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domingo, 20 de outubro de 2013

Marco Polo não descobriu a China.


Marco Polo sendo recebido na corte do neto de Gêngis Khan O rei da França decidiu nomear uma nova delegação, dessa vez confiada a Guilherme de Rubruck, para difundir os ensinamentos do Evangelho na Ásia e relatar tudo aquilo que pudesse observar. O religioso deixou Constantinopla em 1253 e levou 90 dias para percorrer os 3 mil km que o levariam a Karakorum, no norte do deserto de Gobi, onde residia o khan Mongke, quarto imperador mongol. Imagem: Biblioteca Nacional da França / Paris

Marco Polo sendo recebido na corte do neto de Gêngis Khan Apesar da fama acumulada por Marco Polo, ele não foi o primeiro europeu a ser recebido na corte do imperador mongol, que dominava a maior parte da Ásia no século XIII. O pioneiro foi um monge franciscano natural de Flandres, chamado Guilherme de Rubruck. O religioso foi também o primeiro a descrever detalhadamente sua viagem ao maior império do Oriente.

Essa história começou na primeira metade do século XIII, numa época em que os mongóis ainda faziam a Europa tremer. O filho de Gêngis Khan havia tomado Moscou em 1238, se apoderado das cidades de Kiev e Zagreb, na atual Ucrânia, invadido a Polônia e ameaçado até mesmo Viena. Essa série de vitórias só foi interrompida pela morte do soberano, já que as disputas por sua sucessão enfraqueceram a dinastia e forçaram os mongóis a recuar até a Ásia central.

Afastado o perigo, o Ocidente passou a enxergar as populações do Leste como aliados em potencial nas cruzadas contra o mundo islâmico, já que alguns asiáticos seguiam o credo nestoriano, variante do cristianismo surgida no século V e considerada herética pela Igreja de Roma. A primeira tentativa de aproximação ocorreu em 1244, quando o papa Inocêncio IV confiou ao monge franciscano Giovanni da Pian del Carpine e ao frei dominicano Ascelino de Cremona a missão de levar até o Grande Khan uma mensagem de desaprovação das destruições que ele provocara, convidando-o a aderir ao “bom caminho”, ou seja, ao cristianismo. O soberano oriental, irritado, respondeu dizendo estar pronto para reconhecer o papa, mas como seu vassalo.

Dois anos depois, quando Luís IX estava na ilha de Chipre liderando a Sétima Cruzada, um enviado mongol lhe propôs uma ação militar conjunta: enquanto os cristãos atacassem o sultão do Cairo, o império do Leste investiria contra o califado de Bagdá. Luís aprovou a ideia, mas o Grande Khan faleceu antes que a delegação francesa chegasse à sua corte para firmar o acordo, fazendo tudo voltar à estaca zero.

No dia 3 de janeiro de 1254, Guilherme de Rubruck finalmente chegou à corte do neto de Gêngis Khan, que pela primeira vez acompanhou a entrada de uma delegação ocidental na cidade. Depois da calorosa recepção, o franciscano participou de uma discussão entre muçulmanos, budistas e cristãos organizada pelo líder oriental, na qual percebeu que sua missão estava fadada ao fracasso: os mongóis não seriam convertidos.

O processo de Joana D’Arc

Mesmo presa, a Donzela foi uma ameaça para seus adversários. Eles arquitetaram um julgamento falacioso para transformar a “enviada de Deus” em discípula de Satã.


 "Joana d’Arc, uma das pessoas de índole mais simples que a história produziu, está em processo eternamente”, escreve o acadêmico Jean Guitton. O inquérito contra a Donzela – para empregarmos um termo jurídico – começou com a sua estada, que se prolongaria por várias semanas, em Poitiers, na França, em março de 1429, no curso das quais os doutos da Igreja e também os juristas do Estado vigiavam permanentemente seu comportamento, inquirindo-a com perguntas insidiosas tanto para tentar atingir sua enorme credibilidade quanto para delinear sua personalidade.

O primeiro veredicto a que chegaram é que não havia nada de inquietante, nem de suspeito a respeito daquela pastora pouco culta que, dizendo-se guiada por vozes, se apresentara diante do delfim afirmando que viera para conduzir os franceses à vitória. Sua boa-fé parecia verdadeira; seu projeto era santo. Talvez a Providência, enfim, tivesse decidido intervir a favor de Carlos VII da França, um rei considerado muito cristão, e de seus súditos. Certamente, o instrumento dessa intervenção poderia surpreender, mas era teologicamente admissível. Era fato – assim mostrava a Bíblia – que o céu se interessava pelo destino dos povos e das nações. Logo, não apoiar a iniciativa da “enviada de Deus” que desejava provar a origem sobrenatural de sua missão por meio de um “sinal” perante a cidade de Orléans, sitiada havia seis meses pelos ingleses, seria dar provas de ingratidão. Parecia absolutamente inevitável, pode-se dizer necessário, sobretudo num momento de angústia, confiar nela.

E o milagre acontece! As palavras da pequena Joana são confirmadas. O cerco de Orléans é desfeito (8 de maio de 1429) e, logo a seguir, três outras cidades do vale do Loire são reconquistadas. Quando os ingleses são derrotados em Patay (18 de junho), a reconquista do reino se acelera – e Carlos VII, conduzido pela Donzela de Orléans (a partir dessa data, ela será conhecida por esse nome), é sagrado rei, na catedral de Reims, no dia 17 de julho, em clima de entusiasmo geral. Mesmo depois de tudo isso, as interrogações continuam: que força se esconde por trás dessas vitórias espetaculares?

A propaganda da Coroa francesa reforçou a dimensão religiosa da personalidade de Joana. A Donzela foi apresentada como uma profetisa que já teria sido anunciada por outros profetas. A resposta veio no mesmo campo da religiosidade, o que começou a traçar o destino da pastora guerreira. Um tratado em latim, redigido por um acadêmico parisiense, sem dúvida especialista em direito canônico, que foi escrito nas últimas semanas de 1429, nos dá o testemunho disso. O objetivo foi responder à obra de Jean Gerson Sobre uma donzela (De quadam puella, 14 de maio de 1429), onde são enumeradas as razões para crer nos propósitos santos de Joana.

No tratado anônimo, as críticas endereçadas a Joana são as seguintes: vestia-se como homem, tinha atitudes belicistas, falsas profecias, idolatria a seu favor e recurso a sortilégios. A cereja do bolo foi apontar como falta de respeito às festas religiosas a tentativa frustrada de Joana de entrar em Paris, dominada por borguinhões e ingleses, em 8 de setembro de 1429, festa da Natividade da Virgem. Tantos motivos levaram esse homem da Igreja a pedir a intervenção da universidade e do bispo de Paris – e do Tribunal da Inquisição também, habilitado a se pronunciar em todos os casos de heresia.

EM BUSCA DE CONFISSÕES Não surpreende que a universidade, cuja autoridade em matéria de teologia permanecia incontestada, e a Inquisição, agindo com ela, tenham pedido o julgamento de Joana, logo após sua prisão pelos borguinhões em Compiègne, em 23 de maio de 1430. É inútil conjecturar que esses dois órgãos tenham sido forçados pelo duque de Bedford, regente inglês na França, a tomar essa posição. A solicitação de investigação foi iniciativa dessas instituições.

Após meses de subterfúgios e negociações, a Donzela foi entregue, enfim, ao rei da França e da Inglaterra. Ela passou a ser sua prisioneira de guerra. Não seria possível julgá-la, condená-la à morte como rebelde, passível de crime de lesa-majestade?

Claro que sim. Mas o impacto de um processo semelhante seria, sem dúvida, negativo aos olhos de uma opinião pública sempre hesitante entre os borguinhões e Carlos VII. Decidiu-se então submeter o pedido das autoridades eclesiásticas para que fosse feito um processo “em matéria de fé”. Por sorte, o lugar preciso onde Joana foi presa se situava na diocese de Beauvais, cujo bispo, Pierre Cauchon, era também um dos pilares da dupla monarquia. Esse prelado, dublê de político, seria encarregado desse processo da Igreja, que ocorreria, por mais precaução, no castelo real de Rouen, que era ocupado muitas vezes pelo jovem rei inglês Henrique VI.

Pierre Cauchon não era um especialista nesse tipo de processo. Ademais, ele sabia quanto o assunto era polêmico. O bispo tomaria muitas precauções para cumprir a missão que lhe fora designada (desqualificar a acusada, neutralizá-la e mesmo eliminá-la) e fazer do processo uma obra comum dos bispos, abades mitrados, teólogos e canonistas, guarnecidos de títulos e diplomas. Era necessário que a condenação fosse, de certa forma, inatacável no campo do direito, já que, por certo, as acusações de falta de isenção se levantariam.

Ao lado de Cauchon estavam um inquisidor (Jean Le Maître), um promotor eclesiástico (Jean d’Estivet, chamado o Beneditino) e três escrivães públicos. Certamente, Joana, sozinha, contra esse poderoso tribunal, estava longe de ter chances reais de absolvição nesse processo. A isso se somavam o rigoroso encarceramento, a falta de um advogado de defesa, testemunhas de acusação não identifi cadas, nenhuma investigação de moralidade, e, sobretudo, privação de comunhão, o que para ela representava um intenso sofrimento espiritual. Mas essa era a prática da Inquisição, que se baseava na presunção de culpabilidade. Estar sob veementes acusações de ser herege (como era o seu caso) já era ser considerado culpado por heresia. Uma vez o tribunal instalado no castelo do rei, o processo começou (21 de fevereiro de 1431).

A reviravolta aconteceu quando Cauchon e seus assessores compreenderam que Joana se recusaria resolutamente a submeter as suas vozes e as suas revelações à apreciação da hierarquia da Igreja, sobretudo às pessoas hostis e parciais que estavam diante dela. À sua maneira, ela os declarava incompetentes. Parecia aceitar que seu caso fosse levado ao papa, em Roma, ou até mesmo ao concílio geral que deveria se reunir, em breve, em Basileia. Reivindicada de maneira explícita, essa insubmissão a fez, consequentemente, ser expulsa da Igreja. Ela não passava de um membro podre do corpo místico de Cristo; para a salvação do povo cristão, era necessário arrancá-lo. A sua personalidade polêmica, obstinada, ajudou aqueles inquisidores a transformá-la em herege.

Essa era a situação em 24 de maio de 1431, dia em que, em praça pública, perto da abadia de Saint-Ouen, extenuada, ela resolveu, enfim, após o desenrolar de uma cena patética, negar as suas vozes e se submeter à Igreja. Em seguida a essa aparente abjuração, ela escapou in extremis da fogueira e foi reconduzida à sua prisão para fazer penitência com pão e água.

VIGIADA POR SOLDADOS INGLESES O caso, na esfera civil, poderia ter terminado por aí. Mas, talvez, decepcionada por ainda se encontrar presa (a possibilidade de uma prisão sob o comando da Igreja, menos severa, onde ela seria vigiada por mulheres em vez de por soldados ingleses que nutriam ódio por ela, a animara a abjurar), ela afirmou que seguia ouvindo vozes e, como sinal da sua mudança, tornou a vestir roupas de homem, misteriosamente deixadas à sua disposição pelos carcereiros ingleses.

Esse acontecimento gerou um segundo processo, mais sumário: cometendo seu erro mais uma vez, ela foi classificada como relapsa. A partir daí, foi entregue ao braço secular, isto é, ao poder real, que a condenou à fogueira na praça Vieux-Marché, no dia 30 de maio de 1431. O poderoso cardeal Henri Beaufort, bispo de Winchester, tio-avô do rei Henrique, assistiu ao seu fim. Nos bastidores, ele acompanhou de muito perto o desenrolar do processo. Certamente, a dupla monarquia jamais considerou cabível a declaração de inocência da prisioneira, seguida por eventual liberação. Ela causara muitos danos aos ingleses, e o seu potencial de liderança subsistia.

Podia-se, por outro lado, questionar a posição de Cauchon: ele era apenas um executor desprovido de autonomia ou, como homem da Igreja, acreditava ser possível que a culpada fosse condenada a uma simples pena de prisão, com a condição de que reconhecesse ter deliberadamente enganado o povo, por ter sido enganada pelo diabo?

De início, o prelado não suspeitou da importância que ela atribuiu às vozes, ou seja, ele ignorava a natureza, senão a sua existência, e não entendia, portanto, a tranquila determinação de defender seu rei e assumir a sua missão. Ela podia ter negado imediatamente. A resistência surpreendeu. Após a abjuração, Cauchon se perguntou se ela continuaria a se arrepender, se esse ato não fora causado simplesmente pelo medo da fogueira. Com o benefício da dúvida, pode-se conjecturar que Cauchon chegou a ficar satisfeito com a abjuração de 24 de maio.

UM PERIGO PARA A FÉ E O PODER A questão para a dupla monarquia não era apenas condená-la à morte. Era também necessário convencer a opinião pública, na França e fora da França, da legitimidade dessa condenação. Cartas foram redigidas, algumas em latim, outras em francês, especialmente para o rei do Sacro Império Romano-Germânico, Sigismundo de Luxemburgo, o duque da Borgonha, o papa e os cardeais. O que essas cartas diziam?

Aquela mulher, devido à grande popularidade, representava um perigo para a fé, os poderes e a sociedade; ela era cruel e presunçosa, consentindo que seus seguidores a idolatrassem, por orgulho; estimava-se acima das autoridades eclesiásticas, mesmo as mais altas, dirigindo-se diretamente a Deus, de quem se julgava enviada.

Em um momento, diziam as missivas, arrependeu-se de seus erros, e a Igreja, na sua misericórdia, perdoou-a. Infelizmente, essa abjuração era apenas um logro, do qual ela voltou atrás. Então, a Igreja pronunciou sua sentença definitiva. É verdade que, antes de morrer, na última reviravolta do processo, ela confessou que as vozes a enganaram e se entregou à Igreja, a única capaz de julgar a natureza dessas vozes.

Nada mostra que essa propaganda tenha atingido o seu objetivo. O que pensava Carlos VII, que permaneceu sem reação durante todo o processo? Talvez, a seus olhos, Joana não pudesse mais ser controlada e se tornasse mais nociva do que útil, no caso de uma eventual aproximação com a Borgonha; talvez, seus conselheiros eclesiásticos tenham-no persuadido de que os fracassos sucessivos que ela sofreu desde o assalto frustrado em Paris, que ela, aliás, tinha previsto, mostravam que Deus não estava mais a seu lado.

Conhece-se o desenrolar do processo graças à redação, em latim, feita algumas semanas ou meses após sua conclusão, dos atos (um original mais cinco cópias autênticas, das quais três chegaram até nós). A autoria dessa redação é de Thomas de Courcelles, um jovem universitário com um futuro promissor, ajudado pelo consciencioso Guillaume Manchon, um dos três escrivães. Com esse documento em vários exemplares (um caso único), a dupla monarquia entendia dispor de um bom dossiê, em caso de contestação da parte de Carlos VII junto ao papa ou ao concílio de Basileia.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Ivan, o primeiro czar.

Por seu comportamento bipolar, oscilando entre a fúria e a penitência, ganhou a alcunha O Terrível. Com inteligência e dinamismo, ele modernizou e expandiu a Rússia, transformando-a numa potência.


Em seus últimos dias, o temido senhor da Rússia oscilava entre razão e loucura, devassidão e piedade, e dava ordens entre suas orações. Ivan IV, o Terrível, e sua ama de leite, óleo sobre tela, Karl Gottlieb Wenig, 1886.

Filho de Vassili III, grão-duque de Moscou, e de sua segunda mulher, Helena Glinskaya, Ivan foi o penúltimo representante da dinastia Rurik. Com a morte de Vassili III em 4 de dezembro de 1533, o menino de 3 anos foi proclamado grão-príncipe de Moscou. Sua mãe foi regente da Rússia 1538, quando morreu, fato que reacendeu as disputas entre várias facções da nobreza pelo poder. Conflitos sanguinários entre vários clãs de boiardos (nobres russos) se estenderam até 1547, deixando marcas profundas no jovem Ivan, que sobrevivia como podia entre terror e horror.

Após a morte da regente Helena Glinskaya, em 1538, lutas sangrentas opuseram os boiardos na conquista pelo poder. Ivan, filho do grão-príncipe Vassili III, sobrevivia como podia entre terror e horror. Ele lembrou em uma carta: “Eu estava com 3 anos. Meu irmão Yuri tinha apenas 1 ano de idade. Ficamos órfãos, com a nossa mãe, a piedosa czarina Helena, viúva e infeliz ela também. Parecia que estávamos em meio às chamas. Foi então que vocês, os boiardos desleais, começaram a nos oprimir com seus inúmeros golpes. Quando a piedosa imperatriz Helena deixou o reino terrestre, ficamos, meu finado irmão Yuri e eu, completamente órfãos, sem ninguém para nos ajudar. Eu tinha então 8 anos. Nossos súditos viram os seus desejos se tornarem realidade: receberam um império sem chefe. Eles nos ignoraram, seus soberanos, e se precipitaram para conquistar riquezas e honrarias. Quanto a nós e a nosso finado irmão Yuri, fomos criados como estranhos ou mendigos. Quantas privações sofremos, tanto nas roupas como na alimentação! Não nos davam nenhuma liberdade, nunca fomos tratados como convém tratar as crianças. Vivemos perseguidos e oprimidos, e a perseguição crescia dia a dia, hora a hora”.

Ivan demonstrou uma maturidade excepcional e um perfeito domínio da língua. A beleza do seu estilo e seu talento literário fizeram dele um dos grandes escritores da sua época, e, sem dúvida nenhuma, o mais talentoso de todos os monarcas russos. Sua erudição religiosa era impressionante, sua memória, fenomenal. Escreveu uma grande quantidade de epístolas e textos litúrgicos, além de compor várias peças musicais.

Os anos vividos sob a tutela dos boiardos aguçaram seu ressentimento e sua crueldade: “Quando completamos 15 anos, começamos a governar nosso império por nós mesmos”. Pediu que fosse consagrado como czar de toda a Rússia no dia 16 de janeiro de 1547, na catedral de Moscou. O metropolita Macário entregou-lhe as insígnias do poder: a cruz, a pelerine e a coroa de Monômaco.

O título czar seria oficializado em 1561, por meio de um rescrito do patriarca de Constantinopla. No dia 3 de fevereiro de 1547, Ivan casou-se com Anastasia Romanovna. Graças à sua influência benéfica, ao Conselho de Eleitos presidido por Alexis Adashev, guiado pelo metropolita Macário, o príncipe Andrei Kubsky e o padre Silvestre, Ivan IV reinou com sabedoria e eficiência.


Após assassinar o filho e herdeiro, Ivan Ivanovich, o czar exibiu sinais cada vez mais claros de decadência física e mental. Ivan, o Terrível, e seu filho em 16 de novembro de 1581, óleo sobre tela, 1885, Ilya Efimovich Repin.

Nervoso, irascível, despótico e astuto, ele surpreendia por sua sagacidade, seu senso apurado de análise e de diplomacia, suas qualidades de estrategista, sua vontade de centralização do poder e suas opiniões políticas. Em 1548, dissolveu o Conselho de Eleitos e constituiu um Conselho Escolhido dirigido pelo pope (sacerdote ortodoxo) Silvestre e Alexis Adashev. “Nenhum príncipe da cristandade é mais temido e amado por seu povo. Dois pensamentos o consumiam: servir a Deus e esmagar os inimigos”, relatou um de seus contemporâneos.

Em 1550, o czar convocou os primeiros Estados Gerais (zemski sobor) de todas as províncias da Rússia. Foi a primeira assembleia na qual ele se dirigiu ao povo: “Eu era como surdo e mudo na minha lamentável infância porque eu não ouvia os lamentos dos pobres e as minhas palavras não suavizavam seus males. Mas posso prometer-lhes que saberei preservá-los da opressão e do saque. A partir deste dia, serei seu juiz e defensor”. Ele promulgou um código de vida doméstica, o Domostroi, elaborou um novo código de leis, instituiu auxílios para os pobres e os inaptos para o trabalho. Criou o corpo dos Streltsy (a guarda de elite dos czares), cujos membros eram recrutados entre os homens livres e de viam servir a vida toda. O concílio dos Cem Capítulos reorganizou a vida religiosa em 1551. A elaboração e a adoção do código administrativo foram realizadas em 1555-1556. O primeiro alfabeto eslavo foi publicado em 1574.

EXPANSÃO TERRITORIAL Porém, mais do que tudo, Ivan queria unificar o país e conquistar novos territórios. O canato (reino turco ou mongol dirigido por um khan) de Kazan intimidava as populações e controlava a rota do rio Volga usada pelos comerciantes. Com um exército de 150 mil homens e 150 canhões enormes, Ivan IV desmantelou o canato em 1552. Em memória dessa vitória, foi construída em Moscou a catedral da Intercessão da Virgem. A conquista do canato de Astracã, em 1556, fez do Volga um rio inteiramente russo.

O Bascortostão e a Chuváchia uniram-se à Rússia em 1557. Decidido a dar ao país uma saída para o mar Báltico, em 1558 Ivan iniciou a Guerra da Livônia, contra os poloneses e os suecos. A guerra contra a Suécia começou em 1567. A cidade de Novgorod foi conquistada em 1570. De acordo com Skrynnikov: “Foi um terror de grande amplitude, em especial para com os habitantes de Novgorod. Durante o seu reinado, Ivan IV teria mandado executar de 3 mil a 4 mil pessoas”. O inimigo não estava muito atrás. Em 1571, o khan da Crimeia, Devlet Giray, marchou sobre Moscou. Os tártaros atacaram a cidade, queimando e exterminando tudo o que viam pela frente. Pouco importava, reconstruía-se! A expansão do território era o grande negócio do temido czar.


No dia em que, segundo os astrólogos, seria o de sua morte, Ivan pediu para se tornar monge e faleceu logo em seguida. Czar Ivan IV, o Terrível, pede a Komily para ser admitido entre os monges, óleo sobre tela, Kludiy Vasilevich Lebedev, século XIX.

Depois de ter cruzado os montes Urais e combater os tártaros nas margens do rio Tobol, o cossaco Yermak conquistou a Sibéria em 1581, acrescentando aquela terra gelada à Coroa da Rússia. Um tratado de paz com a Polônia, em 1582, e outro com a Suécia selaram as diferenças. Louco de dor após a morte da czarina Anastasia em 1560, Ivan saciou sua sede de vingança na mais extrema violência. Prometeu cortar a cabeça dos oponentes. Incentivado pelos seus favoritos, Basmanov, Chybotovi, Saltykov e Viazemski, na sua desconfi ança doentia, seu abuso de poder, sua luxúria e sua crueldade, ele abandonou a capital no dia 3 de dezembro de 1564 e se retirou para Alexandrovskaia Sloboda, na província de Vladimir. Anunciou sua decisão de abdicar no dia 3 de janeiro de 1565. Dirigiu para o povo um apelo contra os boiardos.

O arcebispo Pimen de Novgorod foi buscá-lo. Com a mente atormentada pela paranoia, o czar voltou para o Kremlin como autocrata, no dia 2 de fevereiro de 1565. Decretou: “Todos os soberanos russos são autocratas e ninguém pode criticá-los. O monarca pode exercer sua vontade sobre os escravos que Deus lhe deu”. Seu poder era absoluto e ilimitado. Para se proteger dos boiardos, fundou o Oprichnina (guarda pessoal do czar), em 1565. Os oprichniki, membros dessa guarda, vestidos de negro, usavam uma cabeça de cachorro e uma vassoura penduradas em suas selas, símbolos da sua função: “Devorar e varrer todos os boiardos desleais”. Liderando 6 mil homens, Grigori Maliuta Skuratov espalhou o terror. “Foi então que começaram as decapitações”, disse a crônica. Os oprichniki pilharam, massacraram e exterminaram praticamente toda a população de Novgorod, mais de 15 mil pessoas, durante o pogrom de 1570. O Oprichnina seria dissolvido em 1572.


Depois de cruzar os Urais e combater os tártaros às margens do Tobol, o cossaco Yermak conquistou a Sibéria em 1581, acrescentando aquela terra gelada à coroa da Rússia. A conquista da Sibéria por Yermak, óleo sobre tela, Vassili Ivan Surikov, 1895.

Somente um homem se opôs ao czar, denunciando seus abusos: o metropolita Felipe. O concílio interveio. Filipe consentiu em não questionar o czar. Por um ano, o terror cessou. Mas em 1567, Ivan acusou os boiardos de traição. Cortou em pedacinhos homens, mulheres e crianças. Filipe não conseguia mais trazer Ivan de volta à razão. Negou-lhe a bênção durante um culto, censurou a violência e contestou sua ideia de monarquia. Expulsou da igreja os homens que haviam sequestrado as mais belas mulheres de Moscou para que fossem violentadas pelo czar e seus oficiais, em julho de 1568.

Louco de raiva, Ivan IV convocou um concílio a fim de julgar o metropolita. Filipe foi deposto e condenado à prisão perpétua por bruxaria. Por ordem do czar, Grigori Maliuta, executor do trabalho sujo, estrangulou-o em 1569. Tomado por novo capricho, Ivan renunciou ao trono em 1575 e abdicou em favor do príncipe tártaro Simeão, neto do khan Akhmat e filho de Bekbulat. Instalou-o no Kremlin, deu-lhe todo o poder e se retirou na província. O “czar” Simeão substituiu Ivan durante um ano.

Depois de cruzar os Urais e combater os tártaros às margens do Tobol, o cossaco Yermak conquistou a Sibéria em 1581, acrescentando aquela terra gelada à coroa da Rússia. A conquista da Sibéria por Yermak, óleo sobre tela, Vassili Ivan Surikov, 1895
Ivan casou-se novamente em 1561, com Maria Temrjukovna, filha do khan Temryuk, que faleceu no dia 1º de setembro de 1569. Como o czar não podia ficar sozinho, foi organizada uma festa de apresentação de noivas. Mais de 2 mil jovens competiram. Ivan escolheu Maria Vasilyevna Sobakina, filha de um comerciante de Novgorod. Ela se tornou sua esposa no dia 28 de outubro de 1571 e morreu durante as celebrações do casamento, em 13 de novembro.

O viúvo afundou na devassidão. Não contente com suas inúmeras conquistas femininas, ele se mostrava ao lado do seu favorito, Basmanov. No auge da sua loucura sanguinária, escolheu Ana Alexaievna Koltovskaia. Casou-se com ela em 1572 e, depois, trancou-a em um convento, sob o pretexto de que ela emagrecera e ele não gostava de magras.

Átila, o Huno: um animal político.

Talvez o maior paradoxo da imagem do líder “bárbaro” seja o de que, em verdade, ele era melhor diplomata do que general de guerra.


 Átila e suas hordas invadem a Itália e as artes, Eugène Delacroix, c.1843, óleo sobre tela, Palais Bourbon.

O rei sabe quem ele mantém ao seu redor. Culto, fala latim e grego. Ele prova ser um debatedor habilidoso e conduz seus homens com mão de ferro e luvas de pelica. Bem longe daquilo a que o termo “bárbaro” remete. Tendo escrito um século após a morte do rei dos hunos, o historiador Jordanes oferece uma imagem ambígua do monarca: “Átila amava a guerra, mas era capaz de controlar sua própria violência”. Sem negar seu gosto pela conquista e pelas pilhagens, ele lembra que Átila era também um animal político que se servia, muitas vezes, de meios sutis.

Governar consiste, em primeiro lugar, em saber se cercar. Para receber os melhores conselhos, Átila reuniu ao seu redor uma corte tão numerosa quanto original. Ela era composta por hunos nobres, como o seu braço-direito Onegésio ou um certo Berik, que possuía um vasto comando territorial, mas também por chefes dos povos germânicos, seus aliados, aos quais Átila atribuía extensas responsabilidades. Entre eles, o ostrogodo Teodomiro, pai daquele que viria a se tornar o rei Teodorico, o Grande, conquistador da Itália.

Átila deixava o comando de seus exércitos nas mãos dos bárbaros, mas incumbia os romanos das tarefas administrativas. Assim, dois de seus secretários sucessivos tinham o mesmo nome, Constâncio – o primeiro era gaulês, o segundo, italiano. Sob sua influência, a corte empregou um pequeno corpo de intérpretes. Quanto à chancelaria real, esta foi confiada a Orestes, um aristocrata da província romana da Panônia. Após a morte de Átila, Orestes retornou ao território romano, recebendo importantes funções militares até assumir o controle do Império, em 475.

MESTRE DAS ARMAS PSICOLÓGICAS Se Átila parecia ter talento para detectar personalidades notáveis, seu círculo heterogêneo não deixava de ser um produto do acaso. Seu bobo da corte, Zercon, era um mouro, anão e poliglota, que pertencera a um general romano até ser “tomado” pelos exércitos hunos. Os prisioneiros de guerra que demonstravam talentos especiais se beneficiavam de um tratamento diferenciado. O prisioneiro romano Rusticius escapou da escravidão por ser capaz de escrever cartas diplomáticas.


 Átila chegou a acampar diante das enormes muralhas de Constantinopla e  planejava outra campanha contra a capital bizantina quando a morte o surpreendeu, no início de 453.

Átila governava sua corte com um misto de doçura e violência. Aqueles que ele queria bajular ganhavam presentes, elogios, tinham lugares preferenciais à mesa e recebiam até mesmo a promessa de ricos casamentos. Eventualmente, alguns de seus auxiliares eram encarregados de partir em delegações a Constantinopla. Eles podiam estar certos de uma grande recepção e de voltarem carregados de presentes. Por outro lado, Átila era implacável com traidores. Assim, mandara crucificar seu primeiro-secretário, suspeito de desviar um lote de cálices preciosos. Incutir o terror era útil ao rei: enquanto Bizâncio tentava subornar sua corte na tentativa de assassiná-lo, o complô acaba sendo denunciado por seu conselheiro Edika tamanho o seu medo da retaliação, caso o plano desse errado.

No que concerne às legações estrangeiras, Átila mostrava-se um interlocutor hábil. Os embaixadores recebiam uma enxurrada de insultos ou de adulações; no decorrer da discussão, o rei os ameaçava da pior das mortes, antes de assegurá-los de que, a seus olhos, eles eram sagrados. Desconcertados, os diplomatas se viam em uma posição frágil para conduzir as negociações. Átila se aproveitava também de qualquer oportunidade para usar suas armas psicológicas. Seus visitantes retornavam cobertos de presentes suntuosos mas, ao longo do caminho de volta, eram obrigados a assistir ao suplício de homens culpados de traição.

Em matéria de política externa, era um oportunista. Suas relações com o Império Romano do Oriente tinham um único objetivo: conseguir o máximo de riqueza. Na maior parte das vezes, ele se contentava em recolher tributos: para isso, multiplicava as missões diplomáticas, ameaçava seus interlocutores, exigia que as disposições dos tratados anteriores fossem respeitadas... E se porventura o pagamento dos impostos fosse interrompido, ele não hesitava em recorrer à guerra. Violenta e breve, esta não terminava com uma conquista, mas com um acordo financeiro mais favorável do que o anterior.

Resta saber se a diplomacia de Átila era realmente eficaz. Ele parece ter subestimado os recursos que o império podia recolher. Na verdade, os tributos pagos não arruinavam Constantinopla, tampouco prejudicavam seu potencial militar. As repetidas exigências dos hunos e suas múltiplas depredações acabaram exasperando, porém, a opinião pública bizantina. Átila terminou contribuindo assim para que adeptos de métodos mais duros chegassem ao poder. Em 450, Marciano subiu ao trono, fazendo da eliminação dos hunos a primeira meta de seu reinado.


O saque de Aquileia (imagem) ocorreu em 452 e foi realizado pelos hunos sob a liderança de Átila.

Átila parecia mais confortável com os romanos ocidentais. Sem escrúpulos, ele acolhia em sua cor te personalidades contrárias às autoridades vigentes. Como Eudoxo, um líder dos camponeses gauleses que se rebelou contra a carga tributária e passou para o lado dos hunos em 448. O rei criou laços também com a princesa romana Honória, irmã do imperador Valentiniano III. Ela se ofereceu ao rei huno em casamento. Seu “esposo” reivindicou então direitos sobre o Império do Ocidente.

Os gauleses eram bárbaros?

Esse povo que não tomava banho, não conhecia as letras e até praticava sacrifícios humanos precisou ser conquistado por Roma para conhecer a civilização, certo? Errado!


Vercingetorix joga suas armas aos pés de César, óleo sobre tela, Lionel Noël Royer, 1899. Imagem: MUSEU CROZATIER, LE PUY-EN-VELAY.

O senso comum prega que os gauleses eram um bando de guerreiros frustrados, saqueadores e brigões até que Júlio César os transformou em um povo civilizado sob a égide de Roma. Embora estivessem divididos em comunidades que alimentavam disputas constantes, os gauleses obedeciam a instituições e costumes semelhantes. Recentes descobertas arqueológicas mostram uma civilização de características próprias.

A sociedade era formada por tribos, unidade basilar que reunia várias famílias. Elas eram lideradas por um rei, que se mantinha cercado de uma aristocracia guerreira no comando de uma plebe composta de artesãos, camponeses e escravos. Muito cedo trocas comerciais se estabeleceram através do Mediterrâneo, notadamente com os gregos.

Os gauleses praticavam a salga dos alimentos para conservá-los, em particular da carne de porco. Eles desenvolveram a agricultura usando uma espécie de ancestral da ceifadeira, uma grande caixa com rodas dentadas puxada por um boi, enquanto os romanos ainda se serviam de foicinhos. Eles inventaram o tonel, recipiente mais cômodo que a ânfora para o transporte e a conservação do vinho. O artesanato era, contudo, o domínio no qual sobressaíam. Embora suas peças de cerâmica sejam famosas, foi na ourivesaria e na produção de instrumentos de ferro que eles se tornaram mestres, como provam as fi velas e outros broches cuja produção demonstra uma real preocupação estética. Isso também é prova de bom conhecimento dos minerais e domínio das difíceis técnicas exigidas na sua extração.

Além disso, os gauleses deram grande importância à aparência e ao asseio. Adotaram as bragas, tipo de ancestrais da calça, e inventaram o sabão à base de cinzas e de sebo – embora fosse usado principalmente para lavar as longas cabeleiras típicas dos gauleses. Os druidas, que exerceram um papel primordial na sociedade gaulesa, praticavam a medicina, e a descoberta de escalpelos e lancetas em suas tumbas levam a crer que tinham noções de cirurgia. Eles se interessavam pelo cálculo, pela geometria e pela astrologia no intuito de determinar os locais de cultos e elaborar calendários.