Eis as lendas do Japão,
segundo o registro dos kami anciãos primordiais, esta mitologia foi transmitida
para os antigos sábios e de onde se basearam os eternos livros Kojiki e Nihon Shoki:
No início dos tempos, havia
apenas uma disforme esfera oval, duplamente maior que a Terra, flutuando,
plácida e silenciosa, no negro infinito. Vida alguma abrigava em seu abaulado
ventre e astro algum iluminava o céu para além desta longínqua esfera, solitária
como uma pedra perdida num mar escuro e vazio – nem Sol, nem Lua, nem estrelas
havia.
Mas esse não era ainda o
mundo no qual os kami e mortais viriam a habitar. Não passava este corpo
ástreo, na verdade, de uma massa única, sem distinção entre o céu e a Terra.
Durante muito tempo assim
foi, até que esta indefinida esfera foi lenta e vagarosamente repartindo-se em
duas, como quando o corpo dorme e a alma se põe a sonhar. Mas não é porque
dormia que este corpo não se debateu como em pesadelos e não é porque não havia
viva alma para ouvi-lo que ele silenciou. Divorciou-se de sua outra metade,
fazendo saltar pedras, lascas e pedregulhos para todos os lados, na ânsia de
libertar-se, e desprendeu-se, enfim, esta incorpórea criatura, como se
desprende a alma do corpo morto.
Eis que se põe a subir
calma, leve e vaporosa, alcançando com suave perícia o pai de todos os cumes, o
monte Takachiho, e instalou-se acima do
seu topo, que já era tão alto que perfurava uma densa camada de nuvem. Takaamahara
é como passou a se chamar esta parte azulada espiritual que virou o que
poderíamos intitular de céu japonês. Acomodou-se lá no altíssimo firmamento e
ali permaneceu à espera dos kami, que em poucas eras estavam por vir.
A outra metade da esfera, no
entanto, pesada, parda e densa, foi tombando como o peso da gema de um ovo na
leve clara, precipitando-se pelo abismo infinito. As pedras que haviam saltado
da separação foram sendo atraídas gradativamente a ela mais uma vez, unindo-se
de modo a carreá-la mais e mais até atingir uma consistência firme e puramente
física mudando sua cor para um tom negro-encarvoado. Assumiu, enfim, uma forma
geoide, e a água espalhou-se em volta dela. Os dedos gelados de uma névoa densa
e escura envolveram esta parte descartada dos céus que permaneceu esquecida
pelos imortais durante sete gerações de deuses.
Takaamaharaq, a Planície dos
Céus Elevados, ao contrário da Terra, logo atraiu os kami, deuses habitantes.
Três deles, mais gigantescos de todos – colossais demais para serem apreendidos
numa única olhada – surgiram nos céus, vindos de um lugar incógnito só
conhecido por eles. Chegaram já prontos para criar e desenvolver o caótico e
misterioso mundo celeste que a mente humana não prima por entender.
A
criação da Estrela Polar
Acenderei uma luz na
escuridão – disse altamente venerável e desenvolvido Amano Minakanushi no Mikoto, falando na linguagem dos deuses.
Focalizou o firmamento com o
Terceiro Olho, a visão além do alcance dos olhos, e fez brotar de suas longas e
finas mãos uma bola de fogo dourada que arremessou às alturas, onde ela se
fixou para todo o sempre. Deu-lhe o nome de Estrela Polar.
Criação
da Lua e do Sol
Honoráveis irmãos – disse o
segundo deus, Takami
Musubi no Mikoto. – Eu criarei as Maravilhas Celestes.
Pôs-se a mover as mãos
envoltas em chispas chamejantes e fez brotar uma imensa bola branca de fogo que
arrojou para o alto, ao modo de como fez o deus primeiro. Nomeou novo ser de Lua. Concentrou novamente todo seu KI –
fogo que queima nas entranhas e é a energia vital de todos os seres vivos – e
fez surgir outra bola de fogo, porém de uma cor vermelho-alaranjada e
quatrocentas vezes maior do que a anterior. Arremessou-a igualmente ao alto dos
céus, ofuscando instantaneamente as criações anteriores. Chamou-a de Sol.
Colocou, então, dois dedos
no centro da testa e tornou a se concentrar: flocos de neve caíram dos céus,
levando os três irmãos a se encolherem de frio e cobrirem com o capuz as
cabeças ainda quentes do Sol. Expulsaram os flocos da neve resplandecente que
cobria seus mantos coloridos e se puseram a observar o campo celeste que ia
ficando mais alvo e fofo do que as brancas nuvens.
A nevasca se transformou em
uma chuva muito fina e fortes ventos varreram os quatro cantos da galáxia, de
ponta a ponta, controlados docilmente pelas mãos do honrável kami. Raios e
relâmpagos cortaram, neste dia, o firmamento com seus clarões dourados e estrondos
retumbantes e o vento uivou ferozmente como mil lobos, virando uma terrível
tempestade. A pouca chuva se transformou num aguaceiro que lavou e fertilizou o
solo celestial pela primeira vez na vida.
Surge
a vida vegetal e animal pelo terceiro kami
- Eu, por minha vez, criarei
os Tesouros Celestes – disse a seus irmãos a terceira divindade, Kami Musubi no Mikoto, tão logo a tempestade amenizou.
Espalmou as longas e finas
mãos sobre o solo irrigado e fez surgir os mais exóticos bosques, pomares e jardins,
que se ergueram do chão de um minuto para o outro, crescendo a olhos vistos,
como se um segundo representasse um século. Deleitou-se o deus criando
montanhas e penhascos, mares e rios, pássaros e peixes, flores e corais.
Cachoeiras desciam agora livremente
ao pé da montanha, abaixo do voo de esplêndidos faisões de penas rubras como o
fogo douradas como o metal amarelo (modo com o qual os deuses primordiais
referiam-se ao ouro). A límpida água corria nos largos e lentos córregos
celestiais com toda sorte de murmúrios, fluindo através do coração de
Takaamahara, brilhando entre musgos, pedras e peixes. Brotaram o arroz e demais
cereais, que, sem cultivo ou trabalho algum, cobriram os campos alagados com
seus tapetes amarelos, independente do clima, do tempo e das estações de
maduração.
Logo o céu borbulhava de
cores e arte, graças ao capricho destes fecundos criadores de inesgotável
imaginação. Tão logo concluíram suas obras-primas, retiraram-se anonimamente
dos céus e seguiram para um refúgio incógnito que somente os deuses conheciam,
sem deixar atrás de si nem o brilho das caudas de seus faiscantes mantos
multicoloridos e nem o mínimo resquício de vaidade.
SEGANFREDO,
Carmen. As melhores histórias da Mitologia Japonesa. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 2011, pg. 15-19.
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