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domingo, 20 de outubro de 2013

O processo de Joana D’Arc

Mesmo presa, a Donzela foi uma ameaça para seus adversários. Eles arquitetaram um julgamento falacioso para transformar a “enviada de Deus” em discípula de Satã.


 "Joana d’Arc, uma das pessoas de índole mais simples que a história produziu, está em processo eternamente”, escreve o acadêmico Jean Guitton. O inquérito contra a Donzela – para empregarmos um termo jurídico – começou com a sua estada, que se prolongaria por várias semanas, em Poitiers, na França, em março de 1429, no curso das quais os doutos da Igreja e também os juristas do Estado vigiavam permanentemente seu comportamento, inquirindo-a com perguntas insidiosas tanto para tentar atingir sua enorme credibilidade quanto para delinear sua personalidade.

O primeiro veredicto a que chegaram é que não havia nada de inquietante, nem de suspeito a respeito daquela pastora pouco culta que, dizendo-se guiada por vozes, se apresentara diante do delfim afirmando que viera para conduzir os franceses à vitória. Sua boa-fé parecia verdadeira; seu projeto era santo. Talvez a Providência, enfim, tivesse decidido intervir a favor de Carlos VII da França, um rei considerado muito cristão, e de seus súditos. Certamente, o instrumento dessa intervenção poderia surpreender, mas era teologicamente admissível. Era fato – assim mostrava a Bíblia – que o céu se interessava pelo destino dos povos e das nações. Logo, não apoiar a iniciativa da “enviada de Deus” que desejava provar a origem sobrenatural de sua missão por meio de um “sinal” perante a cidade de Orléans, sitiada havia seis meses pelos ingleses, seria dar provas de ingratidão. Parecia absolutamente inevitável, pode-se dizer necessário, sobretudo num momento de angústia, confiar nela.

E o milagre acontece! As palavras da pequena Joana são confirmadas. O cerco de Orléans é desfeito (8 de maio de 1429) e, logo a seguir, três outras cidades do vale do Loire são reconquistadas. Quando os ingleses são derrotados em Patay (18 de junho), a reconquista do reino se acelera – e Carlos VII, conduzido pela Donzela de Orléans (a partir dessa data, ela será conhecida por esse nome), é sagrado rei, na catedral de Reims, no dia 17 de julho, em clima de entusiasmo geral. Mesmo depois de tudo isso, as interrogações continuam: que força se esconde por trás dessas vitórias espetaculares?

A propaganda da Coroa francesa reforçou a dimensão religiosa da personalidade de Joana. A Donzela foi apresentada como uma profetisa que já teria sido anunciada por outros profetas. A resposta veio no mesmo campo da religiosidade, o que começou a traçar o destino da pastora guerreira. Um tratado em latim, redigido por um acadêmico parisiense, sem dúvida especialista em direito canônico, que foi escrito nas últimas semanas de 1429, nos dá o testemunho disso. O objetivo foi responder à obra de Jean Gerson Sobre uma donzela (De quadam puella, 14 de maio de 1429), onde são enumeradas as razões para crer nos propósitos santos de Joana.

No tratado anônimo, as críticas endereçadas a Joana são as seguintes: vestia-se como homem, tinha atitudes belicistas, falsas profecias, idolatria a seu favor e recurso a sortilégios. A cereja do bolo foi apontar como falta de respeito às festas religiosas a tentativa frustrada de Joana de entrar em Paris, dominada por borguinhões e ingleses, em 8 de setembro de 1429, festa da Natividade da Virgem. Tantos motivos levaram esse homem da Igreja a pedir a intervenção da universidade e do bispo de Paris – e do Tribunal da Inquisição também, habilitado a se pronunciar em todos os casos de heresia.

EM BUSCA DE CONFISSÕES Não surpreende que a universidade, cuja autoridade em matéria de teologia permanecia incontestada, e a Inquisição, agindo com ela, tenham pedido o julgamento de Joana, logo após sua prisão pelos borguinhões em Compiègne, em 23 de maio de 1430. É inútil conjecturar que esses dois órgãos tenham sido forçados pelo duque de Bedford, regente inglês na França, a tomar essa posição. A solicitação de investigação foi iniciativa dessas instituições.

Após meses de subterfúgios e negociações, a Donzela foi entregue, enfim, ao rei da França e da Inglaterra. Ela passou a ser sua prisioneira de guerra. Não seria possível julgá-la, condená-la à morte como rebelde, passível de crime de lesa-majestade?

Claro que sim. Mas o impacto de um processo semelhante seria, sem dúvida, negativo aos olhos de uma opinião pública sempre hesitante entre os borguinhões e Carlos VII. Decidiu-se então submeter o pedido das autoridades eclesiásticas para que fosse feito um processo “em matéria de fé”. Por sorte, o lugar preciso onde Joana foi presa se situava na diocese de Beauvais, cujo bispo, Pierre Cauchon, era também um dos pilares da dupla monarquia. Esse prelado, dublê de político, seria encarregado desse processo da Igreja, que ocorreria, por mais precaução, no castelo real de Rouen, que era ocupado muitas vezes pelo jovem rei inglês Henrique VI.

Pierre Cauchon não era um especialista nesse tipo de processo. Ademais, ele sabia quanto o assunto era polêmico. O bispo tomaria muitas precauções para cumprir a missão que lhe fora designada (desqualificar a acusada, neutralizá-la e mesmo eliminá-la) e fazer do processo uma obra comum dos bispos, abades mitrados, teólogos e canonistas, guarnecidos de títulos e diplomas. Era necessário que a condenação fosse, de certa forma, inatacável no campo do direito, já que, por certo, as acusações de falta de isenção se levantariam.

Ao lado de Cauchon estavam um inquisidor (Jean Le Maître), um promotor eclesiástico (Jean d’Estivet, chamado o Beneditino) e três escrivães públicos. Certamente, Joana, sozinha, contra esse poderoso tribunal, estava longe de ter chances reais de absolvição nesse processo. A isso se somavam o rigoroso encarceramento, a falta de um advogado de defesa, testemunhas de acusação não identifi cadas, nenhuma investigação de moralidade, e, sobretudo, privação de comunhão, o que para ela representava um intenso sofrimento espiritual. Mas essa era a prática da Inquisição, que se baseava na presunção de culpabilidade. Estar sob veementes acusações de ser herege (como era o seu caso) já era ser considerado culpado por heresia. Uma vez o tribunal instalado no castelo do rei, o processo começou (21 de fevereiro de 1431).

A reviravolta aconteceu quando Cauchon e seus assessores compreenderam que Joana se recusaria resolutamente a submeter as suas vozes e as suas revelações à apreciação da hierarquia da Igreja, sobretudo às pessoas hostis e parciais que estavam diante dela. À sua maneira, ela os declarava incompetentes. Parecia aceitar que seu caso fosse levado ao papa, em Roma, ou até mesmo ao concílio geral que deveria se reunir, em breve, em Basileia. Reivindicada de maneira explícita, essa insubmissão a fez, consequentemente, ser expulsa da Igreja. Ela não passava de um membro podre do corpo místico de Cristo; para a salvação do povo cristão, era necessário arrancá-lo. A sua personalidade polêmica, obstinada, ajudou aqueles inquisidores a transformá-la em herege.

Essa era a situação em 24 de maio de 1431, dia em que, em praça pública, perto da abadia de Saint-Ouen, extenuada, ela resolveu, enfim, após o desenrolar de uma cena patética, negar as suas vozes e se submeter à Igreja. Em seguida a essa aparente abjuração, ela escapou in extremis da fogueira e foi reconduzida à sua prisão para fazer penitência com pão e água.

VIGIADA POR SOLDADOS INGLESES O caso, na esfera civil, poderia ter terminado por aí. Mas, talvez, decepcionada por ainda se encontrar presa (a possibilidade de uma prisão sob o comando da Igreja, menos severa, onde ela seria vigiada por mulheres em vez de por soldados ingleses que nutriam ódio por ela, a animara a abjurar), ela afirmou que seguia ouvindo vozes e, como sinal da sua mudança, tornou a vestir roupas de homem, misteriosamente deixadas à sua disposição pelos carcereiros ingleses.

Esse acontecimento gerou um segundo processo, mais sumário: cometendo seu erro mais uma vez, ela foi classificada como relapsa. A partir daí, foi entregue ao braço secular, isto é, ao poder real, que a condenou à fogueira na praça Vieux-Marché, no dia 30 de maio de 1431. O poderoso cardeal Henri Beaufort, bispo de Winchester, tio-avô do rei Henrique, assistiu ao seu fim. Nos bastidores, ele acompanhou de muito perto o desenrolar do processo. Certamente, a dupla monarquia jamais considerou cabível a declaração de inocência da prisioneira, seguida por eventual liberação. Ela causara muitos danos aos ingleses, e o seu potencial de liderança subsistia.

Podia-se, por outro lado, questionar a posição de Cauchon: ele era apenas um executor desprovido de autonomia ou, como homem da Igreja, acreditava ser possível que a culpada fosse condenada a uma simples pena de prisão, com a condição de que reconhecesse ter deliberadamente enganado o povo, por ter sido enganada pelo diabo?

De início, o prelado não suspeitou da importância que ela atribuiu às vozes, ou seja, ele ignorava a natureza, senão a sua existência, e não entendia, portanto, a tranquila determinação de defender seu rei e assumir a sua missão. Ela podia ter negado imediatamente. A resistência surpreendeu. Após a abjuração, Cauchon se perguntou se ela continuaria a se arrepender, se esse ato não fora causado simplesmente pelo medo da fogueira. Com o benefício da dúvida, pode-se conjecturar que Cauchon chegou a ficar satisfeito com a abjuração de 24 de maio.

UM PERIGO PARA A FÉ E O PODER A questão para a dupla monarquia não era apenas condená-la à morte. Era também necessário convencer a opinião pública, na França e fora da França, da legitimidade dessa condenação. Cartas foram redigidas, algumas em latim, outras em francês, especialmente para o rei do Sacro Império Romano-Germânico, Sigismundo de Luxemburgo, o duque da Borgonha, o papa e os cardeais. O que essas cartas diziam?

Aquela mulher, devido à grande popularidade, representava um perigo para a fé, os poderes e a sociedade; ela era cruel e presunçosa, consentindo que seus seguidores a idolatrassem, por orgulho; estimava-se acima das autoridades eclesiásticas, mesmo as mais altas, dirigindo-se diretamente a Deus, de quem se julgava enviada.

Em um momento, diziam as missivas, arrependeu-se de seus erros, e a Igreja, na sua misericórdia, perdoou-a. Infelizmente, essa abjuração era apenas um logro, do qual ela voltou atrás. Então, a Igreja pronunciou sua sentença definitiva. É verdade que, antes de morrer, na última reviravolta do processo, ela confessou que as vozes a enganaram e se entregou à Igreja, a única capaz de julgar a natureza dessas vozes.

Nada mostra que essa propaganda tenha atingido o seu objetivo. O que pensava Carlos VII, que permaneceu sem reação durante todo o processo? Talvez, a seus olhos, Joana não pudesse mais ser controlada e se tornasse mais nociva do que útil, no caso de uma eventual aproximação com a Borgonha; talvez, seus conselheiros eclesiásticos tenham-no persuadido de que os fracassos sucessivos que ela sofreu desde o assalto frustrado em Paris, que ela, aliás, tinha previsto, mostravam que Deus não estava mais a seu lado.

Conhece-se o desenrolar do processo graças à redação, em latim, feita algumas semanas ou meses após sua conclusão, dos atos (um original mais cinco cópias autênticas, das quais três chegaram até nós). A autoria dessa redação é de Thomas de Courcelles, um jovem universitário com um futuro promissor, ajudado pelo consciencioso Guillaume Manchon, um dos três escrivães. Com esse documento em vários exemplares (um caso único), a dupla monarquia entendia dispor de um bom dossiê, em caso de contestação da parte de Carlos VII junto ao papa ou ao concílio de Basileia.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Ivan, o primeiro czar.

Por seu comportamento bipolar, oscilando entre a fúria e a penitência, ganhou a alcunha O Terrível. Com inteligência e dinamismo, ele modernizou e expandiu a Rússia, transformando-a numa potência.


Em seus últimos dias, o temido senhor da Rússia oscilava entre razão e loucura, devassidão e piedade, e dava ordens entre suas orações. Ivan IV, o Terrível, e sua ama de leite, óleo sobre tela, Karl Gottlieb Wenig, 1886.

Filho de Vassili III, grão-duque de Moscou, e de sua segunda mulher, Helena Glinskaya, Ivan foi o penúltimo representante da dinastia Rurik. Com a morte de Vassili III em 4 de dezembro de 1533, o menino de 3 anos foi proclamado grão-príncipe de Moscou. Sua mãe foi regente da Rússia 1538, quando morreu, fato que reacendeu as disputas entre várias facções da nobreza pelo poder. Conflitos sanguinários entre vários clãs de boiardos (nobres russos) se estenderam até 1547, deixando marcas profundas no jovem Ivan, que sobrevivia como podia entre terror e horror.

Após a morte da regente Helena Glinskaya, em 1538, lutas sangrentas opuseram os boiardos na conquista pelo poder. Ivan, filho do grão-príncipe Vassili III, sobrevivia como podia entre terror e horror. Ele lembrou em uma carta: “Eu estava com 3 anos. Meu irmão Yuri tinha apenas 1 ano de idade. Ficamos órfãos, com a nossa mãe, a piedosa czarina Helena, viúva e infeliz ela também. Parecia que estávamos em meio às chamas. Foi então que vocês, os boiardos desleais, começaram a nos oprimir com seus inúmeros golpes. Quando a piedosa imperatriz Helena deixou o reino terrestre, ficamos, meu finado irmão Yuri e eu, completamente órfãos, sem ninguém para nos ajudar. Eu tinha então 8 anos. Nossos súditos viram os seus desejos se tornarem realidade: receberam um império sem chefe. Eles nos ignoraram, seus soberanos, e se precipitaram para conquistar riquezas e honrarias. Quanto a nós e a nosso finado irmão Yuri, fomos criados como estranhos ou mendigos. Quantas privações sofremos, tanto nas roupas como na alimentação! Não nos davam nenhuma liberdade, nunca fomos tratados como convém tratar as crianças. Vivemos perseguidos e oprimidos, e a perseguição crescia dia a dia, hora a hora”.

Ivan demonstrou uma maturidade excepcional e um perfeito domínio da língua. A beleza do seu estilo e seu talento literário fizeram dele um dos grandes escritores da sua época, e, sem dúvida nenhuma, o mais talentoso de todos os monarcas russos. Sua erudição religiosa era impressionante, sua memória, fenomenal. Escreveu uma grande quantidade de epístolas e textos litúrgicos, além de compor várias peças musicais.

Os anos vividos sob a tutela dos boiardos aguçaram seu ressentimento e sua crueldade: “Quando completamos 15 anos, começamos a governar nosso império por nós mesmos”. Pediu que fosse consagrado como czar de toda a Rússia no dia 16 de janeiro de 1547, na catedral de Moscou. O metropolita Macário entregou-lhe as insígnias do poder: a cruz, a pelerine e a coroa de Monômaco.

O título czar seria oficializado em 1561, por meio de um rescrito do patriarca de Constantinopla. No dia 3 de fevereiro de 1547, Ivan casou-se com Anastasia Romanovna. Graças à sua influência benéfica, ao Conselho de Eleitos presidido por Alexis Adashev, guiado pelo metropolita Macário, o príncipe Andrei Kubsky e o padre Silvestre, Ivan IV reinou com sabedoria e eficiência.


Após assassinar o filho e herdeiro, Ivan Ivanovich, o czar exibiu sinais cada vez mais claros de decadência física e mental. Ivan, o Terrível, e seu filho em 16 de novembro de 1581, óleo sobre tela, 1885, Ilya Efimovich Repin.

Nervoso, irascível, despótico e astuto, ele surpreendia por sua sagacidade, seu senso apurado de análise e de diplomacia, suas qualidades de estrategista, sua vontade de centralização do poder e suas opiniões políticas. Em 1548, dissolveu o Conselho de Eleitos e constituiu um Conselho Escolhido dirigido pelo pope (sacerdote ortodoxo) Silvestre e Alexis Adashev. “Nenhum príncipe da cristandade é mais temido e amado por seu povo. Dois pensamentos o consumiam: servir a Deus e esmagar os inimigos”, relatou um de seus contemporâneos.

Em 1550, o czar convocou os primeiros Estados Gerais (zemski sobor) de todas as províncias da Rússia. Foi a primeira assembleia na qual ele se dirigiu ao povo: “Eu era como surdo e mudo na minha lamentável infância porque eu não ouvia os lamentos dos pobres e as minhas palavras não suavizavam seus males. Mas posso prometer-lhes que saberei preservá-los da opressão e do saque. A partir deste dia, serei seu juiz e defensor”. Ele promulgou um código de vida doméstica, o Domostroi, elaborou um novo código de leis, instituiu auxílios para os pobres e os inaptos para o trabalho. Criou o corpo dos Streltsy (a guarda de elite dos czares), cujos membros eram recrutados entre os homens livres e de viam servir a vida toda. O concílio dos Cem Capítulos reorganizou a vida religiosa em 1551. A elaboração e a adoção do código administrativo foram realizadas em 1555-1556. O primeiro alfabeto eslavo foi publicado em 1574.

EXPANSÃO TERRITORIAL Porém, mais do que tudo, Ivan queria unificar o país e conquistar novos territórios. O canato (reino turco ou mongol dirigido por um khan) de Kazan intimidava as populações e controlava a rota do rio Volga usada pelos comerciantes. Com um exército de 150 mil homens e 150 canhões enormes, Ivan IV desmantelou o canato em 1552. Em memória dessa vitória, foi construída em Moscou a catedral da Intercessão da Virgem. A conquista do canato de Astracã, em 1556, fez do Volga um rio inteiramente russo.

O Bascortostão e a Chuváchia uniram-se à Rússia em 1557. Decidido a dar ao país uma saída para o mar Báltico, em 1558 Ivan iniciou a Guerra da Livônia, contra os poloneses e os suecos. A guerra contra a Suécia começou em 1567. A cidade de Novgorod foi conquistada em 1570. De acordo com Skrynnikov: “Foi um terror de grande amplitude, em especial para com os habitantes de Novgorod. Durante o seu reinado, Ivan IV teria mandado executar de 3 mil a 4 mil pessoas”. O inimigo não estava muito atrás. Em 1571, o khan da Crimeia, Devlet Giray, marchou sobre Moscou. Os tártaros atacaram a cidade, queimando e exterminando tudo o que viam pela frente. Pouco importava, reconstruía-se! A expansão do território era o grande negócio do temido czar.


No dia em que, segundo os astrólogos, seria o de sua morte, Ivan pediu para se tornar monge e faleceu logo em seguida. Czar Ivan IV, o Terrível, pede a Komily para ser admitido entre os monges, óleo sobre tela, Kludiy Vasilevich Lebedev, século XIX.

Depois de ter cruzado os montes Urais e combater os tártaros nas margens do rio Tobol, o cossaco Yermak conquistou a Sibéria em 1581, acrescentando aquela terra gelada à Coroa da Rússia. Um tratado de paz com a Polônia, em 1582, e outro com a Suécia selaram as diferenças. Louco de dor após a morte da czarina Anastasia em 1560, Ivan saciou sua sede de vingança na mais extrema violência. Prometeu cortar a cabeça dos oponentes. Incentivado pelos seus favoritos, Basmanov, Chybotovi, Saltykov e Viazemski, na sua desconfi ança doentia, seu abuso de poder, sua luxúria e sua crueldade, ele abandonou a capital no dia 3 de dezembro de 1564 e se retirou para Alexandrovskaia Sloboda, na província de Vladimir. Anunciou sua decisão de abdicar no dia 3 de janeiro de 1565. Dirigiu para o povo um apelo contra os boiardos.

O arcebispo Pimen de Novgorod foi buscá-lo. Com a mente atormentada pela paranoia, o czar voltou para o Kremlin como autocrata, no dia 2 de fevereiro de 1565. Decretou: “Todos os soberanos russos são autocratas e ninguém pode criticá-los. O monarca pode exercer sua vontade sobre os escravos que Deus lhe deu”. Seu poder era absoluto e ilimitado. Para se proteger dos boiardos, fundou o Oprichnina (guarda pessoal do czar), em 1565. Os oprichniki, membros dessa guarda, vestidos de negro, usavam uma cabeça de cachorro e uma vassoura penduradas em suas selas, símbolos da sua função: “Devorar e varrer todos os boiardos desleais”. Liderando 6 mil homens, Grigori Maliuta Skuratov espalhou o terror. “Foi então que começaram as decapitações”, disse a crônica. Os oprichniki pilharam, massacraram e exterminaram praticamente toda a população de Novgorod, mais de 15 mil pessoas, durante o pogrom de 1570. O Oprichnina seria dissolvido em 1572.


Depois de cruzar os Urais e combater os tártaros às margens do Tobol, o cossaco Yermak conquistou a Sibéria em 1581, acrescentando aquela terra gelada à coroa da Rússia. A conquista da Sibéria por Yermak, óleo sobre tela, Vassili Ivan Surikov, 1895.

Somente um homem se opôs ao czar, denunciando seus abusos: o metropolita Felipe. O concílio interveio. Filipe consentiu em não questionar o czar. Por um ano, o terror cessou. Mas em 1567, Ivan acusou os boiardos de traição. Cortou em pedacinhos homens, mulheres e crianças. Filipe não conseguia mais trazer Ivan de volta à razão. Negou-lhe a bênção durante um culto, censurou a violência e contestou sua ideia de monarquia. Expulsou da igreja os homens que haviam sequestrado as mais belas mulheres de Moscou para que fossem violentadas pelo czar e seus oficiais, em julho de 1568.

Louco de raiva, Ivan IV convocou um concílio a fim de julgar o metropolita. Filipe foi deposto e condenado à prisão perpétua por bruxaria. Por ordem do czar, Grigori Maliuta, executor do trabalho sujo, estrangulou-o em 1569. Tomado por novo capricho, Ivan renunciou ao trono em 1575 e abdicou em favor do príncipe tártaro Simeão, neto do khan Akhmat e filho de Bekbulat. Instalou-o no Kremlin, deu-lhe todo o poder e se retirou na província. O “czar” Simeão substituiu Ivan durante um ano.

Depois de cruzar os Urais e combater os tártaros às margens do Tobol, o cossaco Yermak conquistou a Sibéria em 1581, acrescentando aquela terra gelada à coroa da Rússia. A conquista da Sibéria por Yermak, óleo sobre tela, Vassili Ivan Surikov, 1895
Ivan casou-se novamente em 1561, com Maria Temrjukovna, filha do khan Temryuk, que faleceu no dia 1º de setembro de 1569. Como o czar não podia ficar sozinho, foi organizada uma festa de apresentação de noivas. Mais de 2 mil jovens competiram. Ivan escolheu Maria Vasilyevna Sobakina, filha de um comerciante de Novgorod. Ela se tornou sua esposa no dia 28 de outubro de 1571 e morreu durante as celebrações do casamento, em 13 de novembro.

O viúvo afundou na devassidão. Não contente com suas inúmeras conquistas femininas, ele se mostrava ao lado do seu favorito, Basmanov. No auge da sua loucura sanguinária, escolheu Ana Alexaievna Koltovskaia. Casou-se com ela em 1572 e, depois, trancou-a em um convento, sob o pretexto de que ela emagrecera e ele não gostava de magras.

Átila, o Huno: um animal político.

Talvez o maior paradoxo da imagem do líder “bárbaro” seja o de que, em verdade, ele era melhor diplomata do que general de guerra.


 Átila e suas hordas invadem a Itália e as artes, Eugène Delacroix, c.1843, óleo sobre tela, Palais Bourbon.

O rei sabe quem ele mantém ao seu redor. Culto, fala latim e grego. Ele prova ser um debatedor habilidoso e conduz seus homens com mão de ferro e luvas de pelica. Bem longe daquilo a que o termo “bárbaro” remete. Tendo escrito um século após a morte do rei dos hunos, o historiador Jordanes oferece uma imagem ambígua do monarca: “Átila amava a guerra, mas era capaz de controlar sua própria violência”. Sem negar seu gosto pela conquista e pelas pilhagens, ele lembra que Átila era também um animal político que se servia, muitas vezes, de meios sutis.

Governar consiste, em primeiro lugar, em saber se cercar. Para receber os melhores conselhos, Átila reuniu ao seu redor uma corte tão numerosa quanto original. Ela era composta por hunos nobres, como o seu braço-direito Onegésio ou um certo Berik, que possuía um vasto comando territorial, mas também por chefes dos povos germânicos, seus aliados, aos quais Átila atribuía extensas responsabilidades. Entre eles, o ostrogodo Teodomiro, pai daquele que viria a se tornar o rei Teodorico, o Grande, conquistador da Itália.

Átila deixava o comando de seus exércitos nas mãos dos bárbaros, mas incumbia os romanos das tarefas administrativas. Assim, dois de seus secretários sucessivos tinham o mesmo nome, Constâncio – o primeiro era gaulês, o segundo, italiano. Sob sua influência, a corte empregou um pequeno corpo de intérpretes. Quanto à chancelaria real, esta foi confiada a Orestes, um aristocrata da província romana da Panônia. Após a morte de Átila, Orestes retornou ao território romano, recebendo importantes funções militares até assumir o controle do Império, em 475.

MESTRE DAS ARMAS PSICOLÓGICAS Se Átila parecia ter talento para detectar personalidades notáveis, seu círculo heterogêneo não deixava de ser um produto do acaso. Seu bobo da corte, Zercon, era um mouro, anão e poliglota, que pertencera a um general romano até ser “tomado” pelos exércitos hunos. Os prisioneiros de guerra que demonstravam talentos especiais se beneficiavam de um tratamento diferenciado. O prisioneiro romano Rusticius escapou da escravidão por ser capaz de escrever cartas diplomáticas.


 Átila chegou a acampar diante das enormes muralhas de Constantinopla e  planejava outra campanha contra a capital bizantina quando a morte o surpreendeu, no início de 453.

Átila governava sua corte com um misto de doçura e violência. Aqueles que ele queria bajular ganhavam presentes, elogios, tinham lugares preferenciais à mesa e recebiam até mesmo a promessa de ricos casamentos. Eventualmente, alguns de seus auxiliares eram encarregados de partir em delegações a Constantinopla. Eles podiam estar certos de uma grande recepção e de voltarem carregados de presentes. Por outro lado, Átila era implacável com traidores. Assim, mandara crucificar seu primeiro-secretário, suspeito de desviar um lote de cálices preciosos. Incutir o terror era útil ao rei: enquanto Bizâncio tentava subornar sua corte na tentativa de assassiná-lo, o complô acaba sendo denunciado por seu conselheiro Edika tamanho o seu medo da retaliação, caso o plano desse errado.

No que concerne às legações estrangeiras, Átila mostrava-se um interlocutor hábil. Os embaixadores recebiam uma enxurrada de insultos ou de adulações; no decorrer da discussão, o rei os ameaçava da pior das mortes, antes de assegurá-los de que, a seus olhos, eles eram sagrados. Desconcertados, os diplomatas se viam em uma posição frágil para conduzir as negociações. Átila se aproveitava também de qualquer oportunidade para usar suas armas psicológicas. Seus visitantes retornavam cobertos de presentes suntuosos mas, ao longo do caminho de volta, eram obrigados a assistir ao suplício de homens culpados de traição.

Em matéria de política externa, era um oportunista. Suas relações com o Império Romano do Oriente tinham um único objetivo: conseguir o máximo de riqueza. Na maior parte das vezes, ele se contentava em recolher tributos: para isso, multiplicava as missões diplomáticas, ameaçava seus interlocutores, exigia que as disposições dos tratados anteriores fossem respeitadas... E se porventura o pagamento dos impostos fosse interrompido, ele não hesitava em recorrer à guerra. Violenta e breve, esta não terminava com uma conquista, mas com um acordo financeiro mais favorável do que o anterior.

Resta saber se a diplomacia de Átila era realmente eficaz. Ele parece ter subestimado os recursos que o império podia recolher. Na verdade, os tributos pagos não arruinavam Constantinopla, tampouco prejudicavam seu potencial militar. As repetidas exigências dos hunos e suas múltiplas depredações acabaram exasperando, porém, a opinião pública bizantina. Átila terminou contribuindo assim para que adeptos de métodos mais duros chegassem ao poder. Em 450, Marciano subiu ao trono, fazendo da eliminação dos hunos a primeira meta de seu reinado.


O saque de Aquileia (imagem) ocorreu em 452 e foi realizado pelos hunos sob a liderança de Átila.

Átila parecia mais confortável com os romanos ocidentais. Sem escrúpulos, ele acolhia em sua cor te personalidades contrárias às autoridades vigentes. Como Eudoxo, um líder dos camponeses gauleses que se rebelou contra a carga tributária e passou para o lado dos hunos em 448. O rei criou laços também com a princesa romana Honória, irmã do imperador Valentiniano III. Ela se ofereceu ao rei huno em casamento. Seu “esposo” reivindicou então direitos sobre o Império do Ocidente.

Os gauleses eram bárbaros?

Esse povo que não tomava banho, não conhecia as letras e até praticava sacrifícios humanos precisou ser conquistado por Roma para conhecer a civilização, certo? Errado!


Vercingetorix joga suas armas aos pés de César, óleo sobre tela, Lionel Noël Royer, 1899. Imagem: MUSEU CROZATIER, LE PUY-EN-VELAY.

O senso comum prega que os gauleses eram um bando de guerreiros frustrados, saqueadores e brigões até que Júlio César os transformou em um povo civilizado sob a égide de Roma. Embora estivessem divididos em comunidades que alimentavam disputas constantes, os gauleses obedeciam a instituições e costumes semelhantes. Recentes descobertas arqueológicas mostram uma civilização de características próprias.

A sociedade era formada por tribos, unidade basilar que reunia várias famílias. Elas eram lideradas por um rei, que se mantinha cercado de uma aristocracia guerreira no comando de uma plebe composta de artesãos, camponeses e escravos. Muito cedo trocas comerciais se estabeleceram através do Mediterrâneo, notadamente com os gregos.

Os gauleses praticavam a salga dos alimentos para conservá-los, em particular da carne de porco. Eles desenvolveram a agricultura usando uma espécie de ancestral da ceifadeira, uma grande caixa com rodas dentadas puxada por um boi, enquanto os romanos ainda se serviam de foicinhos. Eles inventaram o tonel, recipiente mais cômodo que a ânfora para o transporte e a conservação do vinho. O artesanato era, contudo, o domínio no qual sobressaíam. Embora suas peças de cerâmica sejam famosas, foi na ourivesaria e na produção de instrumentos de ferro que eles se tornaram mestres, como provam as fi velas e outros broches cuja produção demonstra uma real preocupação estética. Isso também é prova de bom conhecimento dos minerais e domínio das difíceis técnicas exigidas na sua extração.

Além disso, os gauleses deram grande importância à aparência e ao asseio. Adotaram as bragas, tipo de ancestrais da calça, e inventaram o sabão à base de cinzas e de sebo – embora fosse usado principalmente para lavar as longas cabeleiras típicas dos gauleses. Os druidas, que exerceram um papel primordial na sociedade gaulesa, praticavam a medicina, e a descoberta de escalpelos e lancetas em suas tumbas levam a crer que tinham noções de cirurgia. Eles se interessavam pelo cálculo, pela geometria e pela astrologia no intuito de determinar os locais de cultos e elaborar calendários.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Psicopatas S.A.



Ele vai a todo happy hour, é companheiro de cafezinho e ouve você reclamar do salário. Não confie tanto nesse colega de firma - é 4 vezes mais comum encontrar psicopatas nas empresas do que na população em geral.

Luana conseguiu o emprego com que sempre sonhou. Era em uma empresa farmacêutica conhecida por seu ambiente competitivo, mas também por bons salários e chances de crescer profissionalmente. Nova no escritório, logo ficou amiga de Carlos, um sujeito atencioso de quem recebeu até umas cantadas.

Em poucos meses, apareceu a oportunidade de Luana liderar seu grupo na empresa. Parecia bom demais não fosse uma inquietação ética. Ela desconfiava que a companhia garantia a venda de seus produtos graças a subornos a médicos. Isso incomodava tanto Luana que, durante um intervalo para um lanche, ela desabafou com o amigo Carlos. Ele também parecia indignado com a situação. Seria uma conversa normal entre colegas de trabalho - se Carlos não tivesse se aproveitado. Em um momento de distração de Luana, ele pegou o celular da colega e ligou para o chefe de ambos. Caiu na secretária eletrônica, que gravou toda a conversa seguinte entre Carlos e Luana. A moça, grampeada, chegou a questionar se o chefe poderia ter algo a ver com os subornos. Acabou demitida por justa causa. Carlos tomou o lugar de líder que seria dela.

A história é real (os nomes foram trocados). E esse Carlos, um cretino, não? Na verdade é pior: ele age exatamente como um psicopata. Há 69 milhões de psicopatas no mundo, o que dá 1% da população em geral. Então, no fim da história, Carlos faz picadinho de Luana, certo? Errado. Sim, há muitos psicopatas violentos, como Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes ou Pedrinho Matador, que afirmava ter assassinado mais de 100 pessoas. Por isso a cadeia é um dos dois lugares em que se encontram muitos psicopatas. Eles são 20% da população carcerária e 86,5% dos serial killers. Mas um psicopata não necessariamente vira assassino. Na verdade, ele vai atrás daquilo que lhe dá prazer. Pode ser dinheiro, status, poder. É por isso que outro lugar fértil em psicopatas, além da cadeia, é a firma.

Pode ser uma empresa pequena, como a loja de sapatos da esquina. Pode ser uma fundação, uma escola. O importante é que o psicopata enxergue ali a chance de controlar um grupo de pessoas para conseguir o que quer. Mas poucos lugares dão tanta oportunidade para isso do que uma grande companhia.

"Psicopatas são atraídos por empregos com ritmo acelerado e muitos estímulos, com regras facilmente manipuláveis".



 Paul Babiak, psicólogo e  especialista em comportamento no trabalho
Até 3,9% dos executivos de empresas podem ser psicopatas, segundo uma pesquisa feita em companhias americanas. Uma taxa de psicopatia 4 vezes maior do que na população em geral. Eles não matam os colegas, mas usam o cargo para barbarizar. Cancelam férias dos subordinados, obrigam todo mundo a trabalhar de madrugada, assediam a secretária, demitem sem dó nem piedade. Isso quando não cometem crimes de verdade. Um terço das companhias sofre fraudes significativas a cada ano, de acordo com uma pesquisa de 2009 realizada pela consultoria PriceWaterhouseCoopers, que analisou 3 037 companhias em 54 países. Por causa dessas mutretas, cada uma perde, em média, US$ 1,2 milhão por ano. Muitos desses golpes podem ser obra de psicopatas corporativos.

"Eles são capazes de apunhalar empregados e clientes pelas costas, contar mentiras premeditadas, arruinar colegas poderosos, fraudar a contabilidade e eliminar provas para conseguir o que querem", diz Martha Stout, psiquiatra da Escola Médica de Harvard por 25 anos e autora do livro Meu Vizinho É um Psicopata. E fazem isso na cara dura, como se não estivessem nem aí para o sofrimento alheio. É que, na verdade, eles não estão ligando nem um pouco mesmo.

Como os colegas mais violentos, os psicopatas de colarinho branco não pensam no bem-estar dos outros, nem sentem culpa quando pisam na bola. Por isso passam por cima de regras, estejam elas formalizadas em leis ou somente estabelecidas pela ética e pelo senso comum. Acontece que o cérebro deles é diferente de um cérebro normal. No caso do psicopata, a atividade é maior nas áreas ligadas à razão do que nas ligadas à emoção, o que o faz manter-se impassível diante de tragédias - seja um gatinho em apuros, seja uma chacina em um orfanato. Como não consegue se colocar no lugar dos outros, o psicopata usa e abusa dos amigos - puxa o tapete dos colegas sem se preocupar com código de conduta corporativo ou consequência na vida alheia.



Pega na mentira

Graduação em universidade concorrida. Pós-graduação no exterior. Livros publicados. "Empregadores sabem que 15% ou mais dos currículos enviados para cargos executivos contêm distorções ou mentiras deslavadas", afirma Babiak. "Psicopatas fazem isso. Podem fabricar um histórico feito sob medida para as exigências do trabalho e bancá-lo com referências falsas, portfólio plagiado e jargão apropriado." Claro, com algumas perguntas específicas um entrevistador é capaz de desmascarar candidatos mentirosos. O problema é que um psicopata tem tudo para deitar e rolar em uma entrevista de emprego.
Muitas vezes o entrevistador não está tão preocupado com o conhecimento técnico do candidato. Quer mais é saber se ele é capaz de tomar decisões, relacionar-se com pessoas, motivar equipes. "A ‘química’ entre candidato e avaliador tem muita importância", diz o psicólogo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A DISCRIMINAÇÃO DOS SABERES NA MANUTENÇÃO DO MITO-PROFESSOR: A construção de uma estética do saber como limitadora do conhecimento e ideologização da relação professor-aluno


Professor autoritário padronizando seus alunos. Imagem: Arquivo Pessoal CHH.

Alessandra Felix de Almeida[1] 

RESUMO: Trataremos de uma pesquisa bibliográfica exploratória com o objetivo de analisar uma possível postura de superioridade do professor em relação aos alunos, no que diz respeito à valorização dos saberes que norteiam as suas atividades. Ao percorrer as literaturas brasileiras do século XIX nos deparamos com a figura de um professor distanciado dos alunos, por conta de uma hierarquia, tal figura ganhava proximidade apenas pela violência, tanto física quanto moral. Percebemos assim, a construção de um mito, que por hipótese ainda está entre nós, e da necessidade de sua manutenção para legitimar distinções entre aqueles cujo saber é validado por uma estética acadêmica e aqueles cujo saber “desnormatizado” não tem possibilidades de atribuição de valor no que tange ao desenvolvimento educacional.
1. INTRODUÇÃO
A proposta deste artigo originou-se de uma frase de um professor (doutor na área das Ciências Sociais) quanto à participação dos alunos na elaboração das suas aulas, segundo o professor “os alunos não sabem fazer isso”. Sendo assim, em oposição aos que não sabem, obrigatoriamente há os que sabem, e aqui, estes seriam os professores. Araujo e Schwartzman (2002) apresentam que mesmo diante da precariedade do ensino, comprovada por dados, os professores atribuem importância e eficiência às suas atividades, sendo que qualquer desempenho insatisfatório é de responsabilidade dos próprios educandos. Aquino (2005) avalia este discurso como sendo o mesmo que “dizer que o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os delitos”, Aquino (2005) atribui a este discurso “a lógica dos mitos”, sendo o maior deles “o de responsabilizar o alunado”. Temos assim um estado de coisas que pressupõe como condição única a submissão, pois o mesmo aluno que não é capaz de aprender, também não é capaz de ensinar: “não sabe fazer isso, nem aquilo”, o professor aparece aqui envolto em uma aura celestial, mitológica e cristalizada em nossa vivência educacional.
Cena do Clipe 'The Wall' do grupo Pink Floyd.
Se há uma manutenção dessa forma mitológica do saber e do professor, esta pode ser legitimada, no âmbito da normatização, por um sistema burocrático racional, no entanto há o âmbito das nossas paixões que, nos termos de Foucault (2010), pode ser entendido como um fascismo, não aquele de Hitler ou Mussolini, mas sim “o fascismo que está em todos nós, que persegue nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 2010: 105).
2. A PALMATÓRIA DO COSTUME E O MITO QUE LEGITIMA
O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de sua visita, e apresentou o pequeno ao mestre. “Tem muito boa memória, soletra já alguma coisa, não lhe há de dar muito trabalho”, disse com orgulho. “E se mo quiser dar, tenho aqui o remédio, santa férula!” disse o mestre brandindo a palmatória. O compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim. “É verdade: faz santos até às feras, disse traduzindo. Segunda-feira cá vem, e peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre despedindo-se”. Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se julgava muito bem. “Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?” O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então (ALMEIDA, 1987: 58).
[O professor Policarpo] Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem [...]. Na verdade, o mestre fitava-nos [...] metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões [...]. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada no portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, dependurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca (ASSIS, 2001: 33).

“Memória de um Sargento de Milícias” (ALMEIDA, 1987) e “Conto de Escola” (ASSIS, 2001) foram publicados, respectivamente, em 1853 e 1896. Nos trechos reproduzidos acima podemos entender como se apresentava a figura do professor. Nos dois casos é possível perceber dois aspectos de poder disciplinador, o primeiro físico através do recurso da palmatória, e o segundo moral, através do constrangimento e do exercício da força do costume.
Este artigo não tem como objeto uma análise literária, embora a literatura seja um produto social, composta por fatos associativos, onde as obras acabam por expressarem certas relações dos homens entre si, e que, “tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos” (CANDIDO, 2010: 29, 147). Assim, ao iniciar este artigo com citações literárias, procurou-se apresentar como a relação professor-aluno se manifesta na comunicação para com os grupos, visto que “toda obra brota de uma confidência, um esforço de pensamento, um assomo da intuição, tornando-se uma ‘expressão’” (CANDIDO, 2010: 147).  Para que haja literatura e a sua respectiva comunicação social, é necessário um compartilhamento de experiências e impressões da realidade vivida, “um sistema de valores que enforme a sua produção e dê sentido à sua atividade” (CANDIDO, 2010: 147). A obra literária traz em si aspectos de integração e diferenciação
A integração é o conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo ou no grupo a participação nos valores comuns da sociedade. A diferenciação, ao contrário, é o conjunto dos que tendem a acentuar as peculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. São processos complementares, de que depende a socialização do homem; a arte, igualmente, só pode sobrevier equilibrando, à sua maneira, as duas tendências referidas (CANDIDO, 2010: 33).
Alinhados à análise de Antonio Candido (2010) temos assim, a expressão da interpretação vivida quanto à relação professor-aluno, de modo que para objeto de análise deste artigo tomaremos a referida interpretação como a construção de uma ideologia[2] quanto à figura do professor que parece tomar feições de um mito. Lévi-Strauss (2008) nos apresenta que o valor atribuído a um mito “provém do fato de os eventos que se supõe ocorrer num momento do tempo também formarem uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro” (LÉVI-STRAUSS, 2008: 224), no entanto “o mito continua sendo mito enquanto for percebido como tal” (LÉVI-STRAUSS, 2008: 233).

3. A AURA DO DISCURSO
Julio Groppa Aquino (2005), em entrevista à Revista Carta Capital[3], comenta o levantamento realizado quanto ao interesse dos alunos na aprendizagem, publicado no livro “A Escola Vista por Dentro” (2002) de João Batista Araujo e Simon Schwartzman, o referido estudo apontou que 77% dos professores do ensino fundamental público culpam o desinteresse dos alunos pela alta repetência. Em seu comentário, Aquino (2005) apresenta que
é como dizer que o problema da saúde são as doenças, e o da Justiça, os delitos. “Se fôssemos um povo menos criminoso, a Justiça seria melhor. Se fôssemos mais interessados em educação ou, em outras palavras, menos ignorantes, a educação seria melhor.” É a lógica dos mitos. E esse talvez seja o maior deles: o de responsabilizar o alunado. Não faz o mínimo sentido, mas está generalizado não só entre os profissionais da educação, como também na opinião pública, que ratifica esses clichês, esses abusos cometidos contra os jovens (AQUINO, 2005)
O argumento para a elaboração deste artigo teve como fonte a frase de um professor (doutor na área das Ciências Sociais) quanto à participação dos alunos na elaboração das suas aulas, visto que esses alunos, em tese (minha tese) são os protagonistas do ambiente educacional, segundo o professor “os alunos não sabem fazer isso”. Sendo assim, em oposição aos que não sabem, obrigatoriamente há os que sabem, e aqui, estes seriam os professores, exclusivamente eles. A palmatória do século XIX parece ter ficado nas sombras da história, no entanto, o exercício do costume quanto à relação entre alunos e professores ainda nos ronda. Araujo e Schwartzman (2002) revelam em seu estudo que mesmo em face aos dados pessimistas da educação, os professores
gostam do que fazem, e afirmam dedicar muito de seu tempo à escola e à preparação de atividades docentes. Consideram importante e eficiente o que fazem, e acham que deveriam ser muito mais bem remunerados. De modo geral, particularmente nas escolas públicas, os professores consideram como normais muitos comportamentos e expectativas que a sociedade em geral e a literatura sobre escolas eficazes considerariam como desviantes – como as questões relativas a pontualidade, frequência, cumprimento do calendário escolar e programa de ensino, responsabilidade da escola pelo sucesso do aluno, etc (ARAUJO e SCHWARTZMAN, 2002: 63).
A análise de Araujo e Schwartzman (2002) confirmam o comentário de Aquino (2005) quando entendem que se os professores “acreditam que o fracasso depende apenas do aluno e da falta de condição ou da cooperação das famílias, não há razão para se esforçar e cumprir o programa de ensino dentro do ano letivo” (ARAUJO e SCHWARTZMAN, 2002: 106). Assim, o professor aparece envolto em uma aura celestial, mitológica e cristalizada em nossa vivência educacional. Isto posto, podemos entender que um aluno que não é capaz de aprender, também não é capaz de ensinar e muito menos é capaz de dizer o que entende por educação, o que gostaria que fosse a educação, pois afinal “os alunos não sabem fazer isso”.
4. AS REGRAS PARA O SABER, A LEGITIMAÇÃO DO PODER
De acordo com o exposto, sugiro que tomemos a relação professor-aluno como uma relação hierárquica, onde a figura do professor, além de ter em si todo o conhecimento, não se vê com o dever de transmiti-lo e debate-lo, uma vez que, por hipótese, o aluno é quem tem o dever de aprender de acordo com a sua condição de tabula rasa[4] subordinada. A fim de analisar a forma hierárquica, nos conduziremos pelo pensamento de Max Weber (1982) que nos aponta a burocracia como um meio para legitimar e proteger relações hierárquicas, “toda burocracia busca aumentar a superioridade dos que são profissionalmente informados tornando secretos seu conhecimento e intenções: na medida em que pode, oculta seu conhecimento e ação da crítica” (WEBER, 1982: 269). Neste sentido, sugerimos que o exercício da superioridade possa ser pautado pela relação entre saber e poder, sendo que para Foucault (1987) temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 1987: 31).
Admitamos assim, que a relação de poder constitua um campo de saber, porém, de qual campo de saber estamos falando? Proponho que falemos de um campo de saber que pressupõe aquele que tem valor – o do professor –, e aquele sem valor – o do aluno. O valor da forma de se saber pode ser entendida como regulamentada, racional e portanto burocratizada, que toma feições de dominação e disciplina. Uma forma de se saber tradicional, acadêmica, da ordem do costume, uma gênese mitológica da qual a única coisa que sabemos é que sempre foi assim. Neste sentido, Foucault (2010) nos auxilia com sua análise quanto ao posicionamento dos intelectuais, no prefácio ao “Anti-Édipo”. O autor entende que haveria, durante o período de 1945 a 1965 (este cenário parece estender-se até os dias de hoje), condições para a aceitação de uma verdade escrita, tais condições estavam vinculadas à ética do intelectual, a uma forma correta de pensar e ao estilo correto do discurso (FOUCAULT, 2010: 103), aqui permitamos que a “forma correta de pensar” esteja também vinculada a uma forma correta de saber, de modo que qualquer forma de entendimento, conhecimento e saber que não tenha como forma uma “ética” ou uma estética intelectual não seja merecedora de valor. Foucault (2010) propõe que sejam rompidas as fronteiras dessa forma “correta” de pensar, no entanto, nos chama a atenção para o maior adversário da ruptura dessas fronteiras: o fascismo, não apenas aquele caracterizado pelas ações de Hitler e Mussolini, mas “também o fascismo que está em todos nós, que persegue nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 2010: 105).
5. AS CERCAS PROTEGIDAS DO ESCLARECIMENTO
Immanuel Kant (2005) nos pergunta “Que é esclarecimento?”. O autor nos aponta que os homens vivem em um estado de menoridade e este estado o torna incapaz de utilizar o seu entendimento sem a tutela de outro, tal menoridade é tratada como o resultado da falta de decisão e coragem de conduzir-se por si mesmo, assim, se um homem decide, de forma corajosa, utilizar o seu próprio entendimento e deixar a comodidade de ser tutelado, terá acesso ao esclarecimento (KANT, 2005: 1). À primeira vista, podemos considerar que esta análise acaba por reforçar uma falta de vontade humana, a sua covardia, portanto, em diálogo com os mitos que vivenciamos de forma passiva. Assim, podemos nos perguntar: como esclarecer-se sobre si mesmo tendo em vista a força de um mito? Como esclarecer-se sobre si mesmo diante de uma forma estabelecida de saber alimentada pelo amor ao poder de quem nos domina? Kant (2005) nos apresenta que a culpa da menoridade é do próprio homem, a não ser que esta seja por falta de entendimento e este entendimento, normalmente, é normatizado de tal forma que toma caráter de natural, daí a dificuldade de tornar-se esclarecido (KANT, 2005: 1, 2). E é neste ponto que proponho o início de nosso raciocínio acerca da dificuldade de tornar-se esclarecido, em consonância com os sistemas burocráticos analisados por Weber (1982), com a construção de um campo de saber, que pressupõe uma relação entre poder e saber, abordados por Foucault (1987), a percepção dos professores sobre si mesmos, identificada no estudo de Araujo e Schwartzman (2002) e os mitos que orientam a educação, comentados por Aquino (2005), sendo que este último, delimitado no mito do professor, sustenta todo o argumento deste artigo.
6. CONSIDERAÇÕES INICIAIS