[...] há que se reverenciar e defender especialmente as capelinhas toscas, as velhices de um tempo de luta e os restos de luxo esburacado que o acaso se esqueceu de destruir.
Mário de Andrade
Capela de São Miguel Arcanjo, erguida em 1622.
Para se pensar no bairro de São Miguel Paulista, imerso no torvelinho urbano que é a cidade de São Paulo, da qual faz parte, há que se pensar na preservação da Capela de São Miguel Arcanjo, cuja data de fundação coincide com a do bairro, 1622. Ainda que existam discussões e embates sobre essa data por existir indicação de data anterior – por volta de 1560 –, o marco da fundação do bairro não deixa de ser a Capela de São Miguel Arcanjo. Deste modo, procuro refletir sobre o bairro de São Miguel Paulista e o seu cotidiano, especialmente ligado à presença da Capela. Esse templo religioso é considerado um dos exemplares mais antigos da cidade de São Paulo, e conserva, ainda hoje, sua originalidade.
O bairro de São Miguel Paulista, situado na zona leste da cidade, foi, nos primeiros anos de sua colonização, uma aldeia indígena chamada Ururaí. Com a transformação do aldeamento em bairro de brancos, foi construída uma nova capela em 1622[*1]. O processo de ocupação do bairro estava, portanto, ligado à fundação da cidade de São Paulo, por ser um local estrategicamente situado, favorável à efetivação da fé cristã no Planalto Piratininga. Para isso, seria necessária a construção de uma capela que servisse de ponto de aglutinação para esses índios.
Na região central do bairro, em meio a um comércio acentuado de estabelecimentos – como bares, restaurantes, salões de beleza, clubes, estacionamentos, bancos, bancas de jornal e até vendedores ambulantes, além de igrejas e instituições de atendimento à população – que vendem produtos das mais variadas espécies, nota-se a presença de uma igreja, atualmente conhecida como “Capela de São Miguel Arcanjo”, que guarda as principais características da arquitetura luso-brasileira dos séculos XVI e XVII; um rastro do passado que expõe a origem colonial desse espaço urbano, modificado ao longo do tempo em função de interferências, simultâneas ou não, e de interesses diversos. Assim, a pesquisa voltada para a Capela de São Miguel Arcanjo relaciona-se à minha inquietação provocada por sua presença solitária na Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, em São Miguel Paulista. Presença essa remanescente única da arquitetura colonial que se destaca em meio ao atual ambiente urbano que o espaço evidencia.
Se as respostas sobre as origens da Capela de São Miguel Arcanjo – que, segundo Roseli Santaella Stella, “apresenta a simplicidade das formas das residências de fazenda e a austeridade de quem implacável ao tempo, resiste com a força de edificações conhecedoras de nobres materiais”[*2] – foram encontradas no diálogo com as publicações existentes sobre o assunto, a percepção dos vários tempos, impregnados na paisagem urbana, fez aflorar, em mim, inquietações diferentes. Por que essa Capela, notadamente de origem colonial, resistiu ao tempo? O que tornou possível sua travessia pelos séculos? Quais experiências sociais foram construídas no bairro, tomando a Capela como referência?
Dessas inquietações surgiu a necessidade de conhecer esse objeto, entender seus modos de expressão, seu sentido histórico e os significados e vivências que diferentes sujeitos atribuem a ele, para, assim, construir um caminho para a investigação. Nessa perspectiva, Déa Ribeiro Fenelon (1999) ajuda a compreender que a constituição dos espaços e territórios urbanos são resultantes das relações sociais desenvolvidas na cidade, que acabam por definir e delinear a paisagem urbana, a imagem da cidade[*3]. Antonio Augusto Arantes Neto também indica que “as paisagens são criadas pela ação humana e, ao se tornarem referências de tempo-espaço para as ações e experiências compartilhadas, elas por sua vez realimentam o processo histórico”[*4].
A força simbólica exercida pela Capela de São Miguel Arcanjo é tão verdadeira e arraigada na cultura desse bairro longínquo que a pesquisa teve de ser encerrada, apesar das dúvidas e do desconforto em deixar de lado fontes importantes. Esse contexto histórico possui uma multiplicidade de tramas sociais que se revelaram em sua totalidade, daí o reconhecimento de sua parcialidade e limitação. Junto a esse bem cultural existem variadas formas de vivenciar e de expressar as experiências sociais da cidade, que estão calcadas no fazer de seus moradores e reveladas na heterogeneidade de ações que se configuram no bairro, passam pela organização do próprio espaço urbano e possibilitam percebê-lo como resultante de práticas sociais diversas.
Na perspectiva de pensar esse patrimônio cultural e o bairro em que ele se situa, e, sobretudo, de compreendê-lo, busquei reconhecer as forças que participaram de referências espaciais significativas, que demonstram as ações dos moradores, fazendo-os despontar como autores do processo de transformação do bairro, imerso na dinâmica de produção capitalista a que está sujeita uma grande metrópole como a cidade de São Paulo.
Assim, os moradores de São Miguel Paulista reconheceram outros tempos, que emergiram de suas memórias reveladas através de narrativas, relatos, produções, ações, ancorados numa memória capaz de afirmar a diversidade e o conflito como dimensões da história, e que serviram para problematizar a Capela como referência cultural, como patrimônio histórico e como afirmação de determinadas experiências sociais dos moradores do bairro.
O patrimônio cultural não se reduz às edificações urbanas, mas estas, como a Capela de São Miguel Arcanjo, devem ser incluídas na preocupação em preservar, traduzida como memória social que indica os laços que nos ligam ao passado e ao presente, rompendo com a visão monumental da preservação que considera um elemento urbano isolado, em contraposição à proteção do patrimônio ambiental urbano, que compreende o conjunto de bens que caracterizam a vida da cidade. Desta forma, uma política de preservação tem que ser pautada na apropriação dos sentidos e valores de diferentes grupos sociais que partilham determinados bens culturais. Mais ainda, desconsiderar a questão do patrimônio é exilar o cidadão, alijá-lo de seu próprio meio e privá-lo da dimensão fundamental da cidadania, dimensão esta que significa aceitar a diversidade, a ambiguidade e o esquecimento que pode deslindar diversos suportes que indicam uma multiplicidade de vivências e lutas no bairro de São Miguel Paulista, com a Capela de São Miguel Arcanjo como referência.
Essas experiências permitem dizer que não se pode subestimar a capacidade criadora dos moradores e, ao serem analisadas, indicam uma ruptura com a modalidade de registros escritos como única fonte verdadeira para a reflexão histórica. Permitem, ainda, entender que nenhuma espécie de registro é inferior a outra. Dos pequenos gestos, escondidos em recônditos do bairro, emergem questões que provocam reflexões e entendimento sobre as ações humanas. O objetivo da pesquisa foi analisar as dinâmicas sociais que se estabeleceram e ainda se estabelecem em torno desse bem cultural e as ações que viabilizam sua preservação, enfocando, especialmente, os períodos que compreendem o tombamento e a primeira restauração pelo IPHAN (1939) e o tombamento pelo Condephaat (1974) até os dias atuais. Assim, foram analisadas as ações do poder público, principalmente as relativas aos tombamentos, às restaurações, às medidas que visam proteção e, ainda, à participação ativa dos sujeitos sociais que se relacionam com esse bem, que vivenciaram e vivenciam esses momentos e que têm ações voltadas para sua preservação. Serviram como fonte de pesquisa os documentos produzidos pelos órgãos oficiais[*5] e os depoimentos orais de pessoas relacionadas à Capela e ao bairro, bem como as diferentes produções desses sujeitos. Da interlocução dessas ações e produções, procurei entender o sentido histórico desse patrimônio cultural.
Iluminar experiências como o Movimento Popular de Arte (MPA), cujo objetivo inicial era o de encontrar uma forma de revitalizar a Capela de São Miguel Arcanjo e cuja resistência à massificação e ao nivelamento da cultura popular se tornam evidentes, faz com que voltemos à sabedoria de Ecléa Bosi, quando diz que: “empobrecedora para a nossa cultura é a cisão com a cultura do povo: não enxergamos que ela nos dá agora, lições de resistência como nos mais duros momentos da história da luta de classe”[*6]. O MPA, surgido no ano de 1978, no bairro de São Miguel Paulista, era formado por artistas que buscavam espaço para apresentar suas produções: músicos, atores, poetas, artistas plásticos e professores que se reuniam para mostrar a produção cultural existente no bairro, com apresentação de shows musicais, peças teatrais, brincadeiras infantis, varais de poesia, mostras de pintura e fotografia, filmes ao ar livre que eram exibidos nas praças de São Miguel Paulista.
Arantes e Andrade (1981) relataram que no ano de 1978 foram encarregados de uma pesquisa pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, preocupada em traçar uma política de “revitalização” dos sítios históricos e/ou artísticos localizados em bairros populares. No caso de São Miguel, a revitalização da Capela de São Miguel Arcanjo[*7]. Arantes, no entanto, reflete sobre a concepção de arte e de cultura que embasava a proposta:
Esse trabalho partia do pressuposto que a meu ver era falso. Os que me convidavam a fazê-lo consideravam a área onde se localizava esse bem, [...] uma área culturalmente muito pobre, com uma produção local praticamente inexistente ou muito insignificante. [...] seria necessário, efetivamente, criar a possibilidade de se desenvolverem formas de produção artística, enfim, incentivar a produção artística e as formas de expressão de maneira geral nessa faixa da população.[*8]
Observa-se que, para Arantes, a concepção da Secretaria da Cultura se deu pelo fato de não haver, naquela época, em São Miguel Paulista formas de produção artística e de expressão. Porém, não foi preciso muito tempo para que o pesquisador lá encontrasse uma gama de experiências sociais diversificadas, contrariando concepções preestabelecidas do órgão responsável pela cultura da cidade, que subestimava as experiências pessoais e sociais dos moradores de São Miguel.
Presença social visível no bairro, os migrantes – visíveis no sentido de serem diferentes dos que lá estavam e de persistirem nos programas de rádio, grupos de forró, nas festas típicas, no comércio e na permanência de hábitos alimentares – fazem de São Miguel um lugar privilegiado para se observar mudanças e transformações com raízes nos movimentos migratórios provocados pela industrialização e pela dificuldade da cidade em absorver esses novos moradores. Esse afluxo de pessoas para São Miguel Paulista, a partir do final da década de 30, faz emergir no bairro novos interesses, que passam a disputar espaços com a Capela de São Miguel Arcanjo. Em São Miguel, existem, no mesmo lugar, duas praças, a Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra e a Praça do Forró. É o mesmo lugar, identificado pelos moradores de maneiras diferentes, segundo as suas experiências, seus valores, seus interesses. Cada um pretende perpetuar a sua memória e nesse percurso, o conflito se evidencia[*9].
Essa disputa pelo nome da praça demonstra que os lugares são apropriados segundo os significados que têm determinados grupos. Enquanto Padre Aleixo, a praça representa a memória daqueles que fizeram parte de uma época, e que encontraram, ao longo do tempo, formação, informação e conformação num universo cultural, cuja figura do homenageado era significativa; por outro lado, enquanto Praça do Forró, outras memórias são produzidas. São inscritos nesse espaço público outros usos e significados ligados aos grupos que se identificam com esse ritmo, traduzido pela presença significativa de nordestinos em função do trabalho nas indústrias e que se apropriaram desse espaço para preservação de seus costumes. Dessa forma, o que cada grupo ou pessoa elege e legitima como nome mais adequado é o resultado de operações de seleção e combinação, que mudam segundo o objetivo das forças que disputam a hegemonia ou a permanência de seus pactos sociais.
Praça Padre Aleixo Mafra ou Praça do Forró: lá está a Capela de São Miguel Arcanjo. Para ambas as praças a Capela é referência, constitui-se num elemento agregador de ações, seja na luta para utilizar os espaços da praça para manifestações nordestinas, para as saídas das procissões, para os atos litúrgicos ou para um passeio matinal; a praça e a Capela se confundem.
Procurar refletir sobre as imagens e a leitura que se pode fazer delas, as representações da Capela de São Miguel Arcanjo veiculadas em selo, bilhete de loteria federal, cartões telefônicos, caixa de leite longa vida, jornal e obras plásticas[*10] revelam experiências que indicam a capacidade de seus autores para elaborar significações através de outros recursos de linguagem; apontam para um apelo à lembrança e à consagração que a sociedade contemporânea lhe concede, em detrimento de outros sentidos. Centrada na cultura do espetáculo e do consumo, as imagens são elementos fundamentais da propaganda e exprimem histórias que falam também das ideias e significados de determinadas épocas. Desse modo, problematizar diferentes modalidades de elaboração dessas experiências se traduz no “direito à memória”, dos moradores de São Miguel Paulista.
Representada também no lenço e na bandeira do “Grupo Escoteiro Padre Aleixo”, no pavilhão da “Escola de Samba Unidos de São Miguel” e na insígnia do “29º Batalhão da Policia Militar[*11]”, a Capela de São Miguel Arcanjo é veiculada nesses elementos simbólicos de instituições sociais diferenciados e que utilizam como representação um bem patrimonial consagrado da região e, por isso, ajudam a preservar essa memória.
As dimensões desse patrimônio instituído e reconhecido pelos órgãos oficiais de tombamento são imbricadas com as referências culturais dos moradores, que se cruzam, se aliam e, em outros momentos, evidenciam dimensões diferenciadas que se revelam em disputas pela apropriação desses lugares. Nesse sentido, revelando acordos e tensões, a instituição responsável pela Capela de São Miguel Arcanjo, a Cúria Metropolitana de São Paulo, também evidencia ações para sua preservação, como a restauração pela qual a Capela passa desde o ano de 2005, no qual foi lançado o projeto de restauro; também busca a afirmação de determinados grupos em detrimento de outros. As políticas de revitalização da praça, que acabaram demolindo caramanchões, canteiros e palcos, acabam solapando determinadas manifestações populares que lá se evidenciavam.
Nessa perspectiva, o bairro foi percebido como resultado de uma dinâmica social estabelecida pelos moradores, e o que busquei foi compreender e analisar alguns desses processos que estão relacionados à presença da Capela de São Miguel Arcanjo. O espaço do bairro não surgiu, então, como um espaço onde os moradores se juntavam e realizavam ações, mas, sim, como um espaço onde diferentes agentes sociais se posicionam, se relacionam, fazem acordos, disputam, enfim, vivem experiências diversificadas, imbricadas entre si. Tempo e espaço, desta maneira, aparecem como dimensões desse viver urbano em constante transformação. Nesse sentido, é necessário compreender que não é possível pensar as dimensões bairro/cidade de maneira isolada, pois a todo momento percebemos suas interfaces e imbricamentos. Percebemos, inclusive, que história, memória e patrimônio formam um espaço de sentidos múltiplos que envolvem uma cultura plural e conflitante.
Portanto, terminando essas reflexões, tenho de admitir que o trabalho historiográfico também é fruto de uma representação em que estão implícitas emoções e fidelidades do historiador, que realiza escolhas sobre os documentos que pretende explicitar. Portanto, a história será sempre revisionada e reescrita, não se esgotando sua função de iluminar o presente e levar ao aprendizado com as experiências de tempos pretéritos.
Você quer saber mais?
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/
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