Ao começar sua obra, “A condição humana”,
Hannah Arendt alerta: condição humana não é a mesma coisa que natureza humana.
A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe a si mesmo
para sobreviver. São condições que tendem a suprir a existência do homem. As
condições variam de acordo com o lugar e o momento histórico do qual o homem é
parte. Nesse sentido todos os homens são condicionados, até mesmo aqueles que
condicionam o comportamento de outros tornam-se condicionados pelo próprio
movimento de condicionar. Sendo assim, somos condicionados por duas maneiras:
Pelos nossos próprios atos,
aquilo que pensamos, nossos sentimentos, em suma os aspectos internos do
condicionamento.
Pelo contexto histórico que
vivemos, a cultura, os amigos, a família; são os elementos externos do
condicionamento.
Hannah Arendt organiza, sistematiza,
a condição humana em três aspectos:
Labor
Trabalho
Ação
O “labor” é processo
biológico necessário para a sobrevivência do indivíduo e da espécie humana. O
“trabalho” é atividade de transformar coisas naturais em coisas artificias, por
exemplo, retiramos madeira da árvore para construir casas, camas, armários,
objetos em geral. É pertinente dizer,- ainda que sedo-, para a autora, o
trabalho não é intrínseco, constitutivo, da espécie humana, em outras palavras,
o trabalho não é a essência do homem. O trabalho é uma atividade que o homem
impôs à sua própria espécie, ou seja, é
o resultado de um processo cultural. O trabalho não é ontológico como
imaginado por Marx. Por último a “ação”. A ação é a necessidade do homem em
viver entre seus semelhantes, sua
natureza é eminentemente social. O homem quando nasce precisa de cuidados,
precisa aprender e apreender, para sobreviver. Qualquer criança recém nascida
abandonada no mato morrerá em questão de horas. Por isso dizemos que assim como
outros animais o homem é um animal doméstico, porque precisa aprender e
apreender para sobreviver. A mesma coisa não acontece com aqueles animais que
ao nascer já conseguem sobreviver por conta própria, sem ajuda. A qualidade da
ação supõe seu caráter social ou como escreve Hannah, sua pluralidade.
Tanto ação, labor e trabalho
estão relacionados com o conceito de “Vita Activa”. Para os antigos, a “Vita
Activa” é ocupação, inquietude, desassossego. O homem, no sentido dado pelos
gregos antigos, só é capaz de tornar-se homem quando se distancia da “vida
activa” e se aproxima da vida reflexiva, contemplativa. É justamente nessa
visão de mundo grega que os escravos não são considerados homens. O escravo ao
ocupar a maior parte de seu tempo em tarefas que visam somente à sobrevivência
de si e de outros, é destituído do conceito grego de homem, mas por outro lado
ele não deixa de ser humano. Portanto, dentro dessa lógica só é homem aquele
que tem tempo para pensar, refletir, contemplar. Nietzsche afirma em seu
“Humano, desmasiado humano”que, aquele que não reserva, pelo menos, ¾ do dia
para si é um escravo. A base disso encontramos em Sócrates: se é apenas para comer, dormir,
fazer sexo, que o homem existe, então, ele não é homem, é um animal. Pois assim
era visto o escravo: um animal. Um animal necessário para à formação de
“homens”. É muito importante salientar que a escravidão da Grécia antiga é bem
diferente da escravidão dos tempos modernos. Pois, na era moderna a escravidão
é um meio de baratear a mão-de-obra, e assim, conseguir maior lucro. Na
antiguidade a escravidão é um meio de permitir que alguns, por exemplos, os filósofos, tivessem o controle do corpo,
das necessidades biológicas; a temperança. Para os gregos, a escravidão, do ponto
de vista de quem se beneficia dela, - os próprios filósofos da época - salva o
homem de sua própria animalidade, e não lhe prende às tarefas pragmáticas. A
dignidade humana só é conquistada através da vida contemplativa, reflexiva: uma
vida sem compromisso com fins pragmáticos.
A religião cristã toma
emprestado a concepção de mundo grega, e vulgariza a dignidade humana. Agora
qualquer indivíduo pode, e deve viver, uma vida contemplativa. Enquanto na
Grécia antiga a vida contemplativa era destinada aos filósofos, no cristianismo
ela é destinada a todos. Essa é única forma que o cristianismo encontra para
convencer os homens a rezar.
Hannah Arendt identifica
três forma dicotômicas de trabalho:
improdutivo e produtivo
qualificado e não qualificado
intelectual e manual.
Como a intenção da autora é
mostrar a fraqueza do pensamento de Karl Marx, ela diz que o conceito de
trabalho usado por Marx, é um conceito
comum de sua época: trabalho é trabalho produtivo. Segundo a autora esse
conceito de trabalho produtivo, isto é, trabalho que produz objetos, matéria;
eclodiu das mãos dos fisiocratas. A escolha de Marx pelo uso do termo trabalho
como trabalho que produz, que gera, que cria, estava em moda na época.
Com o avanço do processo de
industrialização haveria de designar algum nome para todo aquele trabalho que
não estava ligado ao trabalho industrial, daí nasceu o trabalho intelectual em
contraposição ao trabalho manual. Tanto um como outro, faz uso das mãos, quando
colocados em prática. O intelectual precisa das mãos para escrever seu
pensamento. Nesse sentido o trabalho intelectual também é trabalho manual. É
dessa forma que o trabalho intelectual é integrado dentro do conceito
“trabalho” da revolução industrial. A ideologia que atravessa os tempos
modernos é a seguinte: Qualquer coisa que se faça tem que ser necessariamente
produtivo, tudo deve ser transformado em mercadoria, ou seja, o valor de troca
tem a última palavra.
Qual é o caráter objetivo
implícito do conceito “força de trabalho” em Marx? Compreende que todos tem a
mesma força de trabalho, até mesmo aqueles que são fisicamente mais fracos.
Assim, Marx consegue formar o conceito de “valor de troca”, tempo de trabalho
necessário dispendido para produzir um objeto. Necessário para quem? Para
todos. Se o tempo médio da produção de um sapato é 6 horas, todos os
trabalhadores devem se adequar. Marx não explica como ele consegue calcular o
tempo médio abstrato, o tempo social? Portanto, ele, pressupõe que todos devem
ter a mesma força de trabalho, e desconsidera as diferenças subjetivas. É obvio
que uma criança não tem a mesma força de trabalho de um adulto, nem o
deficiente físico terá a mesma força, sem falar nas diferenças mais minuciosas.
Em suma, Marx pensava que todos devem ter a capacidade de produzir um mesmo
objeto num tanto “x” de horas. E é isso que será exigido pelos proprietários
dos meios de produção.
A força de trabalho é aquilo
que o homem possui por natureza, só cessa com a morte. Diferente do produto, a
força de trabalho não acaba quando o produto termina de ser produzido.
Portanto, a força de trabalho é aquilo que Hannah Arendt entende por “labor”.
“O labor não deixa atrás de si vestígio permanente”. ( 101, Arendt).
Arendt dá alguns exemplos
que nos pode ajudar entender o conceito de labor. Qual é a diferença entre um
pão e uma mesa? A mesa pode durar anos e o pão dura, como muito, dois dias. O
trabalho é força gasta para produzir a mesa. O labor é a força dispendida para
produzir o pão. Mesa: objeto material produzido para o uso cotidiano e ocupa
lugar no espaço. Pão: elemento material produzido para à sobrevivência de seres
vivos e não ocupa lugar no espaço, visto que durante a digestão o pão é
transformado em energia do corpo.
“O que os bens de consumo
são para a vida humana, os objetos de uso são para o mundo do homem”.(Arendt) O
bem de consumo é o pão e o objeto de uso é a mesa. O primeiro permite a vida; o
segundo é necessário aos relacionamentos humanos. Em suma, o homem se torna
dependente daquilo que que produz. E para a autora, torna-se dependente é
torna-se condicionado. Daí encontramos a justificativa do nome do livro: “A
condição humana”. Quais são as condições que o homem se impõe e se submete para
permanecer em sociedade, para viver em coletividade? Se fossemos analisar essa
questão mais pormenorizadamente teríamos necessariamente de falar sobre
auto-repressão do prazer, aquilo que
Freud chama de controle do superego sobre o id. Mas não podemos esquecer
que o nosso fim neste trabalho é perscrutar alguns aspectos e vertentes que o
trabalho tem na obra da escritora alemã.
Sendo assim, como entender
uma realidade que tem como pedra de toque o que chamamos trabalho? Para que o mundo dê curso à vida é
preciso transformar o abstrato em matéria, o impalpável no papável. Isso é uma
necessidade humana. Sociedades ocidentais e não-ocidentais( tribais) realizam
esse processo de maneiras diferentes. Na primeira, existe o valor de troca, na
segunda, não há valor de troca. A palavra trabalho é um termo, conceito,
ocidental que é constitutivo do capitalismo, das sociedades ocidentalizadas. E
este conceito não pode ser aplicado nas sociedades não ocidentalizadas, onde o
capitalismo não existe. Portanto, não faz sentido dizer que os índios
trabalham. Eles não trabalham, apenas realizam atividades.
Estamos num ponto delicado
do nosso trabalho. Um ponto que é ignorado por grande parte de estudiosos das
ciências. A afirmação: os índios não trabalham, não quer dizer que eles são
preguiçosos, quer dizer que eles não produzem valor de troca, portanto, não
realizam trabalho. Quando Marx pensa que o trabalho pode ser constitutivo do
homem, ele não está usando como pressuposto o conceito valor de troca. E, é
importante entender isso, porque esse foi o lugar onde ele foi mais mal
interpretado. Peço que esqueçam do conceito valor de troca por um momento.
Vamos imaginar aquela velha estória do homem que se encontra isolado, sozinho
numa ilha. Ele quer encontrar alguma forma para sair da ilha. E para isso ele
deverá construir um barco, irá
trabalhar. Antes de construir o barco o homem tem a idéia do que seja um barco,
isto é, ele já viu um barco pelo contato direto. Ao ver um barco pela primeira
vez, ele forma o conceito de barco. Então, imagina um barco, cria a imagem na
mente, para depois construí-lo. A construção do barco dependente
necessariamente do conceito barco. Esse
exercício de imaginar e depois construir é próprio do ser humano, e, é nesse
sentido que Marx diz que o homem é o único animal que trabalha. O homem imagina
e depois faz. Se acrescentamos o valor de troca, temos o trabalho capitalista.
O trabalhador da fábrica sabe de antemão qual objeto irá produzir, sabe para
que será usado. Todo objeto antes de ser construído tem sua finalidade, sua
utilidade.
Nesse aspecto entre o
meio(recurso usado para obter um fim) e o fim, temos a distinção entre objeto e
instrumento. O instrumento é usado para produzir o objeto, por exemplo, o
alicate é usado na produção de automóveis. Uma vez acabada a produção do
automóvel, este serve como meio de transporte. A princípio temos o automóvel
como fim, e num segundo momento temos o automóvel como meio. Ele é um fim em
relação ao alicate, e depois, é um meio em relação ao homem. Se em relação ao
alicate temos um objeto, em relação ao homem temos um instrumento. É nesse
sentido que Arendt fala que existe um processo circular entre meio e fim,
instrumento e objeto; em que todo fim se torna meio e todo meio se torna fim.
Assim nos explica Hannah Arendt: “Num mundo estritamente utilitário, todos os
fins tendem a ser de curta duração e a transformar-se em meios para outros
fins.”(Arendt, 167).