Ilustração Sergio Bergocce
Durante quatro dias, o
Brasil viveu a experiência de um governo comunista. Foi em 1935, em Natal, no
Rio Grande do Norte. Após um levante militar ocorrido no Batalhão do Exército,
a capital potiguar caiu nas mãos dos rebeldes, que destituíram os governantes
locais dos seus cargos - incluindo o governador do estado e a Assembleia - e
assumiram o poder com apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), liderado por
Luís Carlos Prestes. Sob o lema "pão, terra e liberdade", os
revolucionários almejavam dar o pontapé inicial para a instalação de um regime
soviético no Brasil.
O levante começou na manhã
de 23 de novembro, um sábado. O dia em Natal, que contava com cerca de 40 mil
habitantes, começou calmo e prometia poucas novidades. A principal notícia era
a formatura de um grupo de contabilistas do Colégio Santo Antônio no Teatro
Carlos Gomes, à noite, que contaria com a presença do governador Rafael
Fernandes.
No quartel militar do 21º
Batalhão de Caçadores (21º BC) o dia também corria tranquilo até que chegou a
informação de que o general Manuel Rabello, comandante da 7ª Região Militar, no
Recife, havia autorizado o licenciamento de alguns cabos, soldados e tenentes
que estavam com tempo vencido na carreira militar e a expulsão de outros,
acusados de envolvimento em incidentes de rua ocorridos dias antes em Natal,
incluindo assaltos a bondes.
O documento com a ordem de
expulsão precipitou um movimento que estava sendo articulado havia vários dias
entre lideranças militares e sindicatos locais junto com membros do PCB
estadual. O objetivo era apoiar a revolução nacional que estava sendo preparada
pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), no Rio.
"Havia uma preparação
para o levante sob a direção do Partido Comunista, que atuava no 21º Batalhão
de Caçadores e em vários sindicatos locais. Eles apenas aguardavam as
orientações do comitê central", afirma Homero de Oliveira Costa, professor
de ciências políticas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e
estudioso da insurreição de Natal. Somando-se a isso, Costa lembra que a cidade
já vivia momentos de tensão política desde o ano anterior. "O Rio Grande
do Norte teve uma das mais tumultuadas eleições do país, com diversos conflitos
de ruas, assassinatos, prisões e repressão. Isso criou uma situação muito tensa
no Estado, e em Natal em particular", diz.
Os acontecimentos daquele
sábado se precipitaram de tal maneira que não houve tempo nem de avisar a ANL,
cujos líderes (incluindo Prestes) aguardavam o melhor momento para eclodir a
revolução em nível nacional. Em função das expulsões ordenadas pelo comando
militar no Recife, o PCB estadual e os integrantes do Batalhão decidiram dar
início ao motim naquele mesmo dia.
Por volta das 19h30, um
grupo de militares rebeldes, liderados pelo sargento Quintino Clementino de
Barros, rendeu os oficiais de plantão do quartel e, com fuzis apontados para a
cabeça dos soldados, ordenaram: "Os senhores estão presos em nome do
capitão Luís Carlos Prestes". Não houve resistência e, a partir daí, os
revolucionários, liderados por Quintino e apoiados por grupos civis organizados
(como o sindicato dos estivadores, que era muito forte na cidade), tomaram o
quartel e ocuparam locais estratégicos: o palácio do governo, a Vila Cincinato
- residência oficial do governador -, a central elétrica, a estação ferroviária
e as centrais telefônica e telegráfica.
Informado sobre a confusão e
a organização dos amotinados ainda na cerimônia dos contabilistas, o governador
e demais autoridades civis e militares fugiram e se esconderam na casa de
aliados, inclusive na do cônsul da Itália no Rio Grande do Norte. No quartel da
Força Pública, cuja sede ficava próxima ao batalhão rebelado, ensaiouse uma
resistência legalista com policiais fiéis ao governo, vencida pelos militares
rebeldes, no momento mais organizados e bem-armados.
Na manhã seguinte, Natal
estava completamente dominada. Na residência do governador, sede dos rebelados,
formou-se uma junta provisória de governo, autodenominada Comitê Popular
Revolucionário, que era formada pelo sapateiro José Praxedes (secretário de
Abastecimento); sargento Quintino Barros (Defesa); Lauro Lago (Interior e Justiça);
estudante João Galvão (Viação); e José
Macedo (Finanças), este último funcionário dos Correios e Telégrafos.
Em seguida, o Comitê
Revolucionário começou a tomar medidas práticas. A primeira foi um decreto com
a destituição do governador do cargo e a dissolução da Assembleia Legislativa
"por não consultar mais os interesses do povo". As tarifas de bondes
foram extintas e o transporte coletivo tornou-se gratuito. Na segunda-feira, o
comércio e os bancos não abriram. À tarde, foi ordenado o saque dos cofres da
agência do Banco do Brasil e Recebedoria de Rendas. O dinheiro foi confiscado
em nome do governo revolucionário e parte dele distribuído à população, que
adorou a novidade, mesmo sem ter muita noção do que estava acontecendo.
Pura
farra
"A população
confraternizava com os rebeldes. Era mais uma festa popular ou um carnaval
exaltado, do que uma revolução", explica o historiador Hélio Silva em seu
livro 1935 ¿ A Revolta Vermelha. "Casas comerciais foram despojadas de
víveres, roupas e utensílios domésticos que aquela gente não podia comprar.
Houve populares que, pela primeira vez, comeram presunto", de acordo com o
historiador.
Um dos líderes do movimento,
João Galvão, relatou posteriormente o que aconteceu naqueles dias: "O povo
de Natal topou a revolução de pura farra. Saquearam o depósito de material do
21º BC e todos passaram a andar fantasiados de soldado. Minha primeira
providência como 'ministro' foi decretar que o transporte coletivo seria
gratuito. O povo se esbaldou de andar de bonde sem pagar".
Para se comunicar com a
população, um avião foi confiscado no aeroporto e sobrevoou a cidade despejando
milhares de folhetos. No curto período em que se mantiveram no poder, os
revolucionários também distribuíram o primeiro ¿ e único ¿ número do jornal A
Liberdade, impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado. Nele, foi
publicado o expediente do novo governo e um manifesto, inspirado no programa do
PCB e sob o lema "todo poder à ANL".
Cada
um por si
Segundo o professor Homero
Costa, o pouco tempo em que permaneceram no poder impediu que os
revolucionários tomassem outras medidas práticas. "Houve boatos de que na
Vila Cincinato estavam distribuindo alimentos à população, o que levou muita
gente a se deslocar para lá, mas não era verdade", diz Costa.
Mesmo assim, algumas medidas
típicas de regimes de exceção foram tomadas naquele começo de semana, como
salvo-condutos para circulação nas ruas e ordens para que o comércio e os
bancos funcionassem normalmente, o que, claro, não aconteceu. "Os comerciantes
foram orientados a negociar como de costume, sem estocarem alimentos para
elevar os preços. Caso isso ocorresse, os estoques seriam confiscados pelo
governo", diz Elias Feitosa, professor de história do Brasil do Cursinho
da Poli, lembrando que alguns gêneros alimentícios, como o pão, também tiveram
o preço reduzido.
O levante não ficou restrito
a Natal. Houve uma interiorização do movimento no Rio Grande do Norte rumo a
Mossoró e à divisa com a Paraíba. "Foram formadas três 'colunas
guerrilheiras' que ocuparam 17 dos 41 municípios do estado, destituindo prefeitos
e nomeando outros", diz Homero Costa. Pequenas localidades, como São José
de Mipibu, Ceará Mirim e Baixa Verde foram ocupadas sem resistência e os
prefeitos substituídos por simpatizantes da ANL. Agências bancárias e do
governo (as coletorias de renda) foram saqueadas e o dinheiro enviado para a
capital. Na terça-feira, a intentona potiguar começou a revelar sua fragilidade
com a movimentação de tropas do Exército da Paraíba e de Pernambuco rumo a
Natal para debelar o movimento e restabelecer a ordem.
Em uma localidade chamada
Serra do Doutor, um dos grupos da ANL foi preso por tropas leais a Getúlio
Vargas. Informados de que tropas federais entrariam em Natal e com a
possibilidade de bombardeamento aéreo, os líderes do "governo
revolucionário" fugiram na base do cada um por si. Um deles, Praxedes,
viveu foragido durante anos. Os demais foram capturados e enviados para o Rio
de Janeiro com outros presos políticos, como o escritor Graciliano Ramos.
O mesmo aconteceu nas
cidades do interior. Com a fuga, os militares enviados pelo governo federal não
tiveram dificuldades de controlar a situação. O governador Rafael Fernandes foi
reconduzido ao cargo e, a partir de quarta-feira, dia 27 de novembro, a vida
voltou ao normal na cidade que, durante cerca de 90 horas, abrigou, como
escreveu Hélio Silva, "o primeiro, único e fugaz governo soviete na
história do Brasil."
No mesmo dia em que o
"governo comunista" era encerrado no Rio Grande do Norte, o movimento
tenentista deflagrava, no Rio de Janeiro, uma insurreição para derrubar o
presidente Getúlio Vargas e instaurar um regime comunista no Brasil. Liderado
por Luís Carlos Prestes, o levante ficou conhecido como Intentona Comunista, ou
Revolta Vermelha. Os amotinados se rebelaram em vários regimentos e batalhões
do Rio, mas foram rapidamente sufocados pelas forças de segurança nacional.
A insurreição estava sendo
preparada desde o ano anterior. No final de 1934, Prestes, que estava na União
Soviética havia três anos, retornou ao Brasil para organizar a revolução comunista.
Acompanhado de sua mulher, Olga Benário, militante do partido comunista alemão,
eles desembarcaram clandestinamente com os nomes falsos de Antônio Villar e
Maria Villar. Além do casal, vieram outros estrangeiros para ajudar na
revolução. Entre eles, o argentino Rodrigo Ghioldi e sua mulher, Carmen; o
casal alemão Elisa Sabarowski e Arthur Ewert; os belgas Lion Valle e sua
mulher, Alphonsine; o alemão Franz Gruber e o norte-americano Victor Allen
Baron.
Todos, incluindo Prestes,
eram militantes da Internacional Comunista, que via no Brasil um terreno fértil
para a revolução. "O PCB era uma seção da Internacional Comunista e estava
inserido no que a entidade chamava de 'países coloniais e semicoloniais', para
os quais havia estratégias revolucionárias distintas. No caso, ao contrário dos
países capitalistas 'avançados', a estratégia era a via insurrecional",
explica o cientista político Homero Costa, da UFRN, sobre a participação do
Komintern no movimento de 1935, que registrou ações em Natal, Recife e no Rio.
Após a rebelião em Natal, ocorreu um efeito dominó em outras praças que também
estavam sendo preparadas e treinadas para a revolução.
"O que ocorreu em Natal
pegou todos de surpresa, inclusive o comitê central. Os levantes no Recife, no
dia seguinte ao de Natal, e no Rio de Janeiro, foram em consequência dessa
precipitação", diz Costa, lembrando que a insurreição nacional estava
planejada apenas para o início de 1936.
"O levante de Natal fez
parte do contexto da Intentona Comunista. A ideia era que a revolução fosse em
escala nacional. Porém, nem todas as guarnições envolvidas se engajaram ao
mesmo tempo", diz o historiador Elias Feitosa. A ação da Internacional
serviu como justificativa para que Getúlio Vargas instaurasse o Estado Novo, em
1937.
Texto
Marcus Lopes
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