Além de aterrorizar a Europa, os vikings descobriram o caminho para a
América e criaram as primeiras colônias em nosso continente. Conheça a saga
desses guerreiros do mar.
Numa época em
que a América do Norte ainda era dominada pelos povos indígenas, alguns colonos
europeus caminhavam pelas matas quando avistaram um grupo grande de nativos.
Rapidamente, alteraram seu trajeto para evitar o confronto. Mas uma jovem
gestante, de nome Freydis, foi contra. Fugir era indigno. O certo era atacar os
índios. Freydis foi ignorada pelos homens do grupo, mas isso não diminuiu seu
furor. Ela deixou à mostra um seio para ressaltar seu sexo, pegou uma espada e
partiu para a briga. Os índios, que nunca haviam visto - quanto mais combatido
- uma mulher branca, grávida, armada, perigosa e seminua, ficaram perplexos e
mudaram de rumo.
A história
acima faz parte das "Sagas", registros de feitos heróicos dos vikings
escritos na Islândia entre os séculos 12 e 14. Até o século 20, os
historiadores pensavam que os relatos das escaramuças com os
"skræling" (como os índios são chamados no texto) fossem fictícios.
Compreensível, já que os autores estavam mais preocupados em criar lendas do que
em registrar fatos. Eis que, em 1960, o dinamarquês Helge Instad encontra na
Terra Nova, no Canadá, os restos de um assentamento viking do ano 1000. Ficou
provado que, quase 500 anos antes de Colombo, outra cultura européia havia
alcançado a América. Os contatos entre índios e vikings são o tema de
"Desbravadores", que estreou nos cinemas em outubro. Embora
ficcional, o filme deixa no ar questões importantes. Por que os vikings foram
os primeiros europeus a chegar à América? Por que não permaneceram? E o que
essa aventura representa para nós?
Essa colônia
montada pelos vikings na América do Norte marcou o ponto mais extremo de uma
viagem que começou no século 2, quando tribos germânicas ocuparam as regiões
menos frias da Dinamarca, da Suécia e da Noruega. Nos 600 anos seguintes, esses
povos permaneceram relativamente isolados do resto da Europa, desenvolvendo
características que, entre os séculos 8 e 10, levaram ao movimento de expansão
conhecido como Era Viking.
Os vikings
viviam em pequenos reinos, e a sociedade se dividia em três classes principais:
abaixo de todos, escravos e servos; acima deles, os homens livres, dedicados à
agricultura e à pecuária; no topo da pirâmide, aristocratas com funções
administrativas, militares e religiosas - os escandinavos foram pagãos até o
século 11. O comércio era muito importante para esses
"fiordes-estado": navios escandinavos iam até portos da Irlanda e da
Europa Ocidental para trocar peles e marfim por ouro, cobre e estanho.
Não há um
consenso do porquê (explosão populacional, embargo comercial, superioridade
tecnológica, honra), mas o intercâmbio pacífico ficou para trás em 793, quando
os "homens do norte" desandaram a atacar mosteiros no litoral
britânico, alvos fáceis e lucrativos. Os guerreiros chegavam pelo mar e não
mostravam nenhuma piedade cristã com os monges, matando quem se metesse no
caminho, saqueando as capelas em busca de riquezas e vendendo os sobreviventes
como escravos.
Após os
primeiros sucessos, os ataques cresceram em quantidade e tamanho. "As
primeiras expedições contra mosteiros indefesos podiam ser feitas com 20
guerreiros. Já as grandes, contra cidades como Paris, podiam reunir 200
navios", diz o historiador Johnni Langer, principal estudioso do tema no
Brasil. Essas expedições de saque eram chamadas "viks", que deu
origem ao termo "viking".
"O
excesso de saques numa mesma região forçava a busca de alvos cada vez mais
distantes", diz Langer. Cada povo seguiu sua rota (ver "Mapa dos
tesouros", à direita). Os da Dinamarca e da Noruega se voltaram para o
Ocidente, conquistando parte da Inglaterra e da Irlanda e saqueando
sucessivamente França, Península Ibérica, norte da África, Itália e Grécia.
Enquanto isso, os suecos foram para oeste: detonaram os países bálticos,
desceram a bacia do rio Dnieper pelo Leste Europeu até o Mar Negro e atingiram
as rotas comerciais árabes. Os guerreiros vikings causaram forte impressão
entre as tribos eslavas do Leste Europeu. O suficiente para que elas, que os
chamavam de "rus", fizessem deles seus chefes. Dessa mistura
eslavo-normanda nasceria a Rússia.
A América dos Vikings
A colônia de Anse-aux-Meadows, descoberta em 1960 na
costa leste do Canadá, abrigava três casas, além de oficinas, forjas e fornos.
Imagem:
Por um desses
acasos da história, as duas correntes de pilhagem migratória, a do Oeste e a do
Leste, acabaram se reencontrando no século 9, nas vizinhanças do Império
Bizantino. Para desespero de Bizâncio, que passou a ser vítima de saques
constantes e quase foi conquistada.
O segundo
momento da expansão viking é marcado pelo estabelecimento de colônias. A partir
de 860, noruegueses começaram a se estabelecer na Islândia, então uma ilha
deserta. Nessa época, o líder Harald Cabelos Finos estava em franca campanha
militar para tornar-se o único monarca norueguês. Descontente com essa
unificação forçada, boa parte da população decidiu lançar-se ao mar. Em 930, a
Islândia já contava com 30 mil habitantes. Isso levou, naturalmente, a um
esgotamento das terras disponíveis para agricultura.
Em 982, um
chefe viking chamado Erik, o Ruivo, foi expulso da Islândia acusado de
assassinato. Ele decidiu navegar para o oeste e checar as informações de outro
navegador, Gunnbjoeorn, que 60 anos antes teria encontrado uma terra
desconhecida naquele rumo. Erik redescobriu então a Groenlândia, que na época
tinha um clima propício à atividade agrícola (ver quadro "Terra
verde").
Erik
voltou à Islândia três anos depois e convidou a população a colonizar a nova
terra. Em 986, 25 navios cheios de colonos deixaram a Islândia em direção à
Groenlândia. Apenas 15 chegaram ao destino. Estabeleceram-se primeiro na
península do sul da ilha e depois criaram outra colônia ao norte. Em poucas
décadas, já havia mais de 450 fazendas na região.
TERRA
VERDE
Aquecimento global seria explicação para colonização -
e para o nome - da Groenlândia
O nome da província dinamarquesa não deixa dúvidas: Grønland (nossa
Groenlândia) significa literalmente "terra verde". Mas a paisagem
contradiz o mapa: a ilha é branca, coberta de gelo. Quando muito, a tundra do
litoral tem um tom marrom-ferrugem. Será que o pioneiro Erik, o
(indiscutivelmente) Ruivo, aplicou um golpe de marketing para atrair colonos
vikings? A explicação pode ser mais simples: aquecimento global.
Quando a
Groenlândia foi colonizada, por volta do ano 1000, a Europa vivia o auge do
Período Quente Medieval (800-1300), em que o continente teve temperaturas
excepcionalmente elevadas. Aumentou a produção agrícola, houve um boom na
construção de pontes (chovia mais, e os rios encheram) e, claro, ficou mais
fácil viajar e viver na região ártica. É possível, portanto, que quando os
islandeses desembarcaram na Groenlândia, ela fosse realmente verde.
Após esse
período, no entanto, começou a Pequena Era Glacial. Por meses inteiros, a
Groenlândia e mesmo a Islândia ficavam isoladas do resto do continente,
dificultando o acesso a produtos importantes como ce-reais e ferro. "Mesmo
uma pequena queda de temperatura tornava a vida muito mais difícil para
europeus em um local tão remoto", diz James Graham-Campbell, arqueólogo da
University College of London.
O
sumiço dos vikings americanos também se explica pela exaustão dos recursos
naturais, defendida pelo biológo americano Jared Diamond no livro
"Colapso". Diamond sugere que o estilo de vida dos fazendeiros na
Groenlândia, baseado no desflorestamento e no uso da terra para pastagem do
gado, produziu uma catástrofe ecológica que levou à extinção das colônias.
"Por outro lado", lembra Graham-Campbell, "o estilo de vida dos
esquimós estava plenamente adaptado às condições do Ártico, e sua expansão para
o sul pode ter resultado na expulsão dos vikings."
Sonho americano
Em 992 foi a vez de Erik Leif, filho do Ruivo, aventurar-se para o oeste em
busca de terras já avistadas. Um certo Herjolfsson dizia ter errado o caminho
para a Noruega e chegado a uma terra coberta de árvores e, depois, a outra
cheia de rochas. As "Sagas" contam que Leif partiu acompanhado de 35
marinheiros e que navegou até encontrar os lugares descritos por Herjolfsson,
que batizou de Markland e Helluland. Acredita-se que elas correspondam à Ilha
de Baffin e à costa de Labrador (ver "Mapas do Tesouro").
Leif seguiu
mais para o sul. Os textos antigos dizem que ele encontrou uma região coberta
por vegetação verde, a que chamou de Vinland, terra do vinho. Os vikings passaram
lá o inverno e no verão retornaram à Groenlândia, onde elogiaram o clima da
região recém-descoberta. Por volta de 1020, uma nova expedição levou em torno
de 150 colonos para viver em Vinland. Entre eles estava até uma filha bastarda
de Erik, Freydis - a guerreira que encarava os índios de peito aberto.
As ruínas de
Anse aux Meadows, no Canadá, são o único vestígio das colônias vikings na
América. Mas isso não significa que o povoamento tenha se restringido a essa
região. "Pode ser que os escandinavos vivessem mais ao sul. O povoado da
Terra Nova seria uma espécie de portão de entrada do continente para quem
chegava da Groenlândia", diz Collen Batey, professora da Universidade de
Glasgow. A arqueóloga também contesta o relato das "Sagas", que
restringe a três anos a existência de Vinland. "Hoje as escavações sugerem
que a ocupação pode ter durado quase 20 anos." Segundo Richard Ringler, do
Departamento de Estudos Escandinavos da Universidade de Wisconsin, em 1347
ainda havia gente planejando viagens da Groenlândia para o Canadá. "Não
vejo nenhuma razão para que Colombo não soubesse dessas viagens, e pessoalmente
suspeito que ele soube", diz Ringler.
As relações
entre vikings e "skrælings" (homens feios, na língua nórdica) são um
tópico a parte. Enquanto "Desbravadores" mostra os vikings
massacrando índios, as "Sagas" afirmam que os dois povos se deram bem
e inclusive foram parceiros comerciais, até que alguns índios passassem mal por
tomar leite de vaca. "Não temos vestígio arqueológico de que esses combates
tenham acontecido", diz Batey. Ela acha que é perfeitamente possível que a
curta convivência entre vikings e europeus tenha sido absolutamente pacífica.
"Mas uma história assim não daria um filme, não é?", pergunta ela.
É possível que
o isolamento, as dificuldades de sobrevivência e a distância da Escandinávia
tenham levado a colônia de Vinland a sofrer uma morte natural.
No século 11,
a Era Viking se encerra. Mas suas viagens ainda são celebradas. Neste ano o Sea
Stallion, reconstituição de um barco viking, chegou a Dublin 45 dias depois de
zarpar da Dinamarca, refazendo uma das mais ativas rotas vikings. Que hoje o
mesmo povo que eles aterrorizaram receba em festa seus descendentes mostra que
eles asseguraram seu lugar na História.
Autor: Plabo Nogueira.
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