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domingo, 11 de janeiro de 2015

Arqueologia brasileira: do privado ao público


            A Arqueologia brasileira do século XIX se encerra dentro do contexto nacionalista romântico, da valorização das origens de um povo. Na prática, seu objetivo era conferir nobreza ao passado de um lugar chamado Brasil, nação recém-nascida a quem o governo imperial procurava atribuir caráter de civilização (BARRETO, 1999-2000; FERREIRA, 2003; FUNARI, 2003; GUIMARÃES, 1988). As pesquisas arqueológicas da época dedicavam-se, portanto, a estudar povos indígenas e a buscar os vestígios de arquitetura monumental que confirmariam a tese de que os indígenas seriam a degeneração de uma grande civilização do passado. Esta suposta civilização seria a colonizadora do continente, e esta ideia delimitava temática e temporalmente as pesquisas arqueológicas. O estudo de épocas anteriores caberia à História Natural, ciência que buscava compreender do ponto de vista paleoambiental a evolução ou sucessão de eras geológicas.

            Dessa forma, a construção da ideia de uma pré-história americana, no século XIX, esbarrava em limitações metodológicas, mas, sobretudo em impedimentos de ordem ideológica. Isto pois, por mais que se considerasse alheios ao pensamento mitológico, quase não havia espaço entre os pressupostos da ciência da época que admitisse uma ocupação humana do continente americano em tempos remotos.

          A prática arqueológica era realizada por colecionadores, intelectuais amadores, curiosos e museus, que o faziam sem leis específicas ou regulamentações, mesmo após a elevação da Arqueologia ao status científico, conferido pelo IHGB em 1847. No âmbito privado, era encarada como uma atividade de prestígio, um hobby, mas também um indicador de refinamento. Não era incomum o trânsito internacional de peças arqueológicas raras, oriundas de escavações pela Grécia ou Egito, por exemplo, a fim de adornarem galerias e salões particulares.

            Por outro lado, as explorações arqueológicas científicas eram essencialmente fundamentadas em hipóteses criacionistas. Os princípios norteadores destas pesquisas buscavam quase sempre constatar a veracidade dos relatos bíblicos da criação, ainda que vestígios paleogeológicos testemunhassem fortemente contra a cronologia estabelecida pela Bíblia e pela Igreja. Quando Peter Lund realizou suas primeiras descobertas no carste de Lagoa Santa (MG), nos idos da década de 1840, seus achados atestaram evidências da convivência de seres humanos com “as grandes bestas extinctas”. Suas teses foram tão rapidamente difundidas quanto refutadas pela comunidade científica nacional e internacional (LUNA FILHO, 2007, p. 128).

            Entre o amadorismo e a cientificidade estavam, portanto, paleontólogos e arqueólogos no século XIX. Para a Ciência, de modo geral, a existência de seres humanos em eras anteriores à “atual” era hipótese descartada. Dessa forma, a relevância da pesquisa em sítios pré-históricos para o delineamento das primeiras ocupações do território brasileiro foi ignorada e a manutenção e preservação destes sítios foi severamente negligenciada. Mesmo no período republicano, o debate acerca da proteção do patrimônio arqueológico, a despeito de inúmeros esforços e projetos de lei, apenas em 1961 resultou em uma lei mais abrangente e em âmbito federal. Esta década é caracterizada pelo fortalecimento das instituições de pesquisa. Entretanto, Em um momento que não havia diferenças significativas entre “profissionais” e “amadores”, a categoria de “arqueólogo profissional” foi construída no bojo da campanha de proteção dos sítios e em oposição aos “amadores”. […]

            [Estes] foram proibidos de continuar o trabalho de coleta de dados, e sítios foram totalmente destruídos sem que houvesse qualquer tipo de registro. Por outro lado, os “arqueólogos” desenvolveram uma linguagem restrita à comunidade científica, sem qualquer compromisso com a divulgação dos resultados de pesquisa para a sociedade brasileira (GASPAR, 2004, p. 18-19). Assim, o estabelecimento da Arqueologia como ciência apenas será compreendido se considerarmos o processo de concepção de seus pressupostos científicos, além das influências sociais, políticas e ideológicas desta época. Mas é a partir da relação peculiar entre estes fatores que podemos entender a questão patrimonial no Brasil atual.

Patrimônio arqueológico sob a ótica legal

            No Brasil, a formalização legal da proteção a sítios arqueológicos foi resultado de um processo de décadas. Foram diversos esforços originários de várias instituições, políticas e intelectuais, entre o primeiro e já tardio projeto de lei, proposto pela Sociedade Brasileira de Belas Artes em 1920, defendendo a nacionalização dos recursos, até a lei atual, nº 3924/1961.

            Entretanto, o decurso da subordinação da questão às leis entre as décadas de 1920 e 1960 esbarrou na indefinição do valor pré-histórico dos sambaquis. Segundo Paulo Duarte (1968, p. 5), o primeiro Código de Minas (Decreto-Lei nº 1985/1940), assinado durante o Estado Novo, classificou indiscriminadamente terraços e sambaquis como “jazida mineral natural”, o que trouxe graves prejuízos à Arqueologia no Brasil. De fato, nesse contexto, a nacionalização das jazidas minerais, antes de visar a proteção de sítios pré-históricos, coadunava com as políticas desenvolvimentistas do período varguista. Dois anos depois, o Decreto-Lei nº 4146/1942 estabeleceu uma vaga discriminação entre as explorações econômicas e científicas. Duarte afirma ainda que “Em São Paulo, porém, graças à vigilância implacável do Instituto de Pré-História, a lei [nº3924/1961] vigora” (1968, p. 5). A particularidade da Lei nº nº3924/1961 é que esta abrange qualquer monumento pré-histórico ou arqueológico, a estatização destes bens, a preservação por parte do Estado e a insubmissão destes às regras gerais da propriedade privada.