Professor autoritário padronizando seus alunos. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.
Alessandra Felix de Almeida[1]
RESUMO: Trataremos de uma pesquisa bibliográfica
exploratória com o objetivo de analisar uma possível postura de superioridade
do professor em relação aos alunos, no que diz respeito à valorização dos saberes
que norteiam as suas atividades. Ao percorrer as literaturas brasileiras do
século XIX nos deparamos com a figura de um professor distanciado dos alunos,
por conta de uma hierarquia, tal figura ganhava proximidade apenas pela
violência, tanto física quanto moral. Percebemos assim, a construção de um
mito, que por hipótese ainda está entre nós, e da necessidade de sua manutenção
para legitimar distinções entre aqueles cujo saber é validado por uma estética
acadêmica e aqueles cujo saber “desnormatizado” não tem possibilidades de
atribuição de valor no que tange ao desenvolvimento educacional.
1.
INTRODUÇÃO
A proposta deste artigo originou-se de uma frase de
um professor (doutor na área das Ciências Sociais) quanto à participação dos
alunos na elaboração das suas aulas, segundo o professor “os alunos não sabem
fazer isso”. Sendo assim, em oposição aos que não sabem, obrigatoriamente há os
que sabem, e aqui, estes seriam os professores. Araujo e Schwartzman (2002)
apresentam que mesmo diante da precariedade do ensino, comprovada por dados, os
professores atribuem importância e eficiência às suas atividades, sendo que
qualquer desempenho insatisfatório é de responsabilidade dos próprios
educandos. Aquino (2005) avalia este discurso como sendo o mesmo que “dizer que
o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os delitos”, Aquino (2005)
atribui a este discurso “a lógica dos mitos”, sendo o maior deles “o de
responsabilizar o alunado”. Temos assim um estado de coisas que pressupõe como
condição única a submissão, pois o mesmo aluno que não é capaz de aprender,
também não é capaz de ensinar: “não sabe fazer isso, nem aquilo”, o professor
aparece aqui envolto em uma aura celestial, mitológica e cristalizada em nossa
vivência educacional.
Cena do Clipe 'The Wall' do grupo Pink Floyd.
Se há uma manutenção dessa forma mitológica do
saber e do professor, esta pode ser legitimada, no âmbito da normatização, por
um sistema burocrático racional, no entanto há o âmbito das nossas paixões que,
nos termos de Foucault (2010), pode ser entendido como um fascismo, não aquele
de Hitler ou Mussolini, mas sim “o fascismo que está em todos nós, que persegue
nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder,
desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 2010: 105).
2. A
PALMATÓRIA DO COSTUME E O MITO QUE LEGITIMA
O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de sua
visita, e apresentou o pequeno ao mestre. “Tem muito boa memória, soletra já
alguma coisa, não lhe há de dar muito trabalho”, disse com orgulho. “E se mo
quiser dar, tenho aqui o remédio, santa férula!” disse o mestre brandindo a palmatória. O
compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim. “É
verdade: faz santos até às feras, disse traduzindo. Segunda-feira cá vem, e
peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre despedindo-se”. Procurou
pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se
julgava muito bem. “Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?” O menino
voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então (ALMEIDA, 1987:
58).
[O professor Policarpo] Uma vez sentado, extraiu da
jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou
os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada
dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem [...]. Na verdade, o mestre
fitava-nos [...] metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e
tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as
ideias e as paixões [...]. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória.
E essa lá estava, pendurada no portal da janela, à direita, com os seus cinco
olhos do diabo. Era só levantar a mão, dependurá-la e brandi-la, com a força do
costume, que não era pouca (ASSIS, 2001: 33).
“Memória de um Sargento de Milícias” (ALMEIDA, 1987)
e “Conto de Escola” (ASSIS, 2001) foram publicados, respectivamente, em 1853 e
1896. Nos trechos reproduzidos acima podemos entender como se apresentava a
figura do professor. Nos dois casos é possível perceber dois aspectos de poder
disciplinador, o primeiro físico através do recurso da palmatória, e o segundo
moral, através do constrangimento e do exercício da força do costume.
Este artigo não tem como objeto uma análise
literária, embora a literatura seja um produto social, composta por fatos
associativos, onde as obras acabam por expressarem certas relações dos homens
entre si, e que, “tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus
impulsos íntimos” (CANDIDO, 2010: 29, 147). Assim, ao iniciar este artigo com
citações literárias, procurou-se apresentar como a relação professor-aluno se
manifesta na comunicação para com os grupos, visto que “toda obra brota de uma
confidência, um esforço de pensamento, um assomo da intuição, tornando-se uma
‘expressão’” (CANDIDO, 2010: 147). Para que haja literatura e a sua
respectiva comunicação social, é necessário um compartilhamento de experiências
e impressões da realidade vivida, “um sistema de valores que enforme a sua
produção e dê sentido à sua atividade” (CANDIDO, 2010: 147). A obra literária
traz em si aspectos de integração e diferenciação
A integração é o conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo
ou no grupo a participação nos valores comuns da sociedade. A diferenciação, ao
contrário, é o conjunto dos que tendem a acentuar as peculiaridades, as
diferenças existentes em uns e outros. São processos complementares, de que
depende a socialização do homem; a arte, igualmente, só pode sobrevier
equilibrando, à sua maneira, as duas tendências referidas (CANDIDO, 2010: 33).
Alinhados à análise de Antonio
Candido (2010) temos assim, a expressão da interpretação vivida quanto à
relação professor-aluno, de modo que para objeto de análise deste artigo
tomaremos a referida interpretação como a construção de uma ideologia[2] quanto à figura do
professor que parece tomar feições de um mito. Lévi-Strauss (2008) nos
apresenta que o valor atribuído a um mito “provém do fato de os eventos que se
supõe ocorrer num momento do tempo também formarem uma estrutura permanente,
que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro”
(LÉVI-STRAUSS, 2008: 224), no entanto “o mito continua sendo mito enquanto for
percebido como tal” (LÉVI-STRAUSS, 2008: 233).
3. A AURA
DO DISCURSO
Julio Groppa Aquino (2005), em
entrevista à Revista Carta Capital[3], comenta o levantamento
realizado quanto ao interesse dos alunos na aprendizagem, publicado no livro “A
Escola Vista por Dentro” (2002) de João Batista Araujo e Simon Schwartzman, o
referido estudo apontou que 77% dos professores do ensino fundamental público
culpam o desinteresse dos alunos pela alta repetência. Em seu comentário,
Aquino (2005) apresenta que
é como dizer que o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os
delitos. “Se fôssemos um povo menos criminoso, a Justiça seria melhor. Se
fôssemos mais interessados em educação ou, em outras palavras, menos
ignorantes, a educação seria melhor.” É a lógica dos mitos. E esse talvez seja
o maior deles: o de responsabilizar o alunado. Não faz o mínimo sentido, mas
está generalizado não só entre os profissionais da educação, como também na
opinião pública, que ratifica esses clichês, esses abusos cometidos contra os
jovens (AQUINO, 2005)
O argumento para a elaboração deste artigo teve
como fonte a frase de um professor (doutor na área das Ciências Sociais) quanto
à participação dos alunos na elaboração das suas aulas, visto que esses alunos,
em tese (minha tese) são os protagonistas do ambiente educacional, segundo o
professor “os alunos não sabem fazer isso”. Sendo assim, em oposição aos que
não sabem, obrigatoriamente há os que sabem, e aqui, estes seriam os
professores, exclusivamente eles. A palmatória do século XIX parece ter ficado
nas sombras da história, no entanto, o exercício do costume quanto à relação
entre alunos e professores ainda nos ronda. Araujo e Schwartzman (2002) revelam
em seu estudo que mesmo em face aos dados pessimistas da educação, os
professores
gostam do que fazem, e afirmam dedicar muito de seu tempo à escola e à
preparação de atividades docentes. Consideram importante e eficiente o que
fazem, e acham que deveriam ser muito mais bem remunerados. De modo geral,
particularmente nas escolas públicas, os professores consideram como normais
muitos comportamentos e expectativas que a sociedade em geral e a literatura
sobre escolas eficazes considerariam como desviantes – como as questões
relativas a pontualidade, frequência, cumprimento do calendário escolar e
programa de ensino, responsabilidade da escola pelo sucesso do aluno, etc
(ARAUJO e SCHWARTZMAN, 2002: 63).
A análise de Araujo e Schwartzman (2002) confirmam
o comentário de Aquino (2005) quando entendem que se os professores “acreditam
que o fracasso depende apenas do aluno e da falta de condição ou da cooperação
das famílias, não há razão para se esforçar e cumprir o programa de ensino
dentro do ano letivo” (ARAUJO e SCHWARTZMAN, 2002: 106). Assim, o professor
aparece envolto em uma aura celestial, mitológica e cristalizada em nossa
vivência educacional. Isto posto, podemos entender que um aluno que não é capaz
de aprender, também não é capaz de ensinar e muito menos é capaz de dizer o que
entende por educação, o que gostaria que fosse a educação, pois afinal “os
alunos não sabem fazer isso”.
4. AS
REGRAS PARA O SABER, A LEGITIMAÇÃO DO PODER
De acordo com o exposto, sugiro
que tomemos a relação professor-aluno como uma relação hierárquica, onde a
figura do professor, além de ter em si todo o conhecimento, não se vê com o
dever de transmiti-lo e debate-lo, uma vez que, por hipótese, o aluno é quem
tem o dever de aprender de acordo com a sua condição de tabula rasa[4] subordinada. A fim de
analisar a forma hierárquica, nos conduziremos pelo pensamento de Max Weber
(1982) que nos aponta a burocracia como um meio para legitimar e proteger relações
hierárquicas, “toda burocracia busca aumentar a superioridade dos que são
profissionalmente informados tornando secretos seu conhecimento e intenções: na
medida em que pode, oculta seu conhecimento e ação da crítica” (WEBER, 1982:
269). Neste sentido, sugerimos que o exercício da superioridade possa ser
pautado pela relação entre saber e poder, sendo que para Foucault (1987) temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente
favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber
estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 1987: 31).
Admitamos assim, que a relação de poder constitua
um campo de saber, porém, de qual campo de saber estamos falando? Proponho que
falemos de um campo de saber que pressupõe aquele que tem valor – o do
professor –, e aquele sem valor – o do aluno. O valor da forma de se saber pode
ser entendida como regulamentada, racional e portanto burocratizada, que toma
feições de dominação e disciplina. Uma forma de se saber tradicional,
acadêmica, da ordem do costume, uma gênese mitológica da qual a única coisa que
sabemos é que sempre foi assim. Neste sentido, Foucault (2010) nos auxilia com
sua análise quanto ao posicionamento dos intelectuais, no prefácio ao
“Anti-Édipo”. O autor entende que haveria, durante o período de 1945 a 1965
(este cenário parece estender-se até os dias de hoje), condições para a
aceitação de uma verdade escrita, tais condições estavam vinculadas à ética do
intelectual, a uma forma correta de pensar e ao estilo correto do discurso
(FOUCAULT, 2010: 103), aqui permitamos que a “forma correta de pensar” esteja
também vinculada a uma forma correta de saber, de modo que qualquer forma de
entendimento, conhecimento e saber que não tenha como forma uma “ética” ou uma
estética intelectual não seja merecedora de valor. Foucault (2010) propõe que
sejam rompidas as fronteiras dessa forma “correta” de pensar, no entanto, nos
chama a atenção para o maior adversário da ruptura dessas fronteiras: o
fascismo, não apenas aquele caracterizado pelas ações de Hitler e Mussolini,
mas “também o fascismo que está em todos nós, que persegue nossos espíritos e
nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa
coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 2010: 105).
5.
AS CERCAS PROTEGIDAS DO ESCLARECIMENTO
Immanuel Kant (2005) nos pergunta “Que é
esclarecimento?”. O autor nos aponta que os homens vivem em um estado de
menoridade e este estado o torna incapaz de utilizar o seu entendimento sem a
tutela de outro, tal menoridade é tratada como o resultado da falta de decisão
e coragem de conduzir-se por si mesmo, assim, se um homem decide, de forma
corajosa, utilizar o seu próprio entendimento e deixar a comodidade de ser
tutelado, terá acesso ao esclarecimento (KANT, 2005: 1). À primeira vista,
podemos considerar que esta análise acaba por reforçar uma falta de vontade
humana, a sua covardia, portanto, em diálogo com os mitos que vivenciamos de
forma passiva. Assim, podemos nos perguntar: como esclarecer-se sobre si mesmo
tendo em vista a força de um mito? Como esclarecer-se sobre si mesmo diante de
uma forma estabelecida de saber alimentada pelo amor ao poder de quem nos
domina? Kant (2005) nos apresenta que a culpa da menoridade é do próprio homem,
a não ser que esta seja por falta de entendimento e este entendimento,
normalmente, é normatizado de tal forma que toma caráter de natural, daí a
dificuldade de tornar-se esclarecido (KANT, 2005: 1, 2). E é neste ponto que
proponho o início de nosso raciocínio acerca da dificuldade de tornar-se
esclarecido, em consonância com os sistemas burocráticos analisados por Weber
(1982), com a construção de um campo de saber, que pressupõe uma relação entre
poder e saber, abordados por Foucault (1987), a percepção dos professores sobre
si mesmos, identificada no estudo de Araujo e Schwartzman (2002) e os mitos que
orientam a educação, comentados por Aquino (2005), sendo que este último,
delimitado no mito do professor, sustenta todo o argumento deste artigo.
6.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS