Os vikings chegaram ao Novo
Mundo cinco séculos antes de Colombo - não há mais dúvida sobre isso. O
mistério é como e por que eles o abandonaram, menos de 50 anos antes da
"descoberta" oficial dos espanhóis
Após semanas perdidos no Atlântico,
Bjarni Herjólfsson e sua tripulação desembarcaram na Groenlândia, aos trapos.
Ele procurava pelos pais, que haviam embarcado com Eric, o Vermelho, para
colonizar a ilha. Entre reclamações dos infortúnios da viagem, na qual ficaram
perdidos em meio a nevoeiros e foram jogados para cima e para baixo por
tempestades, Bjarni tinha uma revelação: havia descoberto a América.
Para além de pilhagens e
conquistas, perder-se no mar era um dos esportes favoritos dos vikings. A
própria Groenlândia havia sido descoberta algumas décadas antes por outro
viking perdido no Atlântico e explorada por Eric, o Vermelho, enquanto curtia
um exílio de três anos por assassinato. Eric então batizou a ilha de
"Terra Verde" (Groenland) para atrair colonos. A publicidade não era
tão enganosa: no verão, nasce musgo e capim nos fiordes (braços de mar). E
havia peixes, renas, morsas, focas e ursos polares por perto, que era o que
interessava aos vikings.
Bjarni não desceu à terra em
nenhum ponto da viagem e não fazia ideia da importância da descoberta. Tampouco
os outros vikings: nem então, nem pelos séculos que viriam, eles entenderam que
aquelas terras eram um continente desconhecido do resto do mundo. De tudo o que
Bjarni falou, só uma palavra chamou a atenção: "árvores". Ele avistou
árvores nas terras a sudoeste da Groenlândia. Os navios dependiam de madeira e
os vikings dependiam dos navios. Não havia árvores na Groenlândia - e foi como
se ele houvesse encontrado petróleo. Assim, o filho mais velho de Eric, Leif,
comprou o navio do explorador acidental e partiu para o sudoeste com 35 homens.
Era o ano de 999, e começava a primeira tentativa europeia de colonização da
América.
Morte
e vida americana
O primeiro local avistado, a
Ilha de Baf-fin, no Canadá, não pareceu muito promissor. Só havia gelo e
pedras. Leif desceu do navio, só para garantir que fosse o primeiro a pôr os
pés no local, e batizou a ilha de Hellulland, "terra da pedra chata".
Continuando a viagem, chegou à península de Labrador, onde achou as prometidas
árvores, e batizou o lugar de Markland, "terra da floresta". Na Ilha
de Newfoundland, fizeram um acampamento permanente, com casas grandes de pedra
e madeira, e continuaram a exploração. Um dia, um escravo de Eric apareceu com
um achado surpreendente: uvas, coisa que os vikings só conheciam de países do
sul da Europa. Eram da espécie Vitis labrusca (as conhecidas uvas niágara),
ruins para vinho, boas para comer. Leif batizou o lugar de Vinland - terra da
uva - e, na volta, carregou seu navio com as frutas. Em sua primeira viagem à
América, os vikings acharam uvas, árvores, salmões, clima temperado e belas
paisagens canadenses. Era um começo promissor.
Quando Leif retornou à
Groenlândia, seu irmão, Thorvald, preparou a segunda viagem, que começou em
1004. Após dois anos sem incidentes, Thorvald explorava um fiorde quando topou
com uma visão inesperada: três botes de pele, cada um com três homens, se
aproximando do navio. Era o primeiro contato entre europeus e nativos da
América, e não acabou melhor que os posteriores: os vikings capturaram oito dos
nove homens e os mataram (sem explicar o motivo). O sobrevivente fugiu. Os
europeus continuaram a exploração e toparam com o que pareciam habitações. Não
tiveram tempo de se certificar. Dezenas de botes surgiram no fiorde e começaram
a disparar flechas contra eles.
Thorvald foi atingido
embaixo do braço e morreu pouco depois. Seu último pedido foi que marcassem sua
sepultura com duas cruzes, pois era cristão. Mesmo com a baixa, os nórdicos
chamaram os nativos de skraeling, algo como "fracotes". Sobre a
identidade dos skraeling, Hans Christian Gullov, do Museu Nacional da
Dinamarca, afirma que poderiam tanto ser índios beothuk quanto paleo-esquimós
da cultura Dorset, ambos extintos por outros povos americanos.
Fora as matanças, as
notícias não pareceram ruins para o comerciante Thorfinn Karlsefni. Ele se
casou com a viúva de Thorvald, Gudrid, e organizou a terceira expedição.
Karlsefni também encontrou os skraeling, desta vez no acampamento em Vinland.
Os nativos espalharam objetos sobre o chão, dando a entender que queriam
comércio. As mulheres trouxeram queijo e manteiga, o negócio foi aceito, e os
grupos se separaram sem incidentes. Apesar da promessa de paz, Karlsefni
construiu paliçadas em volta do acampamento. Durante o inverno, chegou o filho
do casal, o primeiro descendente de europeus a nascer na América. Na outra
estação, os índios reapareceram. Um deles tentou roubar uma arma de um servo de
Karlsefni, que reagiu à moda viking, com a espada - o incidente deu início a
uma batalha, mas os vikings conseguiram expulsar os nativos e se bandear de
volta para a Groenlândia.
Houve uma quarta e última
expedição. Dessa vez, os vikings não precisaram de ajuda dos skraeling para
morrer. A filha de Eric, Freydis, se desentendeu com os integrantes de uma
equipe rival, dizendo que só ela podia usar os prédios do acampamento,
propriedade de seu irmão. Os rivais se conformaram em fazer mais casas. Após
outra discussão, Freydis resolveu matar todo mundo - quando seus subalternos
recusaram-se a executar as mulheres, ela pediu um machado e resolveu a situação
sozinha. Matar índios não merecia comentário, mas, dessa vez, o relato não
ignorou que o ato foi visto como um grande mal na Groenlândia, uma mancha na
reputação dos descendentes de Freydis. Assim, entre serem mortos pelos nativos
ou por eles mesmos, os nórdicos deixaram a colonização do Novo Mundo para
outros europeus, séculos depois. Mas não foi o fim de sua presença na América.
Das
sagas para a História
Tudo o que você leu até
agora vem da Saga dos Groenlandeses, livro escrito na Islândia por volta de
1200. A mesma história é contada na Saga de Eric, o Vermelho, com alguns
detalhes distintos. Durante os séculos 18 e 19, as sagas começaram a ser
traduzidas para línguas nórdicas modernas e depois para o inglês, francês e
alemão, dando origem a uma certa "vikingmania". Os feitos nórdicos
foram saudados por gente como o escritor norueguês Henrik Ibsen (Os Guerreiros
em Helgeland, 1857) e o compositor alemão Richard Wagner (O Anel dos
Nibelungos, 1874). Na época surgiu o estereótipo do viking de elmo chifrudo -
que existiu entre nórdicos na Antiguidade, mas já abandonado na Idade Média.
Em 1837, o historiador
dinamarquês Carl Christian Rafn escreveu Antiquaes America, primeiro trabalho
acadêmico desbancando a primazia de Colombo. No livro, Rafn apontava uma torre
de pedra em Rhode Island (EUA) como uma igreja de vikings cristãos. Em 1898,
uma pedra rúnica foi encontrada no Minnesota, a milhares de quilômetros do
litoral canadense. A pedra era uma fraude e a torre, depois de escavada, só
rendeu artefatos do século 17. No início do século 20, a maioria dos
historiadores estava cética em relação às narrativas das sagas. Os amadores não
desistiram. Em 1914, o empresário William F. Munn, de Newfoundland, escreveu
artigos apontando o extremo norte da ilha como o local onde os vikings
aportaram.
Após várias escavações que
encontraram apenas vestígios indígenas, em 1960 o casal de arqueólogos
noruegueses Helge e Anne Ingstad acharam o que parecia ser o contorno de
prédios nórdicos sob a grama, em L¿Anse aux Meadows, uma vila de pescadores. O
anúncio da descoberta, no ano seguinte, foi recebido com ceticismo - mas um
estudo mais aprofun-dado do local, nos anos 60 e 70, trouxe resultados
surpreendentes. Em L¿Anse aux Meadows havia, sim, uma vila nórdica, construída
por volta do ano 1000, que foi habitada por não mais de 20 anos. O local não
tinha os elementos de um povoamento definitivo, como cemitério ou igreja. Em
vez disso foram encontrados forjas, serralherias e armazéns. A conclusão: era o
acampamento de Leif Ericsson. As sagas estavam certas. "As histórias sobre
as viagens são muito rea-listas e nunca foram consideradas mitológicas",
afirma o historiador Gísli Sigurdsson, da Universidade da Islândia. "As
sagas contêm memórias sobre personagens e eventos reais, apesar de que isso
pode não ter ocorrido exatamente como contado."
Cristianismo
A Saga de Eric, o Vermelho,
deixa claro que a razão do abandono do acampamento eram os skraelings hostis.
Mas isso não quer dizer que eles abandonaram a América completamente.
"Temos indícios que os nórdicos da Groenlândia mantiveram contato com a
América. Encontramos no povoamento ocidental fibras de pelo de bisão e urso
marrom, provavelmente da América, datados de depois de 1200", diz a
arqueóloga Jette Arneborg, do Museu Nacional da Dinamarca. A colonização da
América ocorreu no mesmo período em que os vikings deixavam de ser vikings. Um
dos primeiros prédios construídos na Groenlândia foi uma igreja - pela mulher
cristã de Eric. Antes de ir ao Canadá, Leif Ericsson havia se convertido e
recebido a missão de converter a Groenlândia. Os nórdicos foram absorvidos na
diplomacia, política e cultura europeia - houve até sagas em latim.
Se os nórdicos fugiram dos
skraeling ao sul, logo tiveram de se entender com eles na Groenlândia - que,
vale lembrar, é parte da América. Os esquimós modernos, ou inuítes, começaram a
se expandir a partir do Alasca perto do ano 1000. Por volta de 1200, estavam na
Ilha de Ellesmere, e logo depois montaram acampamento na Groenlândia, ao norte
de áreas habitadas por vikings. A relação deve ter ido bem, ao menos no começo:
mais de 200 artefatos nórdicos foram encontrados em ruínas inuítes, além de
esculturas que parecem representar europeus. "Os dois grupos tiveram
contato por séculos. Mas viviam suas próprias vidas e se encontravam apenas em
locais de comércio", diz Gullov. O número de artefatos inuítes em ruínas
nórdicas é muito menor, o que parece mostrar que os nórdicos exportavam tudo o
que compravam dos inuítes - marfim de morsa e peles.
Os nórdicos continuaram na
Groenlândia até o século da descoberta de Colombo. Se Markland e Vinland eram
terras mais habitáveis, havia razões econômicas para permanecerem naquele
ambiente hostil: o comércio de marfim de morsa e peles de foca e rena (ou
caribu). Quando chegaram, a região era 1º C mais quente que hoje, já que
vivia-se o Período Quente Medieval. Eles trouxeram gado, cavalos, ovelhas e
cabras, que alimentavam com a grama da tundra, no verão, ou feno, estocado para
o inverno. Em anos bons, era possível plantar cevada e trigo, o que não durou
muito. Em 1250, o livro norueguês O Espelho Real descrevia a Groenlândia como
"o lugar onde ninguém nunca viu pão".
O clima começou a esfriar no
século 13, na Pequena Era do Gelo, que duraria até o começo do atual
aquecimento, no século 19. O legista Niels Lynnerup, da Universidade de
Copenhague, estudou esqueletos nórdicos encontrados na Groenlândia: "No
começo, eles tinham uma dieta diversificada, de gado e ovelhas. Mais tarde,
dependiam de foca". O frio não era o único problema. Após a Primeira
Cruzada, em 1096, foram abertos caminhos para a Ásia e a África, que permitiram
a entrada de marfim de elefante na Europa. O marfim de morsa, bem menor, foi se
tornando cada vez menos interessante. Em 1361, o bispo Ivar Bardson visitou as
ruínas do povoamento ocidental, que chegou a abrigar 20% da população da
Groenlândia (no auge, 5 mil pessoas). Ele culpou os skraeling - os inuítes, neste
caso - pela destruição. No fim, ninguém mais ouviu falar de nórdicos na ilha.
Historiadores apontam o fim
da colonização viking por volta de 1450 - se eles foram mortos ou incorporados
pelos inuítes, ou simplesmente partiram, ainda é um mistério. Segundo o
historiador Thomas McGovern, da Universidade da Cidade de Nova York, eles
desperdiçaram uma chance ao não copiar o estilo de vida dos inuítes, com
tecnologias adequadas para o inverno e a neve. "Os groenlandeses decidiram
evitar a inovação, enfatizar suas tradições e morrer pelo que consideravam seus
valores", escreveu McGovern, em The Demise of Norse Greenland (O Fim da
Groenlândia Nórdica).
O
resgate
Em 1492, Colombo chegou ao
Caribe pelo meio do Atlântico, uma rota que os escandinavos não seriam capazes
de fazer. Oito anos depois, o português Gaspar Corte Real chegou à Groenlândia
pelo Atlântico Sul, batizando uma ilha de Terra Nova (daí o inglês "Newfoundland").
Um mapa português de dois anos depois já mostrava a Groenlândia como possessão
portuguesa, pois ficava a leste da Linha de Tordesilhas. Isso ficou só no
papel.
Em 1604, o rei Cristiano IV
da Dinamarca enviou uma "expedição de resgate" - ele acreditava que
ainda havia nórdicos morando na Groenlândia. Foi um fracasso, com os navios
bloqueados pelo gelo. Em 1721, com Hans Egede, os dinamarqueses conseguiram
tomar posse do país novamente, mas só encontraram inuítes, que mostraram a eles
as ruínas nórdicas. Hoje, 89% dos 59 mil groenlandeses são inuítes. Desde 2009,
a Groenlândia é um país semiautônomo. A maioria da população apoia a
independência total da Dinamarca. Um plebiscito vai resolver a questão em 2017.
As
sagas
Sagas são relatos épicos em
prosa, presentes nas culturas nórdica e germânica, sobre as viagens dos
vikings. A maioria foi escrita depois da conversão ao cristianismo, com base na
tradição oral pagã.
Objetos
do cotidiano
Os vikings não usavam chapéu
com chifres nem bebiam em canecas feitas de caveira - mas canecas de chifre
eram comuns. Seu drinque favorito era a cerveja - o vinho era visto como um
produto de luxo vindo do sul. Eles usavam roupas de lã, adornadas com
abotoaduras e joias decoradas com motivos animais. Entre seus passatempos
favoritos estavam dados e xadrez, com peças de marfim de morsa. Do mesmo
material, ou de osso, faziam instrumentos musicais, como flautas.
As
mulheres
As mulheres vikings
desfrutavam de muito mais liberdade em relação a outros povos europeus do
período. Podiam ser donas de propriedade, como navios, e tinham a alternativa
de pedir divórcio.
Homens
do mar
As embarcações vikings
tinham por volta de 20 m e uma tripulação de 40 pessoas, mas podiam ser
maiores, com até 32 m em alguns navios de propriedade real. Com vento de popa,
podiam chegar a 15 nós (27 km/h) de velocidade - o dobro da velocidade de uma
caravela da época de Colombo. Sua construção simples deixava um bom espaço para
carga. As desvantagens ficavam por conta da precária navegação: eles não tinham
mapas ou bússolas, usavam apenas o Sol, estrelas e pontos de referência para se
guiar. Bastava um nevoeiro para ficarem perdidos - o que, como vimos, às vezes
se transformava em vantagem. Os barcos vikings usavam cascos trincados - cada
tábua era presa às tábuas adjacentes, diferente de uma caravela, em que as
tábuas são paralelas e presas ao esqueleto. Elas, assim, se tornavam parte da
estrutura de sustentação, dispensando um esqueleto pesado - era a razão de sua
grande velocidade e maior capacidade de carga. Antes do uso do velame
triangular das caravelas, remar era a única solução quando o vento era
contrário. Os remadores costumavam ser poupados se o plano era atacar - não
adiantaria nada ter um exército exausto. Como os demais europeus medievais, os
nórdicos achavam que o mundo era um círculo com centro em Jerusalém, cercado
por oceanos cheios de monstros. Sem aceitar que havia um novo continente,
acreditavam que a Groenlândia era uma península da Europa, e Vinland, uma península
saída da África.
Os
inuítes