que partiam da Miami original, nos EUA, faziam
escala em Porto Rico, Trinidad e Belém - para depois partirem rumo a Senegal,
Togo e Libéria e daí à Europa, levando carga ou os próprios bombardeiros, como
as fortalezas voadoras B-17 e B-24. Parnamirim virou o aeroporto mais
congestionado do mundo, com até 800 pousos e decolagens por dia. "Antes
pacata e tranquila, a vida noturna de Natal alterava-se profundamente: era
agora agitada e trepidante; bares e boates surgiam da noite para o dia",
escreve o jornalista Murilo Melo Filho em seu livro de memórias, Testemunho
Político. A americanização logo chegou aos trajes. Os homens abandonaram os
ternos e as calças de risca-de-giz e passaram a vestir roupas cáqui de
inspiração militar. As calças de brim azul, usadas nas horas vagas por recrutas
americanos, chegaram ao Brasil via Natal - embora só fossem se espalhar pelo
país na década de 50. As moças - que antes só passeavam na companhia de pais e
irmãos, vestidas com saias rodadas - agora andavam sozinhas, de calças
compridas, mascando chicletes, o sinal inconfundível da modernidade.
Além dos soldados,
Natal recebeu estrelas do showbiz, enviadas pelo governo dos EUA para levantar
o moral das tropas. Humphrey Bogart veio animar a estreia de Casablanca no
teatro da base, em 1942. A orquestra de Glenn Miller tocou no Cine Rex. Nos
prédios das bases militares, sucediam-se festas onde os combatentes americanos
se misturavam aos jovens - e, principalmente, às jovens - natalenses.
Além de
cortejar as moças de família, os americanos eram frequentadores de prostíbulos
como o Wonder Bar, a Casa da Maria Boa, a Pensão Estela e o Bar Ideal. (Para
controlar as doenças venéreas, os médicos do exército passaram a examinar as moças
da zona de meretrício e as garotas saudáveis ganharam atestados chamados love
cards.) Em Natal, mais do que em qualquer outro lugar das Américas, a política
da boa vizinhança era um tremendo sucesso.
A Política de Boa Vizinhança do presidente americano
Franklin Roosevelt era uma doutrina para toda a América Latina, visando
combater o antiamericanismo e as simpatias pelo Eixo por meio de trocas
culturais patrocinadas pelo Estado.
Quando o Brasil entrou na guerra do lado aliado, em 22 de agosto de 1942,
assumiu mais que um compromisso militar. Os americanos deixavam de ser figuras
de cinema para se tornarem presenças físicas. Os brasileiros, antes só
exóticos, viraram exóticas figuras de cinema.
-O que é isso,
senhora Miranda?
-Um reco-reco
-Reco... reco? - a voz poderosa vinha em fortíssimo sotaque
americano.
-Sim. E isto é um pandeiro.
-Pandeiro?
-Sim, um pandeiro. Algo
errado, mister Welles?
-Nada. É que às vezes fico meio confuso.
Era 15 de
novembro de 1942 e o diálogo ocorria em um estúdio no Rio de Janeiro,
transmitido diretamente à radio CBS dos EUA. Ao redor do microfone estavam
Orson Welles - a voz mais famosa do país, graças à transmissão de A Guerra dos
Mundos, em 1938, e que havia acabado de estrear no cinema com Cidadão Kane - e
Carmem Miranda, que na época já era uma estrela de Hollywood. Ela tinha migrado
aos EUA meses antes da guerra - quando o conflito começou, havia estourado na
Broadway com o musical Streets of Paris, cantando Mamãe Eu Quero. Lá, ganhara o
apelido de brazilian bombshell. Carmen era a encarnação da política de boa
vizinhança: em 1940, se apresentou na Casa Branca e no mesmo ano foi eleita a
terceira personalidade mais popular de Nova York.
Nas dezenas
de filmes dos quais participou em Hollywood, Carmem se tornaria um estereótipo
não só do Brasil mas também de toda a América Latina. Já Welles havia sido
enviado para cá com a incumbência de gravar um documentário sobre o país -
encomenda do Office of Interamerican Affairs. Welles virou figura folclórica
nas noites cariocas: acompanhado de tipos como Grande Otelo, tomava proverbiais
bebedeiras de cachaça, colecionava amantes e discorria sobre as origens comuns
do jazz e do samba para extasiados convivas em bares e boates.
O Office
havia enviado ao Brasil outro personagem ilustre: Walt Disney. O Rio de Janeiro
foi a principal parada em uma viagem pela América Latina, no início de 1941 -
uma espécie de pesquisa de campo para um filme de propaganda da amizade
continental. Disney instalou seu QG no Copacabana Palace e cercou-se de
artistas locais para sentir o clima. Com a ajuda de cartunistas brasileiros
como J. Carlos e Luiz Sá, criou o maior sucesso da Disney no Brasil: Zé
Carioca. Aliás, não criou: encontrou. Na comitiva brasileira estava o músico
José do Patrocínio Oliveira, paulista de Jundiaí. Como membro do Bando da Lua,
a banda de Carmem Miranda, viveu nos EUA, onde aprendeu inglês. Foi assim,
sendo ele mesmo, que interpretou o papagaio Zé Carioca na animação Alô, Amigos,
de 1942. Pois é, Zé Carioca era paulista. O personagem ainda é publicado no
Brasil, enquanto ninguém se lembra mais dele no exterior.
A missão de Welles
não foi tão bem-sucedida: em vez de gravar loas ao governo Vargas - conforme a
encomenda -, ele registrou a vida nos cortiços cariocas e de tecelões e
pescadores pobres no Nordeste. Os rolos acabaram confiscados. As imagens do
documentário ainda existem, mas nunca foram montadas.O filme se chamaria: It's All True (É
tudo verdade).
Matérias-primas
Os EUA não queriam a amizade do Brasil apenas por
bases e danças exóticas nem pagaram com papagaios: como parte dos acordos com o
governo Vargas, os EUA financiaram a construção da Usina Siderúrgica Nacional
de Volta Redonda - que custou 200 milhões de dólares da época (hoje cerca de
2,6 bilhões de dólares). Do Brasil, os EUA queriam matérias-primas importantes
ao esforço de guerra. A principal era a borracha, usada em tanques, jipes,
aviões, uniformes e armamentos.
A indústria
da borracha estava praticamente morta no Brasil desde o início do século 20.
Nativa da Amazônia, a seringueira foi plantada pelos ingleses em suas colônias
do Sudeste Asiático e essas plantações tinham uma produção muito maior que as
brasileiras, pois estavam livres de pragas nativas. Mas os japoneses ocuparam a
região e bloquearam o acesso às plantações. Além disso, o Brasil era fonte de
materiais que iam desde minérios simples, como ferro e manganês, até diamantes
industriais, óleos vegetais e carne em conserva. E era o único produtor
disponível de cristais incolores de alta qualidade, o quartzo, utilizados em
aparelhos de comunicação, detectores de som e de localização usados contra
submarinos e aviões. A cera de carnaúba, palmeira nativa do Brasil, tem várias
aplicações industriais: era usada na produção de vernizes à prova d’água pela
indústria bélica. Os bichos da seda, cultivados por pequenos produtores
japoneses em São Paulo, eram essenciais na fabricação de paraquedas. E a
hortelã-pimenta dava origem ao mentol, que aumentava a potência da
nitroglicerina.
Ao decretar
guerra aos países do Eixo, Vargas tinha uma dura tarefa de convencimento.
Muitos brasileiros admiravam a Alemanha. Havia mais de 200 mil descendentes de
alemães no Brasil.
"Cresci
ouvindo dizer que os alemães eram o povo mais inteligente e avançado da Terra.
Já os EUA não tinham grande expressão antes de 1939. Essa admiração pelos
americanos só veio depois dos afundamentos dos nossos navios"
Osias Machado, veterano da Aeronáutica.
Vida de
imigrante
Para a sorte
de Vargas, os nazistas fizeram sua parte em cultivar o ódio dos brasileiros. Em agosto de
1942, o irmão mais velho de Osias, Messias, vivendo no Rio de
Janeiro, mandou um telegrama avisando que iria ao Nordeste no navio Itagiba. Em 17 de agosto, correu a notícia
de que o barco fora afundado no litoral de Sergipe. Era
a quarta vítima de torpedos alemães no
mês - represália ao alinhamento do Brasil com os EUA, no início do ano. Até o
fim de agosto, mais de 600 brasileiros morreriam.
"Achei que meu irmão estivesse no fundo do mar. Aí, pensei: agora é
guerra. Quero vingança." Dias depois, veio o alívio: Messias não havia
embarcado no Itagiba. Mas a semente estava plantada.
"Passei da admiração ao ódio em questão
de dias. Juntei um grupo de amigos e saímos quebrando o que fosse de gente do
Eixo. Não me arrependo."
Osias Machado, veterano da Aeronáutica.
A raiva de
Osias não era incomum. Em 19 de agosto
de 1942, uma multidão saiu às ruas de Porto Alegre.
"Formou-se
uma grande concentração popular em frente ao Cinema Central, daí irradiando-se
por toda a cidade. Os manifestantes saíram correndo pelas ruas, iniciando as
depredações que se estenderam até altas horas. Na Sociedade Germania, os
manifestantes penetraram no edifício, retiraram os móveis e utensílios para o
meio da rua e os incendiaram"
Jornal Correio do Povo, 19 de agosto de 1942.
Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.
Até os
comunistas aderiram à mobilização de Vargas. Na época, muitos líderes estavam
presos. Ainda assim, os esquerdistas em
liberdade se uniram ao regime contra o inimigo comum. "Os membros do PCB
que não estavam em cana chegaram a criar um slogan na época: “Quem é jovem vai
pra guerra”. E a palavra de ordem foi levada a sério", diz o historiador
René Gertz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O Estado Novo foi um regime autoritário nacionalista - pelo
decreto-lei 406, de 4 de maio de 1938;
*As escolas em língua estrangeira foram proibidas.
*No ano seguinte, foi a vez das igrejas - só o
latim sobreviveu nos rituais católicos.
*Quando o Brasil entrou na guerra, também
foram proibidas publicações em qualquer língua que não o português.
*Para viajar de um estado a outro, descendentes de
alemães, italianos e japoneses precisavam de salvo-conduto emitido pela
polícia.
*Descendentes de alemães, italianos e japoneses não
podiam se reunir, nem mesmo em casa.
De 1942 a
1945, cerca de 3 mil pessoas foram presas sob acusações de serem "súditos
do Eixo" e enviados para 12
campos de prisioneiros, os maiores nas cidades paulistas de
Pindamonhangaba e Guaratinguetá.
O preço do
azeite
Em janeiro
de 1944, na véspera de embarcar para um treinamento nos EUA, Osias, voluntário
do 1º Grupo de Caça da Força Aérea Brasileira, resolveu se despedir almoçando à
beira da baía de Guanabara. Com o uniforme da FAB, entrou no restaurante
Albamar - que existe até hoje - e pediu peixe. De garfo à mão, deu uma
espiadela no vidro de azeite. "O azeite custava 20 cruzeiros. O peixe, uns
5", lembra. O azeite era e ainda é importado. Com o comércio internacional
bloqueado pelos submarinos alemães, o preço se tornou impraticável. Osias
ponderou e deu de ombros, pedindo o peixe sem azeite mesmo. Foi interrompido
por uma voz com sotaque português na mesa ao lado, entre indignada e gentil. "Na minha
terra, quem vai guerrear almoça de graça. E peixe só se come com azeite. Eu
pago tudo." Pela gentileza do lusitano filantropo, Osias pôde
enfrentar os nazistas com a força adicional do azeite de oliva.
Racionamento
A falta de itens
elementares, como pão branco, gasolina e diesel, tornou-se parte do dia a dia
bem antes do rompimento das relações diplomáticas com o Eixo. Em 1939, a
escassez de trigo esvaziava os fornos das padarias - o Brasil sempre importou
trigo. Em 1942, o governo tentou resolver o problema criando o "pão de
guerra", feito com farinha de milho. Os preços eram tabelados. Em São
Paulo, o pão branco custava 2,50 cruzeiros. O pão de guerra, 1,60. "Foi um
dos momentos em que a mobilização da guerra chegou fundo no cotidiano das
pessoas. O pãozinho branco já estava muito instituído entre nós", diz
Roney Cytrynowicz, autor da obra Guerra Sem Guerra: a Mobilização e o Cotidiano
em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial.