A imagem épica de milhares
de escravos erguendo magníficas pirâmides esconde uma realidade mais complexa.
Os níveis de dependência e servidão na sociedade egípcia eram variados e não
estão de todo decifrados, mas a escravidão, no sentido greco-latino, não
existiu.
Níveis
de dependência poderiam ser identificados como um tipo de escravidão, mas não
havia a propriedade de um indivíduo sobre o outro. Israel no Egito, óleo sobre
tela, Edward Poynter, 1867.
Diante dos grandes
monumentos, como as pirâmides, só nos resta imaginar as massas de indivíduos
curvados sob fardos muito pesados e sob as ordens de contramestres sádicos. E
se trabalhar para o faraó constituísse de fato uma forma de recompensa?
É um dos temas que despertam
mais paixão nos egiptólogos, mas também o fundamentalismo – a palavra não é
forte demais – tanto daqueles que negam ferozmente o fato quanto daqueles que
afirmam o contrário com veemência, como se a vida de uns e de outros dependesse
da resposta. Como se também fosse possível resolver de forma simples um
problema envolvendo noções tão complexas quanto as que dizem respeito à
liberdade humana.
O Egito não conheceu a
escravidão no sentido greco-romano, designando um indivíduo privado de sua
liberdade, vivendo sob a autoridade absoluta de um mestre, seja devido ao
nascimento – sendo ele mesmo filho de escravo –, seja após ter sido capturado
(no decorrer de uma guerra), vendido ou condenado. Considerado como um bem
material, ele se torna – para sempre – a propriedade explorável e negociável de
outra pessoa. Ao longo do Vale do Nilo, essa forma de escravidão não ocorreu
antes da época ptolomaica (século IV antes da nossa era), data em que os gregos
se tornaram soberanos do país, levando com eles algumas de suas tradições, em
particular a escravidão. Na sociedade egípcia, existiam múltiplos níveis de
dependência que ligavam os homens entre si. Alguns podiam ser identificados
como uma forma de escravidão, mesmo que estives- sem longe de responder aos
critérios impostos pela definição jurídica.
Trabalhar
para os faraós era uma forma de se apropriar de um pouco das benesses dos
“filhos dos deuses”. Pintura na tumba do nobre Rekhmire, c. 1500-1450 a.C.
SEM
PALAVRA QUE DESIGNE “ESCRAVO”
O funcionamento da realeza
egípcia baseava-se em um elemento essencial – que aproxima muito o estado de
espírito dos trabalhadores egípcios ao dos construtores de catedrais na Idade
Média: filho dos deuses e seu representante na Terra, o faraó, no ápice da pirâmide
social, garantia a vida e assegurava a cada um sua subsistência. Em troca
desses benefícios, ele estava no direito de exigir dos súditos seu trabalho, de
modo que cada um participava da grande obra coletiva.
Ainda por cima, por mais
árduo que fosse o trabalho, contribuir para a edificação dos monumentos
destinados ao futuro solar do rei ou à manutenção do equilíbrio cósmico
permitia se apropriar de uma parcela das prerrogativas habitualmente reservadas
ao personagem real. Enfim, fato sem dúvida revelador do sucesso do sistema
faraônico, a coesão social passava pelo pertencimento a um Estado cuja
organização quase militar era centrada na acumulação de riquezas, produzidas
por uma mão de obra particularmente móvel com status sociais extremamente diversos.
Em um estudo especialmente
instrutivo intitulado “Les noms de l’esclave en egyptien” (Os nomes de escravos
em egípcio), o egiptólogo Jules Baillet elaborou uma lista dos vocábulos
utilizados nos textos faraônicos para expressar a ideia de escravidão. Eis o
que ele constatou: na língua egípcia, não existem palavras para designar o
escravo no sentido estrito e, embora muitos termos expressem a sujeição,
“nenhum corresponde exatamente à ideia de servidão”, tal como definida na
Grécia ou em Roma. Daí sua pergunta: “O que é um estado social se nenhuma
palavra o designa?”.
Evidentemente, se a palavra
não existe, o mesmo ocorre com o status. Entre os muitos termos enumerados por
Baillet, dois são mais comumente traduzidos por “escravo” entre os autores favoráveis
à tese da existência da escravidão no Egito: hem e bak, duas palavras que
parecem totalmente sinônimas na língua egípcia e que se pode, de maneira menos
categórica, interpretar por “servo”, e mesmo “dependente”. Em egípcio, o
sacerdote é um hem netjer, um “servo de deus”, e, como observa Bernadette Menu,
grande especialista nas questões de direito no Egito antigo, um vizir se
consideraria o bak do faraó, seu “devoto” de alguma maneira. Segundo
Bernadette, a noção de escravidão não responde a uma necessidade egípcia. À luz
dos textos jurídicos, parece claramente que o indivíduo hem ou bak era um homem
livre, perfeitamente integrado à sociedade, dispondo de um estado civil,
titular de direitos e devedor de obrigações idênticas às do resto da população:
embora pudesse se casar, ter posses, vender, contratar ou entrar na Justiça,
ele não podia escapar do pagamento de impostos e ao regime de corveia (trabalho
gratuito).
Paralelamente, estão
conservados vestígios nos arquivos, sobretudo da Época Baixa (por volta do
século VI antes da nossa era), de contratos relativos à venda ou à locação de
indivíduos dependentes, tema muito controverso entre os egiptólogos: trata-se
do que chamamos comumente “escravidão por dívida”, cuja negociação se referia a
serviços temporários, avaliados e quantificados previamente pelos interessados.
Camponeses
trabalhavam em troca de rações diárias e de um salário mensal, acertados
antecipadamente. Pintura na tumba do artesão Sennedjem mostra agricultor
trabalhando, c.1200 a.C.
TRABALHO
POR DÍVIDAS
Um homem endividado se
colocava a serviço de um mestre para saldar sua dívida, até que a soma fosse
integralmente reembolsada. Depois, os dois homens podiam se entender, por meio
de um contrato escrito, validado juridicamente e aceito pelas duas partes. Foi
o caso de um indivíduo chamado Peftouâoukhonsou, cultivador por conta própria,
que entrou para o serviço de Nessemteu para pagar despesas médicas. Uma vez
paga a dívida, ele decidiu continuar trabalhando, mas dessa vez remunerado, o que
foi objeto de um novo contrato, renovado na sequência.
Trabalhos agrícolas e
canteiros de construção monopolizavam cotidianamente uma parte da mão de obra
egípcia, fosse ela estrangeira ou recrutada entre a população local, no seio
das classes trabalhadoras – em primeiro lugar, os camponeses. Em troca de
rações diárias e de um salário mensal – as fontes dissociam bem essas duas
remunerações complementares –, os contratados deveriam fornecer determinada
quantidade de trabalho. Salário e tarefa eram negociados antecipadamente e por
tempo determinado. Era o regime do trabalho obrigatório, o da corveia: o
indivíduo não escolhia sua tarefa, mas era pago regularmente pelo trabalho
efetuado. É o que revela um documento muito interessante, o papiro Reisner I, datado
do reino de Sesóstris I (em torno de 1970-1928 antes da nossa era), no início
da XIIª dinastia, durante o Médio Império.
Referindo-se aos trabalhos
de construção do reino, o papiro apresenta dados cifrados sobre as rações, os
recrutados, as equipes e os trabalhos realizados. Para a maioria, os homens –
oriundos da mão de obra das terras agrícolas pertencentes ao Estado – eram
trabalhadores destinados às tarefas mais árduas: transporte dos blocos e
fabricação de tijolos crus. Reagrupados em equipes de dez trabalhadores
dirigidos por um capitão, eles recebiam diariamente um quilo de pão – que
constituía a moeda de troca – e alguns extras por ordem real. As listas
apresentam alguns artesãos especializados, mais bem remunerados, e
contramestres que executavam as ordens dadas pelo vizir, responsável pelos
trabalhos de construção perante o faraó. O documento revela o caráter muito
regulamentado dessa organização e a extrema mobilidade da mão de Obra sujeita à
corveia, que não cessava de se deslocar de um canteiro para outro, dependendo
da necessidade.
BRAÇOS
POR DIA OU POR HORA
A partir do Novo Império,
além do Estado, qualquer pessoa podia, pagando uma remuneração, alugar os
serviços de um terceiro por dia, ou em frações: meio dia, um quarto de dia, uma
hora se necessário. Foi o caso do vaqueiro Messouia, que, sob os reinos de
Amenófis III e de Akhenaton (XVIIIª dinastia, de 1550 a 1292 antes da nossa
era), alugava mulheres para fabricar tecidos. Os contratos – cujo termo
hieroglífico pode ser traduzido por “troca a título oneroso” – engajavam essas
trabalhadoras por períodos que variavam entre dois até muitos dias, com tarifa
diária de dois shâtis.
No papiro Harris I, Ramsés
III (que reinou por volta de 1198 a 1168 antes da era cristã) explica como ele
“reduziu a pó” os beduínos da Ásia, pilhando seu acampamento, levando seu gado,
bens e prisioneiros, e os oferecendo aos deuses “para serem utilizados como
servos de seu domínio”. Bem mais cedo, sob o Antigo Império, a Pedra de Palermo
(sobre a qual foram gravados os anais reais) revela listas impressionantes de
butins de guerra: sob a IVª dinastia, Snefru (em torno de 2700 a.C.) trouxe da
Núbia 200 mil cabeças de gado e 7 mil cativos, imediatamente empregados nas
explorações agrícolas. Exemplos desse tipo são muito numerosos nas fontes
egípcias, em particular no Novo Império, onde o Egito conquistador submete seus
vizinhos à força, no espírito de trazer butim e prisioneiros. Estes últimos
eram destinados a engrossar os efetivos do exército e os domínios divinos ou
reais para executar trabalhos agrícolas, artesanais e domésticos.
Os prisioneiros de guerra
exploravam a terra que possuíam e pagavam impostos. Pintura da tumba do artesão
Menna mostra trabalhadores arando o solo, c. 1422-1411 a.C.
ANDAR
NO BOM CAMINHO
Desde essa época, a política
egípcia visava integrar esses cativos à sociedade, oferecendo-lhes uma educação
que recebiam no seio das fortalezas reais. Rompidos com seu meio de origem, os
prisioneiros adotavam um nome egípcio e se lançavam no aprendizado do “falar
como aqueles que seguem o rei, de modo que abandonem sua língua e andem no bom
caminho sem olhar para trás”, antes de serem destinados a um templo ou a um
domínio real onde fariam um trabalho remunerado. Tratava-se de uma acumulação
de homens condenados a servir nas engrenagens das estruturas econômicas
egípcias. Os cativos de origem principesca se uniam geralmente ao círculo real,
onde às vezes exerciam altas funções.
Esses homens, chamados, no
momento de sua captura, de hâqou ou seqerou-anhkou – palavras que se aplicavam
aos cativos, aos prisioneiros –, se tornavam, após uma egipcianização
bem-sucedida, hemou ou bakou, o que nos leva a pensar que não recebiam um
status de escravo. Embora a onipresença da iconografia real mostrasse o faraó
em toda a sua majestade esmagando os inimigos, em uma visão de mundo em que os
países estrangeiros eram seus vassalos e os adversários rebeldes, destinados a
morrer, o estrangeiro, a partir do momento que estivesse integrado à sociedade
egípcia, era tratado exatamente como um egípcio. Isso era particularmente
verdadeiro para os cativos que entravam como servos na casa de um particular
graças a um presente do rei a um homem merecedor. Muitas vezes acolhidos com
família e filhos, esses dependentes rapidamente faziam parte da casa, na qual
permaneciam em geral por toda a vida. Encontra-se também essa integração no
domínio militar.
Além dos soldados de
carreira, os contingentes eram compostos por corpos de mercenários constituídos
“pelos melhores entre os cativos que Sua Majestade fez nos campos de batalha”.
Um documento que remonta aos primeiros anos do reino de Ramsés II (de 1300 a
1235 antes da nossa era), atribuído a um escriba encarregado de efetuar a
repartição dos víveres entre os soldados de uma mesma unidade quando de uma
campanha militar na Síria, mostra que os efetivos contavam com 62%de
estrangeiros contra apenas 38% de egípcios.