Antes
da ascensão do islamismo, credos politeístas encontraram na Península Arábica
um local para continuar existindo, preservadas das grandes religiões que
acreditavam em um deus único, como o cristianismo triunfante.
Por
volta do século V, os habitantes da região do Mediterrâneo tinham se convertido
ao cristianismo. O panteão de deuses da Grécia e de Roma era só lembrança do
passado. E, pelo jeito, os velhos deuses estavam mesmo na hora de se aposentar.
O historiador Plutarco, sacerdote do templo de Delfos, lamentava-se, no século
2, que Apolo se calara: não respondia mais às consultas oraculares feitas por
ele. Até os cultos de deuses "importados", como o da egípcia Ísis e
do persa Mitra, estavam em baixa. Em 394, um pequeno grupo de devotos de Ísis
fez a última procissão em homenagem à deusa pelas ruas de Roma.
As
religiões pagãs tinham sido varridas do mapa? Não. No século V, na Península
Arábica, os deuses greco-romanos sobreviviam. Em Failaka (no atual Kuwait),
festivais populares eram organizados em devoção ao deus Poseidon (o Netuno dos
romanos) e à deusa Artemis (Diana). A deusa Minerva (Al-Lat) tinha adoradores
na Arábia, na Síria e na Palestina. "Até o século 4, quase todos os
habitantes da Arábia eram politeístas", diz o professor de Oxford Robert
G. Hoyland, autor de Arabia and the Arabs - From the Bronze Age to the Coming
of Islam ("Arábia e os Árabes - Da Era do Bronze à Vinda do Islã").
"Al-`Uzza (Afrodite) era cultuada no Sinai e na Arábia", diz James E.
Montgomery, professor de História Árabe da Universidade de Cambridge, autor de
Arabic Theology, Arabic Philosophy: From the Many to the One ("Teologia
Árabe, Filosofia Árabe: do Múltiplo ao Uno").
Como
aconteceu essa assimilação? Bem, não foi só da Grécia e de Roma que os árabes
pegaram deuses emprestados. "Hoje se acredita que as divindades árabes
eram formas locais, adaptadas, das divindades do mundo antigo do
Mediterrâneo", registrou Timothy Winter, da Universidade de Cambridge, na
Inglaterra, no ciclo de palestras A Crash Course in Islamic History (Breve
Curso de História Islâmica). Os árabes assimilaram os deuses dos povos vizinhos,
adaptando-os à sua religião. A deusa Al-Lat, como vimos, era Minerva (nome
romano da grega Atena) sob disfarce, mas nem tão disfarçada assim: em Cartago,
a mesma deusa usava o nome de Allatu. "Muitas das divindades da
Antiguidade ocidental poderiam ser facilmente intercambiáveis", diz a
historiadora Mary Beard, autora de Religions of Rome ("Religiões de
Roma"). No século 5 a.C., isso já tinha despertado a atenção de Heródoto.
Em seu périplo por terras árabes, o historiador observou um pacto entre dois
chefes tribais feito em nome de Dionísio (o Baco romano). "Os árabes
chamam Dionísio de Orotal", escreveu Heródoto nas Histórias (430 a.C.).
Um
caso ilustrativo é fornecido pelas observações do general romano Aelius Gallus.
Em 26 a.C. ele foi enviado ao sul da Arábia para costurar acordos comerciais
com os reinos da região (chamada de Arabia Felix, "feliz"). Os
romanos cobiçavam o incenso e as especiarias. Gallus, em seu diário, não deixou
de notar a semelhança entre os deuses locais e o panteão romano. "O nosso
Júpiter aqui é Dhu'Shara", espantou-se.
Ídolos na caaba
O panteão árabe era bem
pobre em termos de causos mitológicos. A origem da religião, ou religiões, da
Arábia pré-islâmica está envolta em um manto de obscuridade. "Nós
praticamente não possuímos informações sobre os mitos e narrativas que
decodificariam a religião da Arábia pré-islâmica", diz Hoyland.
"Muitos autores greco-romanos escreveram tratados sobre a Arábia e as
coisas dos árabes, mas infelizmente eles foram perdidos, ou deles só sobraram
fragmentos." Os dados completos disponíveis são provenientes da
historiografia islâmica, posterior. Tal como os primeiros autores cristãos
(Eusébio de Cesareia, Santo Agostinho, Tertuliano), os muçulmanos viram o
passado pagão - romano ou árabe - sob o prisma da religião nascente. Reza a
lenda (exposta no Livro do Gênesis, na Bíblia), que os árabes descenderiam de
Ismael, o filho de Abraão com a concubina Hagar, a serva egípcia de sua esposa,
Sara. Quando Sara deu à luz Isaac, obrigou o marido a expulsar a serva e o
primogênito. Hagar e o menino erraram pelo deserto, até chegarem ao árido vale
de Meca, onde se estabeleceram.
A
religião original da Arábia seria estritamente monoteísta, baseada na crença no
Deus Uno, ensinada por Abraão a Ismael. Segundo a história islâmica, a Caaba -
"A Casa de Deus", prédio de forma cúbica no coração de Meca - teria
sido construída por Abraão e Ismael. Na obra O Livro dos Ídolos, do século 9,
que trata do politeísmo árabe, é dito que o primeiro descendente de Ismael a
adulterar a religião de Abraão foi um certo Al-Harith, guardião da Caaba. Ele
retornou a Meca com um ídolo de pedra e pediu sua intercessão junto a Deus. Com
o tempo, a presença de Deus tornou-se tênue no imaginário local, e os ídolos,
que antes serviam de ponte entre os homens e Deus, usurparam a posição divina.
Viraram deuses, no plural. No século 3, segundo Al-Azraqi, autor das Crônicas
da Meca Gloriosa, 400 ídolos de pedra haviam sido erigidos ao redor da Caaba,
homenagem aos mais diversos deuses da Arábia e dos povos vizinhos. Essa é a
versão dos historiadores muçulmanos, que enfatizaram, em suas narrativas, um
monoteísmo mítico em Meca. Os vestígios arqueológicos, no resto da Arábia,
apontam à anterioridade das religiões politeístas na região.
Ascensão do Islã
Graças
à Caaba, Meca teve, antes do Islã, importância na vida religiosa árabe. Era uma
espécie de Aparecida, que atraía romeiros à cidade. Os líderes de Meca davam
boas-vindas a todas as divindades e religiões. A cidade funcionava como uma
espécie de ONU multicultural do paganismo antigo. Cada tribo tinha o seu
próprio santuário ali. Ao contrário da imponente estatuária romana, os ídolos
árabes eram bem modestos. A estátua de Al-Lat em seu templo oficial, em Ta'if,
era fruto da reforma de uma panela de pedra, utilizada por um judeu para
cozinhar mingau. "Muitas vezes, os ídolos eram somente uma pedra
polida", diz Ibn Al-Kalbi.
A
vida religiosa não estava restrita a Meca. Cada cidade tinha seu deus. Em
Hegra, no norte, os habitantes diziam-se "filhos de Manat", que os
gregos chamavam de Tyché - a Fortuna dos romanos. Em Mleiha, nos atuais
Emirados Árabes, o deus popular era Kahl. Em Palmira, na Síria, o culto era à
deusa Bel. Os templos religiosos pré-islâmicos não diferiam, em sua arquitetura
simples, da casa de um árabe afluente da época, em cuja sala de estar erigia-se
um pequeno altar dedicado ao deus, ou deuses, da predileção do proprietário.
Leite, vinho, cereais, carne de camelo e de ovelha eram depositados diante do
altar. Junto à Caaba, em Meca, costumava-se sacrificar camelos. "Os árabes
possuíam deidades auxiliares, chamadas mundhat, que cuidavam da proteção dos
vilarejos, das casas e até das pessoas individualmente", diz Hoyland.
Esses entes sobrenaturais não seriam muito diferentes do que hoje se chamam
"anjos".
Na
época do surgimento do Islã, no século 7, há indícios de declínio econômico na
Península Arábica. O comércio de incenso, vindo do Iêmen, sofreu um baque com a
concorrência marítima dos romanos, pelo Mar Vermelho, estabelecida após a
missão do general Gallus (que foi na verdade uma rasteira nos mercadores
árabes). Um segundo golpe, ainda mais duro, foi sentido com a ascensão do
cristianismo, que praticamente aboliu, no Mediterrâneo, o uso religioso do
produto, associado ao paganismo. Na época de Mao-mé, o sul da Arábia era uma
pálida imagem do passado. Meca tinha uma economia pequena.
O
advento do Islã representou o fim do paganismo. Na história do apostolado de
Maomé (por volta de 609 a 632 d.C.), os senhores políticos de Meca tentaram
dissuadi-lo de sua missão religiosa. Em 622, em reunião na Câmara do Conselho
da cidade, chefes de diversos clãs decidiram assassiná-lo. Para sacramentar a
decisão, fizeram um banquete, sacrificando animais num altar a Al-`Uzza. O
atentado falhou, motivando a Hégira, o êxodo de Maomé a Medina, que marca o início
do calendário islâmico.
Em
630, o exército comandado pelo Profeta conquistou Meca. Os ídolos em volta da
Caaba foram queimados. Maomé enviou missões militares para demolir os
principais templos da península, como o de Al-`Uzza em Nakhla. Lá, o general
Khalid bin Walid, um brilhante estrategista militar, conhecido como a
"Espada do Islã", não se contentou em destruir o templo. Segundo
Waqidi, cronista das campanhas militares dos primórdios do Islã, Khalid viu
surgir dos escombros uma mulher nua. Os fios da sua cabeleira, de tão longos,
iam quase até o chão. Ela fitou o general, impávida, imóvel, majestosa. Khalid
diz ter sentido um calafrio à sua visão. Era a sacerdotisa de Al-`Uzza.
"Nós negamos a ti, e não à veneração!", gritou ele. A cavalo, avançou
em disparada contra ela, sacou a espada e a decapitou. Era o fim dramático da
última representante de Afrodite na Arábia. Nem os deuses duram para sempre.
Divino trio
Na
história da Arábia pré-islâmica, três deusas estiveram no centro da devoção
popular: Manat, Al-Lat e Al-`Uzza. Segundo o antigo historiador Ibn Al-Kalbi,
elas seriam as divindades mais antigas da região. Manat representava a sábia
anciã, e seria uma adaptação da deusa grega Tyché (Fortuna para os romanos).
Al-Lat, figura materna, uma versão local de Atena (Minerva em Roma). E
Al-`Uzza, a adolescente, um sincretismo com a deusa Afrodite (Vênus).