sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Ifigênia em Áulis


Ifigênia em Áulis (gr. ΙΦΙΓΕΝΕΙΑ Η ΕΝ ΑΥΛΙΔΙ — Ifigênia em Áulis) é, provavelmente, a última tragédia de Eurípides. Foi representada pela primeira vez em -405 no concurso trágico das Dionísias Urbanas de Atenas e era parte da trilogia que e recebeu a primeira colocação. Os dramas que a acompanharam eram Bacantes e Alcmeon em Corinto, esta conhecida somente pelos fragmentos.

Eurípides havia morrido alguns meses antes do concurso de -405 e "Eurípides o Jovem", filho (ou sobrinho) do poeta, encenou a trilogia. Acredita-se ainda que ele compôs alguns trechos da Ifigênia em Áulis, que o pai /tio deixara inacabada.

Os últimos versos da tragédia (1532-1629), tal qual a conhecemos, também não são de Eurípides. Esse final, conservado pelos manuscritos disponíveis, foi aparentemente criado durante o Período Bizantino[1]. A maior parte dos eruditos concorda que o texto, embora alterado por diversos outros autores ao longo dos séculos em várias cenas, segue o sentido geral dos planos de Eurípides para a tragédia (Ribeiro Jr., 2006).

Hipótese

A tragédia se baseia em um dos episódios do Ciclo Troiano. Agamêmnon, rei de Micenas (ou Argos), comandante das forças gregas que se preparam para atacar Tróia, é compelido a sacrificar sua filha Ifigênia para que a deusa Ártemis cesse a longa calmaria que impede o embarque dos gregos. A inesperada chegada de Clitemnestra em companhia da filha e a intervenção de Aquiles, alheio à trama, complicam seus planos.

Dramatis personae

Agamêmnon: rei de Micenas (Argos), marido de Clitemnestra, pai de Ifigênia

Velho: antigo servidor de Agamêmnon e Clitemnestra

Coro: jovens mulheres casadas de Cálcis, Eubéia

Menelau: rei de Esparta, irmão de Agamêmnon, tio de Ifigênia, marido de Helena

Clitemnestra: esposa de Agamêmnon, mãe de Ifigênia e irmã de Helena

Ifigênia: Filha mais velha de Agamêmnon e de Clitemnestra

Aquiles: o mais poderoso guerreiro grego, líder dos mirmidões

Primeiro Mensageiro

Segundo Mensageiro

Servos mudos

O bebê Orestes era representado por um boneco e Helena, causa imediata da Guerra de Troia, é tão mencionada que se pode considerá-la outro personagem da tragédia.

Esta é uma das poucas peças em que Eurípides não recorreu ao deus ex machina: Ártemis, principal personagem divino da tragédia, é apenas mencionada. Há evidências, porém, de que o êxodo original de Eurípides ou de Eurípides junior, hoje perdido, pode ter contado com a voz da deusa Atena em cena, dirigindo-se talvez a Agamêmnon (cf. a voz de Ártemis no Hipólito).

Mise en scène

A cena se passa no acampamento das forças gregas estacionadas em Áulis, cidade da Beócia que faz frente à Eubéia, na época da Guerra de Tróia. O protagonista fazia Agamêmenon e Aquiles; o deuteragonista, Menelau e Clitemnestra; o tritagonista, o velho, Ifigênia e os mensageiros.

A tragédia contém 1629 versos e ocupa cerca de 68 páginas da edição de Jouan (1983), na qual se baseia este resumo.

INITgitado, Agamêmnon convoca um velho servidor, relembra os antecedentes da Guerra de Tróia e revela que Ártemis impede os ventos de soprarem para que o exército grego não embarque. Um oráculo havia ordenado que sacrificasse sua filha mais velha, Ifigênia, para aplacar a deusa, e assim ele avisara Clitemnestra, sua esposa, para enviar a filha até Áulis sob o falso pretexto de casá-la com o herói Aquiles. Arrependido, pede a um velho servidor que leve a Argos uma mensagem com ordens contrárias (Prólogo, 1-163).

O coro descreve o acampamento, os guerreiros e os navios de cada contigente grego, e as atividades de alguns deles enquanto esperam o embarque (Párodo, 164-302).

Menelau surpreende o velho, toma-lhe as tabuinhas com a mensagem de Agamêmnon e lê; os dois irmãos discutem e ofendem-se mutuamente. Chega o Mensageiro e comunica que Clitemnestra, Ifigência e Orestes estavam chegando; Agamêmnon lamenta-se, e Menelau mostra simpatia pelas atribulações do irmão. Agamêmnon, no entanto, diz a ele que a morte de sua filha é inevitável devido às pressões do exército acampado (1º Episódio, 303-542).

O coro canta as consequências funestas do amor, as obrigações de homens e mulheres, e relembra o encontro entre Páris e Helena e suas consequências (1º Estásimo, 543-589).

Clitemnestra, Ifigênia e Orestes chegam; Agamêmenon os recebe e procura enganar a esposa e a filha. A pedido de Clitemnestra, descreve a genealogia e os méritos de Aquiles e por fim pede, sem sucesso, que a esposa retorne a Argos (2º Episódio, 590-750). O coro descreve o futuro cerco de Tróia e sua destruição, e destaca a culpa de Helena nesses eventos (2º Estásimo, 751-800).

Aquiles e Clitemnestra se encontram e descobrem que não são futuro genro e futura sogra; o velho servidor aparece e revela o que na realidade está acontecendo. Clitemnestra implora a ajuda de Aquiles que, furioso com o uso indevido de seu nome, promete socorrê-la (3º Episódio, 801-1035). O coro relembra as núpcias de Peleu e Tétis e lamenta a morte próxima de Ifigênia (3º Estásimo, 1036-1097).

Clitemnestra e Ifigênia confrontam Agamêmnon e suas mentiras; Ifigênia tenta demover o pai, sem sucesso, e lamenta-se. Aquiles volta e revela que o exército está incontrolável e até seus mirmidões voltaram-se contra ele. Prepara-se para enfrentar todos quando Ifigênia intervém e oferece-se voluntariamente para o sacrifício (4º Episódio, 1090-1508). O coro celebra o oferecimento de Ifigênia e faz uma prece aos deuses pela vitória dos gregos (4º Estásimo, 1509-1531).

Um mensageiro relata a Clitemnestra os preparativos para o sacrifício e a misteriosa substituição de Ifigênia por uma corça quando ia ser degolada. Agamêmnon confirma o ocorrido e despede-se, pois os ventos estão soprando e o exército vai partir (Êxodo, 1532-1629).

Manuscritos, edições e traduções

As fontes mais importantes da Ifigênia em Áulis são os manuscritos Laurentianus xxxii 2 (sæc. XIV), da Biblioteca Laurenciana de Florença, e o Palatinus Vaticanus gr. 287 (sæc. XIV), da Biblioteca do Vaticano.

A editio princeps é a Aldina, de 1503. Principais edições modernas: Dindorf (1869), Weil (1879), Headlam (1889), Nauck (1871), England (1891) e Murray (1909); as mais recentes e mais importantes, no entanto, são as de Jouan (1983), Gunther (1988), Stockert (1992), Diggle (1994) e Kovacs (2003), atualizadas e minuciosas. Aqui, foi utilizada a edição de Jouan (o.c.).

Notações musicais referentes a uma pequena parte de um dos cantos corais foram recuperadas a partir do Papiro 510 da Biblioteca de Leyde, Holanda (c. -250). Seu autor pode ter sido o próprio Eurípides, — ou um compositor mais recente, que criou a música para uma das reapresentações da tragédia.

As primeiras traduções para o português foram a de Cândido Lusitano (1719/1773), ainda inédita, e a de Manuel de Figueiredo (1805); em 1974 foi publicada postumamente a excelente tradução de Paes de Almeida, revista em 1998 por Maria de Fátima Silva, da Universidade de Coimbra. Em 2005, completei uma nova tradução do texto e dos fragmentos para minha dissertação de mestrado (Ribeiro Jr., 2006), em publicação.


Notas

"Período Bizantino" é o longo período em que grande parte do Império Romano ficou sediado em Constantinopla, entre 330 e 1453 d.C. Também chamado de "Império Romano do Oriente", foi notável pela cultura greco-romana orientalizada. Os eruditos bizantinos são os responsáveis pela preservação de grande parte das obras gregas que chegaram até nós. Mais informações: Byzantine Empire.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Escola dos Annales


O historiador francês Marc Bloch, especialista em História Medieval, foi um dos fundadores da Escola dos Annales

Por Me. Cláudio Fernandes

Quando há um grupo de historiadores ou, mesmo, duas ou três gerações de historiadores que trabalham em torno de uma instituição específica, tal como uma universidade ou uma revista universitária especializada, escrevendo sobre temas afins e com um tipo de abordagem que esteja em sintonia, dá-se a esse grupo o nome de “escola histórica” ou “escola de historiografia”. No século XX, uma das mais notáveis escolas históricas foi a chamada Escola dos Annales, cuja atividade começou em 1929.

Este nome, “Escola dos Annales”, ficou conhecido porque tal grupo se organizou em torno do periódico francês Annales d'histoire économique et sociale (Anais de história econômica e social), no qual eram publicados seus principais trabalhos. Os dois principais nomes da fundação desse periódico eram Lucien Febvre e Marc Bloch, e seus principais objetivos consistiam no combate ao positivismo histórico e no desenvolvimento de um tipo de História que levasse em consideração o acréscimo de novas fontes à pesquisa histórica e realizasse um novo tipo de abordagem.

Por positivismo histórico, que era o alvo dos “annales”, entende-se um tipo de visão do trabalho do historiador típico de uma corrente histórica também francesa, dominante no século XIX. Essa corrente entendia que ao historiador bastava expor as fontes escritas, sem necessidade de interrogar os documentos, de interpretá-los nas entrelinhas e de confrontá-los com outras fontes, como vestígios materiais arqueológicos etc. O modo de abordagem dos “annales”, ao contrário, passou a valorizar essas outras fontes, além dos documentos escritos. Se hoje há a história do vestuário, do chiclete, das capas discos de música, entre outros, isso se deve a esse esforço pela ampliação de análise que a Escola dos Annales desencadeou.

Outros nomes importantes seguiram-se ao de Bloch e de Febvre, como o de Fernand Braudel, que se notabilizou, na década de 1940, por desenvolver um tipo de História que se mesclava com a Geografia e levava em conta grandes estruturas temporais, que ele denominou de “longa duração”. O maior exemplo disso é sua obra “O Mediterrâneo”, publicada em 1947.

Outro exemplo é o do especialista em história medieval Jacques Le Goff, que, junto a outros historiadores herdeiros dos “annales”, como Pierre Nora, organizou o que ficou conhecido como “História Nova”, um tipo de História que alargava ainda mais as possibilidades de pesquisas abertas pela Escola dos Annales.

O que é história das mentalidades?


Lucien Febvre

Por Me. Cláudio Fernandes

A história é uma disciplina que atravessou, desde o seu processo de institucionalização como “ciência”, no século XIX, inúmeras reformulações, revisões e batalhas teóricas. Na primeira metade do século XX, entre os historiadores franceses, uma “revolução” metodológica passou a acontecer. Revolução essa que deitaria raízes no futuro das reflexões sobre a história. A Escola dos Annales foi o “carro-chefe” dessa revolução. Foi de um dos fundadores da Escola dos Annales, Lucien Febvre (1878-1956), que nasceu um dos mais importantes ramos da historiografia do século XX, a história das mentalidades.

Segundo Febvre, havia camadas do desenvolvimento histórico da humanidade que não sofriam transformações rápidas e nítidas como outras. Assim, por exemplo, as estruturas políticas e sociais seriam as primeiras nas quais se poderia verificar mudanças substantivas, enquanto certos comportamentos e formas de pensamento demorariam significativamente mais para sofrer alterações.

Dessa forma, pensamentos, ideias, ideologias, segmentos morais, atmosferas de compreensão científica, entre outros, estariam dentro da esfera das mentalidades, isto é, formas duradouras de pensamento que caracterizam longos espaços de tempo. Parte dos fundamentos da psicologia moderna, desenvolvida na virada do século XIX para o século XX, ajudou Febvre a assentar suas teses sobre a história das mentalidades. Como aponta o pesquisador Ronald Raminelli:

“Sob influência da psicologia de Charles Blondel e Henri Wallon, Febvre lança o que se pode chamar de "manifesto da história das mentalidades", com a publicação, em 1938, do artigo intitulado "La Phsychologie et L'Histoire" [''A Psicologia da história''] no tomo VIII da Encyclopédic Française; depois em 1941, em Annales d'Histoire Social, um outro artigo: "La Sensibilité dans l'Histoire" [''A sensibilidade na História''], ambos encontrados nos Combates pela História. Os dois textos dão algumas pistas do que seria o método de se fazer história das mentalidades.” (Raminelli, Ronald. Lucien Febvre no caminho das mentalidades. R. História, São Paulo, n. 122, jan/jul. 1990. p. 97-115.)

A esses trabalhos iniciais, Febvre acrescentaria grandes ensaios de investigação histórica que exploraram o terreno das mentalidades. Os exemplos mais notáveis são “Martinho Lutero, um destino”, sobre o reformador religioso alemão; “O início do livro: o impacto da Imprensa (1450-1800)”, trabalho pioneiro também na área da história da leitura; e “O problema da descrença no século XVI: a religião de Rabelais”, sobre a atmosfera religiosa na época do autor de Gargantua e Pantagruel.

Os herdeiros intelectuais de Febvre continuaram a desenvolver pesquisas no âmbito da história das ideias. Nomes como Michel Vovelle, Philippe Ariès, Fernand Braudel e, depois, Jacques Le Goff, Emmuel Le Roy Larurie, Roger Chartier, etc., integraram o time, mas também fundaram novas áreas de investigação, como a história cultural e a “nova história”.