Rafael
Augusto Sêga
Bernjamin Constant Botelho
de Magalhães (1836-1891) como ministro da Instrução Pública reformulou todo o
ensino brasileiro de acordo com as ideias de Augusto-Comte.
Não obstante, essa corrente
de pensamento também se faz presente no dístico de nosso maior símbolo pátrio,
a bandeira: Ordem e Progresso. É curioso, mas a tentativa mais efetiva de
colocar em prática a doutrina positivista, uma ideologia tipicamente francesa,
foi realizada em um país latino-americano: o Brasil.
Como
isso aconteceu?
A pergunta exige o
conhecimento de certos aspectos das origens e dos fundamentos do pensamento
positivista ainda na França no século XIX, para mostrar sua chegada e
ascendência sobre o pensamento brasileiro dentro do contexto histórico e
cultural da época.
O avanço científico europeu
do início do século XIX, decorrente da Primeira Revolução Industrial, fez com
que o homem acreditasse em seu completo domínio da natureza. O positivismo
surgiu nessa época como uma corrente de pensamento que apregoava o predomínio
da ciência e do método empírico sobre os devaneios metafísicos da religião.
Nesse sentido, o movimento
intelectual erigido por Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte, ou
simplesmente Auguste Comte (1798-1857), defendia que todo saber do mundo físico
advinha de fenômenos "positivos" (reais) da experiência, e eles
seriam os únicos objetivos de investigação do conhecimento.
Comte sustentava a
existência de um campo de ação, no qual as idéias se relacionavam de forma
lógica e matemática e, por fim, toda investigação transcendental ou metafísica
que não pudesse ser comprovada na experiência deveria ser desconsiderada.
As raízes do positivismo são
atribuídas ao empirismo absoluto de David Hume (1711-1776), que concebia apenas
a experiência como matéria do conhecimento e também a Ilustração, ou
Iluminismo, que apregoava a razão como base do progresso da história humana.
Dessa forma, o positivismo é
fruto da consolidação econômica da revolução pela burguesia, expressa nas
Revoluções Inglesa do século XVIII e Francesa de 1789. As ciências empíricas
passaram a tomar frente às especulações filosóficas meramente idealistas e
Comte buscou a síntese do conhecimento positivo da primeira metade do século
XIX, especialmente da física, da química e da biologia.
Seu objetivo era a
formulação de uma "física" social (a "sociologia") que
reformulasse o quadro social instável decorrente das novas relações de trabalho
do capitalismo industrial.
Na primeira fase de seus
trabalhos, Comte teve como mentor o teórico do socialismo utópico, o conde de
Saint-Simon (Claude-Henri de Rouvroy, 1760-1825). Em sua obra Curso de
filosofia positiva (1830-1842), Comte expõe a base de sua doutrina cujos
alicerces teóricos estão assentados na norma de três estados do desenvolvimento
humano e do conhecimento, o teológico, o metafísico e o positivo.
Na fase teológica o ser
humano entende o mundo a partir dos fenômenos da Natureza dando a eles caráter
divino. Essa fase encerra-se no monoteísmo. Na fase metafísica, a interpretação
do mundo é calcada em conceitos abstratos, idéias e princípios.
Por fim, na fase positiva o
ser humano limita-se a expor os fenômenos e a fixar as relações constantes de
semelhança e sucessão entre eles. Nessa fase, as causas e as essências dos
fenômenos são deixadas de lado para se evidenciarem as leis imutáveis que nos
regem, pois o conhecimento destina-se a organizar e não a descobrir.
O fim da filosofia é a
organização das ciências, hierarquizadas, segundo Comte, em seis. Na base dessa
pirâmide está a matemática, seguida da astronomia, física, química, biologia e
sociologia. Em outra obra sua, Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848),
Comte parte das feições reais do termo "positivo" para atingir uma
significação moral e social maior, a fim de reorganizar a sociedade, com a
supremacia do amor e da sensibilidade sobre o racionalismo.
O apogeu dessa tese é a
religião da humanidade. A filosofia positiva passa, então, a preconizar também
uma teoria de reforma da sociedade e uma religião. A unidade do conhecimento
positivo passa a ser coletiva em busca da fraternidade universal e da
convivência em comum. A junção entre teoria e experiência é baseada no
conhecimento das ações repetitivas dos fenômenos e sua previsibilidade
científica.
Assim, é possível o aprimoramento
tecnológico. O estágio positivo corresponde à atividade fabril e à
transformação da natureza em mercadorias. Se entendermos a ciência como a
investigação da realidade física, o positivo é o objeto e o resultado dessa
investigação. Dessa forma, a sociedade também é passível dessa análise e a fase
positiva será caracterizada pela passagem do poder político para os sábios.
Fragmentação
do pensamento
A segunda fase dos trabalhos
de Comte é representada em sua obra Sistema de política positiva (1851, 1854),
que preconiza a "religião da humanidade", cuja liturgia é baseada no
catolicismo romano, estabelecida em O catecismo positivista (1852).
Destarte, a doutrina
positivista adquire feição religiosa com credo na ciência. Essa divisão do
pensamento comteano também separou seus seguidores em duas correntes: os
ortodoxos, que seguiram Comte em seu período religioso; e os heterodoxos, que
se conservaram perseverantes ao período científico e filosófico do positivismo.
O líder dos heterodoxos,
Émile Littré, autor de Fragmentos de filosofia positiva e sociologia
contemporânea (1876), concebeu o período religioso de Comte como um atraso. Já
o ortodoxo Pierre Laffitte chegou a sacerdote máximo da chamada religião da
humanidade.
As teorias científicas de
Comte sofreram severas críticas de ordem metodológica, principalmente por
desconsiderarem os procedimentos hipotéticos e dedutivos. Entretanto, o
positivismo causou forte eco tanto nas doutrinas utilitaristas e pragmáticas de
vertente americana.
Embora o positivismo seja
julgado metodologicamente ultrapassado por transformar a ciência em objeto de
reflexão da filosofia, a epistemologia comteana é possuidora de consideráveis
princípios filosóficos que tentam determinar o homem em relação a sua atividade
e espaço histórico. Atualmente, traços positivistas são identificados em
diferentes atividades no mundo ocidental, e especialmente no Brasil.
Na verdade, o Brasil, país
latino-americano, se transformou numa segunda pátria do positivismo. O
pensamento positivista chegou ao Brasil em torno de 1850, e foi trazido por
brasileiros que estudaram na França; alguns tinham até mesmo sido alunos de
Comte.
A presença da doutrina
positivista, em sua fase científica, no Brasil, tornou-se visível a partir de
1850, quando apareceu na Escola Militar, depois no Colégio Pedro II, na Escola
da Marinha, na Escola de Medicina e na Escola Politécnica, no Rio de Janeiro.
Já o positivismo de vertente religiosa pôde ser atestado no Apostolado Positivista,
a partir de 1881, fruto da iniciativa de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira.
A atuação do positivismo no
Brasil foi uma reação filosófica contra a doutrina confessional católica, até
então única reflexão intelectual existente no país. Nessa luta no campo das
idéias figuraram também o naturalismo e o evolucionismo.
No Brasil, a marca inicial
do positivismo mais aceita é a publicação do livro de Luís Pereira Barreto As
três filosofias, em 1874, e também, dois anos mais tarde, a fundação da
Sociedade Positivista Brasileira (origem da Igreja da Humanidade) no Rio de
Janeiro. Contudo, o núcleo irradiador do positivismo seria transferido para
Recife, por iniciativa de Tobias Barreto e, depois, Sílvio Romero e Clóvis
Bevilácqua.
O positivismo que se
assenhoreava no Brasil moldava-se ao país e adquiria o perfil de doutrina com
influência geral, e aceita por um grupo reduzido de estudiosos, composto por
duas facções: os ortodoxos e os dissidentes. Miguel Lemos e Teixeira Mendes
lideravam o primeiro, e um número de políticos com visão monárquica
positivista, junto com Luís Pereira Barreto, Tobias Barreto e Sílvio Romero
lideravam o último, e buscavam em Comte a fundamentação teórica para a
República.
O republicanismo brasileiro,
nascido da Convenção de Itu, de 1870, gerou duas alas: a liberal-democrática,
de inspiração americana, e a autoritária, de inspiração positivista. Todavia,
em um primeiro momento, o programa do Partido Republicano estava muito mais
preocupado com o combate objetivo ao Império do que com querelas doutrinárias.
Nessa fase destacam-se os nomes dos chamados republicanos históricos, como
Silva Jardim, Aníbal Falcão e Demétrio Ribeiro.
A atuação doutrinária levada
a cabo por Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891), professor da
Escola Militar e defensor do princípio positivista da valorização do ensino
para alcançar o estado sociocrático, ganha destaque nesse contexto. Contudo, se
para Comte o ensino, no continente europeu, deveria ser destinado às camadas
pobres, no Brasil essa meta foi impossível, devido ao baixíssimo nível de
instrução do proletariado nacional. Assim, a transmissão dos ensinamentos
positivistas acabou se restringindo aos poucos que estudavam nas escolas
militares.
A atividade doutrinária bem
no interior da massa pensante das forças armadas brasileiras foi fundamental
para criar um espírito de corpo na caserna, pois boa parte da oficialidade se
achou imbuída do destino histórico de implantar um regime republicano que fosse
fundamentado na razão e na ciência positivista.
Os republicanos jacobinos,
radicais, combatiam os monarquistas e os republicanos liberais, e apregoavam a
implantação de uma república temporária e ditatorial, com o fim de se alcançar
a sociocracia preconizada por Comte. Ocorreu, assim, uma cisão no movimento
republicano, e até mesmo entre os positivistas, pois no episódio de 15 de
novembro de 1889 sentimos a presença dos positivistas dissidentes (militares
seguidores de Benjamin Constant), em detrimento dos ortodoxos (civis seguidores
da Igreja Positivista).
O positivismo tornou-se uma
filosofia fundamental no debate político no Brasil do século XIX, uma vez que o
regime republicano foi instalado sob sua égide teórica. O 15 de novembro pode
ser considerado o ápice do positivismo no Brasil, em razão da grande quantidade
de adeptos de Auguste Comte que assumiram cargos de relevo no novo regime
(Benjamin Constant chegou a ministro da Guerra).
Foram numerosas as
influências do positivismo na organização formal da República brasileira, entre
elas o dístico Ordem e Progresso da bandeira; a separação da Igreja e do
Estado; o decreto dos feriados; o estabelecimento do casamento civil e o
exercício da liberdades religiosa e profissional; o fim do anonimato na
imprensa; a revogação das medidas anticlericais e a reforma educacional
proposta por Benjamin Constant.
O farol do positivismo no
Brasil seria transferido para o Rio Grande do Sul, onde a instalação do regime
republicano foi sui generis, pois desde o início o novo governo foi dominado
pelos positivistas, liderados por Júlio Prates de Castilhos (1860-1903).
Quando da Proclamação da
República, em 1889, Castilhos recusou o cargo de presidente do Estado, e
preferiu assumir como secretário do governo estadual. Ele estava convicto no
intento de inaugurar uma nova fase positiva na política gaúcha, transformando
as velhas práticas político-administrativas clientelistas do período imperial.
Em 1890, Júlio de Castilhos
elegeu-se deputado no Congresso que iria elaborar a primeira Constituição da
República, e logo identificou-se com a ala ultrafederalista, passando a
defender o projeto político de inspiração positivista.
Em 1891, eleito presidente
do Estado pela Assembléia Legislativa, Júlio de Castilhos redigiu - e fez
aprovar quase que integralmente - a nova Constituição estadual. Era uma Carta
extremamente autoritária, atribuindo ao presidente do Estado poderes
extraordinários, tais como: nomear o vice-presidente, reeleger-se, atribuir
papel meramente deliberativo ao Legislativo estadual e o voto descoberto.
Castilhos pretendia criar no Rio Grande do Sul uma ditadura republicana
comteana, e seus adeptos foram chamados de republicanos.
Do ponto de vista
doutrinário, o positivismo não compartilha os princípios da representação
eleitoral preconizados pela democracia liberal burguesa, e seu princípio de
delegação política por meio da eleição à representação de cargos. Para os
positivistas, o direito ao voto é um dogma metafísico e, dessa forma, Júlio de
Castilhos acreditava na legitimidade do regime republicano em razão de razões
históricas e científicas, e não por motivos metafísicos ou populares.
Com base nesse princípio, os
castilhistas ficaram no poder no Rio Grande do Sul por quase 40 anos, primeiro
com Castilhos, depois com Antônio Borges de Medeiros (1863-1961), que se elegeu
sucessivamente quatro vezes para a presidência daquele Estado, e, finalmente,
em 1928, com Getúlio Vargas (1883-1954).
No plano nacional, Vargas
procurou implantar o positivismo castilhista. Em seus mandatos, notadamente no
Estado Novo (1937-1945), procurou substituir a noção da representação eleitoral
pela da hegemonia científica, na qual a ordem e o fortalecimento de um
dirigente moralmente responsável concebe um regime promotor do bem-estar social
rumo ao progresso.