Depois de muitas tentativas
de tomar o atual território da Escócia, as legiões romanas resolveram levantar
um muro para evitar invasões bárbaras.
Retratada em brochuras como
um programa familiar, unindo história, natureza e exercício num mesmo passeio,
a Muralha de Adriano, nas proximidades da fronteira entre a Inglaterra e a
Escócia, é hoje uma das principais atrações turísticas do norte inglês,
contando com o status de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Porém,
o que hoje é lugar para piqueniques e caminhadas ecológicas e mesmo um serviço
de chá tradicionalmente britânicos, é o marco de uma das mais bizarras e sangrentas
campanhas militares do Império Romano. O símbolo de uma história que mistura
tons de resistência dignas de um episódio das aventuras de Asterix com os
efeitos colaterais da grandiosidade geográfica e política de Roma. E que ainda
provoca surpresas em arqueólogos e historiadores.
Erguida no ano 122, a mando
do imperador Adriano, a muralha, que se estendia por mais de 120 km, o
suficiente para cobrir de costa a costa a região em que o território britânico
afunila, teve um objetivo duplo: consolidar os ganhos territoriais obtidos
pelas incursões romanas nas Ilhas Britânicas e ao mesmo tempo esfriar os ânimos
do que pode ser descrito como uma guerrilha vinda do norte. Por décadas, Roma
tentara e fracassara na missão de subjugar os povos do norte da ilha batizada
de Britânia. E novas descobertas arqueológicas sugerem que não foi por falta de
tentativas graúdas. Um estudo publicado no ano passado pela arqueóloga Rebecca
Jones, do Instituto de Patrimônio Arqueológico Escocês, garante ter encontrado
vestígios de nada menos que 260 fortificações romanas no território do que hoje
conhecemos como Escócia.
Guerrilha
A quantidade de fortes
corresponde ao maior esforço de pessoal do império numa campanha europeia e que
torna ainda mais estranha a história das incursões na região. Especialmente se
comparada com a relativa facilidade com que o restante das ilhas tinha sido
dominado. "O exército romano era mais bem equipado, treinado e
disciplinado que as tribos do norte. Era uma força profissional lutando contra
a rebeldia isolada e fragmentada das tribos. Mas ataques típicos de guerrilha
fizeram a vida dos romanos muito complicada", diz Jones.
Não que Roma simplesmente
tivesse desfilado pelo resto do país. O império experimentou um histórico de
rebeliões ao sul, a mais famosa delas o levante comandado pela rainha celta
Boadicea, em 61, e que resultou na destruição de Londinium, o povoado romano
que deu origem a Londres. As primeiras campanhas tiveram início ainda com Júlio
César, em 55 a.C., quando os generais romanos suspeitavam que a proximidade
geográfica com a Gália resultava em colaboração contra o domínio imperial.
Mas foi quase um século
depois, por volta do ano 43, e com Cláudio no trono, que as operações se
intensificaram. O que hoje é conhecido como Inglaterra, em especial a região
sul e leste, foi conquistado. Na década de 70, as atenções se voltaram para o
norte. Além da busca por escravos e metais, conquistar era uma demonstração de
poder para os imperadores.
No norte estavam habitantes
conhecidos como caledônios. De origem celta, mostraram-se um inimigo mais
voluntarioso do que as legiões esperavam. Aproveitando-se de aliados naturais,
como o terreno montanhoso que marca boa parte da Escócia, faziam
ataques-surpresa em vez de buscar o confronto direto. No mais famoso e ousado
deles, uma emboscada noturna em 83 teria causado sérias baixas à IX Legião.
No ano seguinte, a batalha
de Monte Graupius resultou numa carnificina maior a favor das tropas do general
Julius Agricola. Parecia apenas questão de tempo para que houvesse o controle
total do norte. Segundo o historiador romano Tácito, a ferocidade do combate foi
tamanha que os caledônios que bateram em retirada mataram suas próprias
mulheres e crianças temendo a represália romana. "Se os romanos tivessem
colocado mais tropas, teriam subjugado os rebeldes. Mas Roma tinha fronteiras
extensas, não era possível canalizar todos os recursos para a região", diz
Jones.
O controle total jamais
veio. Em séculos de presença nas ilhas, os romanos jamais controlaram toda a
Escócia. As razões provocam divergências no meio acadêmico, mas as evidências
arqueológicas são de que, ao contrário da Inglaterra, a presença romana na
Escócia foi mais militar do que civil, ainda que haja registros de tribos que
mantinham relação amigável com os romanos. No geral, porém, o clima era pesado.
Em textos antigos romanos, por exemplo, os caledônios eram descritos como
encrenqueiros e bárbaros.
Tribos
hostis
"Foram repetidas
campanhas para tentar subjugar as tribos caledônias. Operações brutais,
sangrentas e malsucedidas para a máquina de guerra romana. As legiões tinham
que lidar com tribos hostis e com as próprias dificuldades logísticas
proporcionadas pela falta de uma estrutura maior e pelos problemas em
Roma", diz Jones. Há uma corrente que vê nos tropeços romanos um problema
causado pelo próprio expansionismo imperial. Agricola, por exemplo, foi chamado
de volta à Roma em caráter de urgência após o evento de Monte Graupius para
ajudar a lidar com uma crise militar nas fronteiras do Reno e do Danúbio, mais
próximas do coração do império e mais problemática que os "guerrilheiros"
caledônios.
Outra
muralha
"Precisamos deixar um
pouco de lado o romantismo. Roma tinha plenas condições de consolidar seu
domínio sobre os escoceses, mas fatores muito mais importantes mudaram o foco
das ações militares. A crise no Danúbio enfraqueceu a presença militar na
Caledônia. Foram eventos de força maior que impediram uma conquista total, não
algum tipo de heroísmo tribal", afirma Bill Hanson, professor de
arqueologia da Universidade de Glasgow e especialista do chamado "perío-do
romano¿¿ britânico.
A construção da Muralha de
Adriano é vista como uma mudança de estratégia. O imperador mostrava-se menos
entusiasmado com a expansão a todo custo e os objetivos de captação de recursos
tinham sido atingidos com o domínio no sul. "Adriano até recuou de algumas
campanhas iniciadas no reinado de seu antecessor, Trajano. Não havia uma
obsessão em terminar o trabalho, especialmente quando Roma tinha que priorizar
o uso de seus recursos militares em áreas mais sensíveis", diz Hanson.
O fato é que sucessores de
Adriano voltaram à carga. Em 138, o imperador Antonino ordenou nova invasão. As
tropas romanas avançaram de forma significativa em território escocês, a ponto
de construírem uma nova muralha, a de Antonino, 160 km ao norte da de Adriano e
já bem mais próxima das Highlands. Era menor, com 63 km de extensão, e erguida
com barro em vez das pedras da fortificação original. A construção durou 12
anos, até 154. Apenas oito anos depois, as linhas romanas já tinham recuado
para a Muralha de Adriano. O império faria mais quatro grandes invasões,
incluindo uma, em 209, com 40 mil homens. Em 211, chegou-se a um armistício.
Latim
Os dominadores provaram do
próprio remédio: no século 4, os caledônios lançaram uma ofensiva que a muralha
não foi capaz de segurar. Às voltas com as invasões bárbaras em Roma, mais e
mais tropas foram deslocadas das ilhas britânicas, até que em 410 teve fim a
administração romana. Os romanos deixaram sua marca nos povos caledônios: além
da adoção do latim como língua para assuntos burocráticos, os avanços semearam
o cristianismo na região. Mas a resistência evitou que a Escócia experimentasse
pontos positivos da ocupação. "A região não passou pelo mesmo crescimento
de centros urbanos como no sul. Os romanos incentivaram a criação de cidades e
isso se reflete no cotidiano britânico, em que a Inglaterra é mais desenvolvida
que a Escócia", diz Hanson. Na Escócia, que em breve terá um referendo
sobre sua independência do Reino Unido, o passado é explorado com orgulho.
Turistas à parte, a Muralha de Adriano é um monumento que nem Mel Gibson e seu
Coração Valente conseguem superar.
Atrás
do muro
Para conter os ataques dos
caledônios, romanos criaram barreiras de contenção.
Muralha
de Adriano
Início da construção: 122
Final da construção: 126
Extensão: 118 km
Material: pedra e madeira
Altura: 4,5 m
Largura: 2,5 m
Muralha
de Antonino
Início da Construção: 142
Final da construção: 154
Extensão: 63 km
Material: turfa e pedra
Altura: 4 m
Largura: n/d
Texto:
Fernando Duarte.
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